Por isso eu queria ser digna de ser amada pelo meu Luciano. Daí veio a minha desgraça. Ontem, na Ópera, fui reconhecida por uns rapazes que têm tanto coração como os tigres têm piedade; e ainda assim eu antes preferiria entender-me com um tigre. Caiu o véu de inocência que eu trazia; as risadas daquela gente despedaçaram-me a cabeça e o coração. Não julgue o senhor que me salvou; eu vou morrer de desgosto.

— Véu de inocência?... — disse o padre. — Então tratou Luciano com o máximo rigor, não é assim?

— Ah, meu padre! Como é que o senhor, conhecendo-o, me faz semelhante pergunta? — respondeu ela com um sorriso soberbo. — A um Deus não se resiste.

— Não blasfeme — disse o eclesiástico em tom brando. — Ninguém pode assemelhar-se a Deus. Fica mal a exageração ao verdadeiro amor; você não tinha pelo seu ídolo um amor puro e verdadeiro. Se tivesse sofrido a mudança que diz, teria adquirido as virtudes que são o apanágio da adolescência, teria conhecido as delícias da castidade, as delicadezas do pudor, essas duas glórias da donzela. Você não ama.

Ester fez um gesto de assombro que o padre viu, mas que não abalou a impassibilidade de semelhante confessor.

— Sim; você o ama por si, e não por ele; pelos prazeres temporais que a encantam, e não pelo amor em si mesmo; se você se houvesse apoderado dele assim, não teria esse tremor sagrado que uma criatura sobre a qual Deus pôs o cunho das mais adoráveis perfeições inspira. Ter-se-á você lembrado de que o ia degradar com a sua impureza passada, que ia corromper uma criança com essas espantosas delícias que mereceram a você a alcunha que tem, gloriosa de infâmia? Você foi inconsequente consigo mesma e com a sua paixão de um dia...

— De um dia! — repetiu ela, erguendo os olhos.

— Que nome dar a um amor que não é eterno, que não nos une, até o futuro do cristão, àquele que amamos?

— Ah, eu quero ser católica! — exclamou Ester num tom surdo e violento que bastaria para lhe obter a graça do Salvador.

— Acaso uma rapariga que não recebeu o batismo da Igreja nem o da ciência, que não sabe ler nem escrever nem rezar, que não pode dar um passo sem que as pedras das ruas se levantem para a acusar, notável apenas pelo fugitivo privilégio de uma formosura que a doença amanhã apagará talvez; acaso essa criatura envilecida, degradada, e que conhecia sua degradação (sendo ignorante e menos amante, você teria sido desculpável...), acaso a presa futura do suicídio e do inferno podia ser a mulher de Luciano de Rubempré?

Cada frase era uma punhalada que lhe entrava até o íntimo do coração. A cada frase, os soluços crescentes, as lágrimas abundantes da consternada rapariga atestavam a força com que a luz penetrava simultaneamente na sua inteligência pura como a de um selvagem, na sua alma enfim desperta, na sua natureza em que a depravação lançara uma camada de gelo lamacento, que então se derretia ao sol da fé.

— Ah, por que não morri? — era a única ideia que ela exprimia no meio das torrentes de ideias que se atropelavam no seu cérebro, devastando-o.

— Minha filha — disse o terrível juiz —, há um amor que não se confessa perante os homens, e cujas confidências são recebidas com sorrisos de felicidade pelos anjos.

— Qual?

— O amor sem esperança quando inspira a vida, quando introduz nela o princípio das dedicações, quando enobrece todos os atos com o pensamento de atingir uma perfeição ideal. Os anjos aprovam esse amor, porque ele leva ao conhecimento de Deus. Aperfeiçoar-se constantemente para vir a ser digno daquele a quem se ama, fazer-lhe mil sacrifícios secretos, adorá-lo de longe, dar seu sangue gota a gota, imolar-lhe seu amor-próprio, não ter mais nem orgulho nem cólera com ele, ocultar-lhe até mesmo o conhecimento dos ciúmes atrozes que ele acende no coração, dar-lhe tudo o que ele deseja, até com detrimento nosso, amar o que ele ama, ter sempre os olhos nele para segui-lo sem que ele o saiba; um amor assim a religião perdoaria, porque não ofenderia nem as leis humanas nem as leis divinas, e porque conduziria a um caminho bem diverso do das suas sórdidas volúpias.

Ouvindo aquela horrível sentença expressa por uma palavra (e que palavra! e de que entoação foi acompanhada!), Ester caiu numa desconfiança bem legítima. Essa palavra foi como um trovão que anuncia uma tempestade prestes a desabar. A pobrezinha olhou para o padre, e o homem sentiu essa ânsia de entranhas que subjuga ainda o mais destemido em face de um perigo iminente e súbito. Nenhum olhar poderia ler o que então se passava naquele homem; todavia, para os mais afoitos haveria mais a tremer que a esperar do aspecto de seus olhos, outrora claros e amarelos como os dos tigres, e sobre os quais as austeridades e as privações tinham colocado um véu semelhante ao que se encontra nos horizontes no meio da canícula: a terra é quente e luminosa, mas o nevoeiro torna-a indistinta, vaporosa, quase invisível. Uma gravidade inteiramente espanhola, umas rugas profundas que as mil cicatrizes de umas horríveis bexigas tornavam hediondas e semelhantes a rodeiras recortadas em vários sentidos sulcavam seu rosto cor de azeitona e recozido do sol. A dureza dessa fisionomia ainda mais sobressaía por causa da ressequida cabeleira do padre, que já não se importava com sua pessoa, uma cabeleira pelada que, na claridade, era de um preto tirante a vermelho. Seu busto de atleta, suas mãos de velho soldado, a largura dos ombros, as fortes espáduas pertenciam a essas cariátides que os arquitetos da Idade Média empregaram em alguns palácios italianos, e que lembram vagamente as da fachada do teatro da Porte Saint-Martin. As pessoas menos perspicazes haviam de pensar que as mais cálidas paixões ou acidentes pouco comuns tinham lançado aquele homem no seio da Igreja; por certo só os raios mais formidáveis poderiam mudá-lo, se é que semelhante natureza era suscetível de mudança.

vii − o que são as cortesãs

As mulheres que têm levado a vida agora tão violentamente repudiada por Ester chegam a uma indiferença absoluta sobre as formas exteriores do homem. Elas se parecem com o crítico literário de hoje, que, sob certos aspectos, pode ser-lhes comparado, e que chega a uma profunda indiferença por fórmulas de arte: tem lido tantas obras, tem visto tantas passar de moda, tem-se acostumado tanto às páginas escritas, tem sofrido tantos desenlaces, visto tantos dramas, feito tantos artigos sem dizer o seu pensamento, traindo tantas vezes a causa da arte em benefício de suas amizades ou inimizades, que acaba enojado de tudo e apesar disso continua a julgar. É preciso um milagre para que esse escritor produza uma obra, da mesma forma que o amor puro e nobre exige outro milagre para desabrochar no coração duma cortesã. O tom e as maneiras daquele padre, que parecia ter-se despegado de uma tela de Zurbarán,[45] se afiguraram tão hostis à pobre rapariga, a quem a forma pouco importava, que ela se julgou antes figura necessária de um plano do que objeto de uma solicitude. Sem poder distinguir entre a hipócrita amabilidade do interesse pessoal e a unção da caridade, pois é necessário estar de sobreaviso para distinguir a moeda falsa que um amigo dá, ela sentiu-se como entre as garras de uma ave monstruosa e feroz, que sobre ela caía depois de se ter librado muito tempo nos ares, e, no seu terror, disse com voz de susto estas palavras:

— Eu julgava que os padres eram encarregados de nos consolar, no entanto o senhor me assassina!

A este grito da inocência, o clérigo deixou escapar um gesto e fez uma pausa. Concentrou-se antes de responder. Durante essa breve pausa, aquelas duas pessoas reunidas de uma maneira tão estranha examinaram-se furtivamente. O padre compreendeu a rapariga, mas a rapariga não pôde compreender o padre.