-Viva o meu Príncipe! Sim senhor... eis aqui um comedouro muito compreensível e muito repousante, Jacinto!

-Então janta, homem!

Mas já eu me começava a inquietar, reparando que a cada talher correspondiam seis garfos, e todos de feitios astuciosos. E mais me impressionei quando Jacinto me desvendou que era um para as ostras, outro para o peixe, outro para as carnes, outro para os legumes, outro para as frutas, outro para o queijo. Simultaneamente, com uma sobriedade que louvaria Salomão, só dois copos, para dois vinhos: - um Bordéus rosado em infusas de cristal, e Champanhe gelando dentro de baldes de prata.

Todo um aparador porém vergava sob o luxo redundante, quase assustador de águas – águas oxigenadas, águas carbonatadas, águas fosfatadas, águas esterilizadas, águas de sais, outras ainda, em garrafas bojudas, com tratados terapêuticos impressos em rótulos.

-Santíssimo nome de Deus, Jacinto! Então és ainda o mesmo tremendo bebedor de água, hem?...

Un aquatico! Como dizia o nosso poeta chileno, que andava a traduzir Klopstock.

Ele derramou, pôr sobre toda aquela garrafaria encapuçada em metal, um olhar desconhecido:

-Não... É pôr causa das águas da Cidade, contaminadas, atulhadas de micróbios... Mas ainda não encontrei uma boa água que me convenha, que me satisfaça... Até sofro sede.

Desejei então conhecer o jantar do Psicólogo e do Simbolista – traçado, ao lado dos talheres, em tinta vermelha, sobre lâminas de marfim. Começava honradamente pôr ostras clássicas, de Marennes.

Depois aparecia uma sopa de alcachofras e ovas de carpa...

-É bom?

Jacinto encolheu desinteressadamente os ombros:

-Sim... Eu não tenho nunca apetite, já há tempo... Já há anos.

Do outro prato só compreendi que continha frangos e túbaras. Depois saboreariam aqueles senhores um filete de veado, macerado em Xerês, com geléia de noz. E pôr sobremesa simplesmente laranjas geladas com éter.

-Em éter, Jacinto?

O meu amigo hesitou, esboçou com os dedos a ondulação dum aroma que se evola.

É novo... Parece que o éter desenvolve, faz aflorar a alma das frutas...

Curvei a cabeça ignara, murmurei nas minhas profundidades:

-Eis a Civilização!

E descendo os Campos Elísios, encolhendo no paletó, a cogitar neste prato simbólico, considerava a rudeza e atolado atraso da minha Guiães, onde desde séculos a alma das laranjas permanece ignorada e desaproveitada dentro dos gomos sumarentos, pôr todos aqueles pomares que ensombram e perfumam o vale, da Roqueirinha a Sandofim! Agora porém, benedito deus, na convivência de um tão grande iniciado como Jacinto, eu compreenderia todas as finuras e todos os poderes da civilização.

E (melhor ainda para a minha ternura!) contemplaria a raridade dum homem que, concebendo uma idéia da Vida, a realiza – e através dela e pôr ela recolhe a felicidade perfeita.

Bem se afirmara este Jacinto, na verdade, como Príncipe da Grã-Ventura!

III

No 202, todas as manhãs, às nove horas, depois do meu chocolate e ainda em chinelas, penetrava no quarto de Jacinto. Encontrava o meu amigo banhado, barbeado, friccionado, envolto num roupão branco de pêlo de cabra do Tibete, diante da sua mesa de toilette, toda de cristal (pôr causa dos micróbios) e atulhada com esses utensílios de tartaruga, marfim, prata, aço e madrepérola que o homem do século XIX necessita para não desfear o conjunto suntuário da Civilização e manter nela o seu Tipo. As escovas sobretudo renovavam, cada dia, o meu regalo e o meu espanto – porque as havia largas como a roda maciça dum carro sabino; estreitas e mais recurvas que o alfanje dum mouro; côncavas, em forma de telha aldeã; pontiagudas, em feitio de folha de hera; rijas que nem cerdas de javali; macias que nem penugem de rola! De todas, fielmente, como amo que não desdenha nenhum servo, se utilizava o meu Jacinto. E assim, em face ao espelho emoldurado de folhedos de prata, permanecia este Príncipe passando pêlos sobre o seu pêlo durante catorze minutos.

No entanto o Grilo e outro escudeiro, pôr trás dos biombos de Quioto, de sedas lavradas, manobravam, com perícia e vigor, os aparelhos dp lavatório – que era apenas um resumo das máquinas monumentais da Sala de banho, a mais estremada maravilha do 202.