Charlotte. As pessoas que reclamavam seus cuidados dirigiam-se ao sr. Postel, o sucessor de Chardon.
A irmã de Luciano trabalhava em uma lavanderia fina com uma mulher honestíssima, sua vizinha, muito considerada no Houmeau, chamada sra. Prieur, e ganhava mais ou menos quinze sous por dia. Dirigia as operárias e gozava na oficina certa supremacia que lhe permitia sobressair um pouco da classe das grisettes.[16]
O modesto produto do trabalho de ambas, acrescentado aos trezentos francos de renda da sra. Chardon, perfazia cerca de oitocentos francos por ano, com os quais tinham de viver, morar e vestir-se essas três pessoas. A estrita economia daquele lar fazia essa soma, quase que por inteiro absorvida por Luciano, apenas suficiente. A sra. Chardon e Eva, sua filha, acreditavam em Luciano como a mulher de Maomé acreditava no marido; seu devotamento ao futuro dele era sem limites. Morava essa pobre família no Houmeau, num apartamento alugado por quantia modicíssima pelo sucessor de Chardon, e situado num pátio interior, em cima do laboratório. Luciano ocupava nele um miserável quarto de mansarda.
Estimulado pelo pai, que apaixonado pelas ciências naturais o havia de logo iniciado nesse caminho, Luciano foi dos alunos mais brilhantes do colégio de Angoulême, onde cursava o terceiro ano ao tempo em que Séchard ali terminava os estudos.
Quando o acaso fez com que se tornassem a encontrar os dois antigos colegas, Luciano, farto de beber na grosseira taça da miséria, estava a ponto de tomar um desses partidos extremos aos quais nos decidimos aos vinte anos. Quarenta francos por mês que David deu generosamente a Luciano, oferecendo-se para ensinar-lhe o mister de chefe de oficina, embora um chefe de oficina lhe fosse perfeitamente inútil, salvaram-no do desespero.
Os laços daquela amizade de escola, assim renovados, estreitaram-se logo pela semelhança de seus destinos e pela diferença de seus caráteres. Ambos, com espírito pleno de muitos dons, possuíam a alta inteligência que põe o homem ao nível de todas as sumidades, e viam-se, não obstante, lançados ao fundo da sociedade. Essa injustiça da sorte foi-lhes um liame poderoso. Além disto, ambos haviam chegado à poesia por caminhos diferentes.
Embora destinado às mais altas especulações das ciências naturais, Luciano se voltava com ardor para a glória literária; enquanto David, cujo gênio meditativo o predispunha à poesia, inclinava-se por gosto para as ciências exatas. Esta interposição de papéis engendrou como que uma fraternidade espiritual. Luciano não tardou a comunicar a David as altas cogitações que herdara do pai sobre as aplicações da ciência à indústria, e David o fez divisar os novos caminhos que deveria percorrer na literatura para conquistar nela nome e fortuna. A amizade dos dois jovens tornou-se em poucos dias uma dessas paixões que só nascem ao sair da adolescência.
David entreviu logo depois a bela Eva, e apaixonou-se por ela como se apaixonam os espíritos melancólicos e meditativos. O Et nunc et semper et in secula seculorum[17] da liturgia é a divisa desses sublimes poetas desconhecidos cujas obras consistem em magníficas epopeias surgidas e perdidas entre dois corações! Ao penetrar o segredo das esperanças que a mãe e a irmã de Luciano punham naquela bela fronte de poeta, ao conhecer-lhes o cego devotamento, o apaixonado achou agradável aproximar-se da amada, partilhando suas emoções e suas esperanças. Luciano foi assim para David um irmão de eleição. Como os ultramontanos que queriam ser mais realistas que o rei, David exagerou a fé que a mãe e a irmã tinham no gênio de Luciano, e o mimou como uma mãe mima o filho.
Durante uma das conversações nas quais, premidos pela falta de dinheiro que lhes atava as mãos, ruminavam, como todos os jovens, meios de realizar rápida fortuna, sacudindo todas as árvores já despojadas pelos primeiros que passaram, sem obter frutos, Luciano lembrou-se de duas ideias do pai. O sr. Chardon falava em reduzir à metade o preço do açúcar pelo emprego de um novo agente químico, e de diminuir de outro tanto o preço do papel, trazendo da América certas matérias vegetais análogas às de que se serviam os chineses e que quase nada custavam. David, que conhecia a importância do problema levantado já pelos Didot, apoderou-se da ideia, vendo nela uma fortuna, e considerou Luciano como um benfeitor a quem nunca poderia recompensar devidamente.
Adivinham todos a que ponto os pensamentos dominantes e a vida interior dos dois amigos os tornavam incapazes de dirigir uma tipografia. Longe de render quinze a vinte mil francos, como a dos irmãos Cointet, livreiros-impressores do bispado, proprietários do Correio de Charente, então o único jornal do departamento, a tipografia de Séchard filho produzia apenas trezentos francos por mês, com os quais tinha que prover aos vencimentos do chefe de oficina, o ordenado de Marion, os impostos, o aluguel; o que reduzia David a uma centena de francos mensais. Homens ativos e industriosos teriam renovado os tipos, adquirido prelos de ferro, teriam buscado nas livrarias parisienses obras que imprimiriam a baixo preço: mas o mestre e o chefe da oficina, perdidos nos absorventes trabalhos da inteligência, contentavam-se com as encomendas que lhes confiavam os últimos clientes. Os irmãos Cointet acabaram por conhecer o caráter e os costumes de David, e não o caluniavam mais; ao contrário, uma sábia política lhes aconselhava deixar vegetar a tipografia, entretendo-a numa honesta mediocridade, para que não viesse a cair nas mãos de algum temível antagonista; enviavam-lhe mesmo trabalhos dos chamados “da praça”. Assim, sem o saber, David Séchard não existia, comercialmente falando, senão por hábil cálculo de seus concorrentes. Felizes com o que denominavam sua mania, os Cointet tinham para com ele procedimento na aparência cheio de retidão e lealdade; agiam, porém, na realidade, como a administração das empresas de transporte, quando simulam uma concorrência para evitar alguma de verdade.
O exterior da casa Séchard estava em harmonia com a crassa avareza que reinava no seu interior, onde o velho Urso jamais consertara coisa alguma. A chuva, o sol, as intempéries de cada estação haviam dado o aspecto de um velho tronco de árvore à porta do corredor, tão sulcada estava de fendas irregulares.
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