Nessa difícil conjuntura, Jerônimo Nicolau Séchard teve a felicidade de encontrar um nobre marselhês que não queria nem emigrar, para não perder as terras, nem se mostrar, para não perder a cabeça, e que só poderia arranjar o que comer por um trabalho qualquer. O sr. conde de Maucombe[7] envergou assim o humilde avental de um chefe de oficina de província: compôs, leu e revisou os decretos que impunham a pena de morte aos cidadãos que escondessem nobres; o Urso tornado Bobo os imprimiu e fez afixar; e ambos se conservaram sãos e salvos. Em 1795, passada a borrasca do Terror, Nicolau Séchard viu-se forçado a procurar outro chefe que pudesse compor, revisar e conduzir a oficina. Um padre, depois bispo com a Restauração, e que se recusava por esse tempo a prestar juramento, substituiu o conde de Maucombe até o dia em que o primeiro-cônsul restabeleceu a religião católica. O conde e o bispo viriam a encontrar-se mais tarde na mesma bancada da Câmara dos Pares.
Se em 1802 Jerônimo Nicolau Séchard não sabia nem ler nem escrever melhor do que em 1793, arranjara um material bastante sólido para poder pagar um chefe de oficina. O oficial tão descuidoso do seu futuro tornara-se temível para os seus símios e ursos. A avareza começa onde cessa a pobreza. No dia em que o impressor lobrigou a possibilidade de fazer fortuna, o interesse desenvolveu-lhe uma inteligência material ávida, suspeitosa e penetrante. Sua prática desafiava a teoria. Acabara por calcular à simples vista o preço de uma página ou duma folha, segundo a espécie dos caracteres. Provava aos seus ignaros fregueses que a composição das letras maiores custava mais caro que a das pequenas; mas se fosse o caso destas, dizia logo que eram muito mais difíceis de manejar. Sendo a composição a parte da tipografia de que nada conseguira entender, tinha tanto medo de enganar-se que só fazia contratos leoninos. Se seus tipógrafos trabalhavam por hora, seus olhos não os deixavam nunca. Se sabia de um fabricante em apertos, adquiria seu estoque de papel a preço vil e o guardava. Desse modo, sem demora se tornara proprietário da casa onde a tipografia se alojava desde tempos imemoriais. Conheceu toda a espécie de felicidade: enviuvou, ficando com um único filho; colocou-o no liceu da cidade, menos para dar-lhe educação do que para preparar um sucessor; tratava-o severamente a fim de prolongar a duração do poder pátrio; nos dias de férias fazia-o trabalhar nas caixas aconselhando-o a aprender a ganhar a vida para poder um dia recompensar seu pobre pai, que sangrava para educá-lo.
Por ocasião da partida do padre, Séchard escolheu para chefe da oficina aquele dentre os quatro tipógrafos que o futuro bispo lhe indicara como possuidor de tanta probidade quanta inteligência. Assim, o velhote achou-se em condições de esperar o momento em que o filho pudesse dirigir o estabelecimento, que prosperaria então dirigido por mãos hábeis e jovens.
David Séchard completou no liceu de Angoulême os mais brilhantes estudos. E embora o Urso, que prosperara sem conhecimentos e sem educação, desprezasse inteiramente a ciência, o pai Séchard enviou o filho a Paris para estudar a alta tipografia; fez-lhe, porém, tão violenta recomendação no sentido de economizar boa soma na capital que ele denominava o paraíso dos trabalhadores, advertindo-lhe que não contasse com a bolsa paterna, que aquela estada no país de Sapiência devia afigurar-se-lhe um meio de chegar aos seus fins.
Aprendendo o ofício, David acabou sua educação em Paris. Chefe das oficinas dos Didot, tornou-se um sábio. Pelo fim do ano de 1819, David Séchard deixou Paris sem ter custado sequer uma moeda de cobre ao pai, que o chamava para entregar-lhe o timão dos negócios. A tipografia de Nicolau Séchard possuía então o único jornal de editais que existia no departamento, a exclusividade das publicações da Prefeitura e do bispado, três clientelas que deveriam proporcionar grande fortuna a um rapaz ativo.
Precisamente por essa época, os irmãos Cointet, fabricantes de papel, haviam comprado a segunda patente de impressor da cidade de Angoulême, que até então o velho Séchard soubera reduzir à mais completa inutilidade, graças às crises militares que, durante o Império, comprometeram todo o desenvolvimento industrial; e, por isso mesmo, não procurara adquirir mais esse privilégio, e sua parcimônia viria a ser uma das causas de ruína da velha tipografia.
Ao saber da novidade, o velho Séchard pensou alegremente que a luta que iria travar-se entre o seu estabelecimento e o dos Cointet seria sustentada não por ele, mas pelo filho. “Eu sucumbiria nela”, pensou, “mas um rapaz educado pelos senhores Didot saberá safar-se.” O septuagenário suspirava pelo momento em que lhe fosse possível viver a seu modo. Se não tinha conhecimentos de alta tipografia, em troca passava por ser extremamente forte na arte que os operários, por caçoada, apelidaram de ebriografia, arte muito estimada pelo divino autor do Pantagruel,[8] mas cujo exercício, perseguido pelas sociedades chamadas de temperança, se encontra dia a dia mais abandonado.
Jerônimo Nicolau Séchard, fiel ao destino que o nome lhe traçara, sentia uma sede inextinguível. A esposa havia contido nos justos limites, durante muito tempo, aquela paixão pela uva esmagada, gosto tão natural nos ursos que o sr. de Chateaubriand a fez notar entre os verdadeiros ursos da América;[9] mas os filósofos observaram que os hábitos da juventude voltam com mais força na velhice. Séchard confirmava essa lei moral: quanto mais envelhecia, mais gostava de beber. A paixão deixava-lhe na fisionomia ursina marcas que a tornavam original: o nariz tomara o desenvolvimento e a forma de um A maiúsculo corpo triple canon, suas faces reticuladas de veias pareciam-se a essas folhas de parra cheias de gibosidades violáceas, purpurinas e por vezes matizadas; julgar-se-ia uma trufa monstruosa envolta em pâmpanos de outono. Escondidos sob grandes sobrancelhas, que pareciam dois silvados cobertos de neve, seus pequenos olhos cinzentos, nos quais crepitava a manha de uma avareza que nele amortecia tudo, inclusive a paternidade, conservavam seu brilho mesmo na embriaguez. Sua cabeça calva e descorada, mas cintada de cabelos grisalhos ainda crespos, trazia à imaginação os frades dos Contos de La Fontaine.[10] Era parrudo e bojudo como muitos desses velhos lampiões que consomem mais óleo do que mecha; aliás, os excessos em todas as coisas modelam os corpos segundo suas características.
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