Caminhamos sob uma luz tão pura e brilhante, a dourar a grama seca e as folhas, uma luz tão suave e serena, que julguei nunca ter me banhado antes em tal maré dourada, sem ondas e sem murmúrio. O lado oeste de cada bosque e elevação de terreno cintilava como as bordas dos Campos Elíseos, e o sol nas nossas costas era como um brando pastor a nos conduzir à noite de volta para casa.
Assim peregrinamos rumo à Terra Santa, até que um dia o sol brilhe com mais intensidade do que nunca, até que ele brilhe talvez dentro de nossas mentes e corações, iluminando nossas vidas inteiras com uma grande luz que desperta os sentidos, tão tépida, serena e dourada como a que banha uma margem de rio no outono.
a- Trecho (estrofes 445 e 446) de Gest of Robyn Hode (Gesta de Robin Hood), balada inglesa anônima.
b- Há no original um jogo de palavras intraduzível. Thoreau joga com dois sentidos do verbo to stand, usando-o, primeiro, como “aguentar” e, depois, como “ficar em pé”. As mulheres citadas “aguentam”, mas não necessariamente “em pé”.
c- Marco Terêncio Varrão (116 a.C.-27 d.C.) foi um escritor e erudito romano.
d- Letes ou Lete: um dos cinco rios do inferno, segundo a mitologia grega. As almas dos mortos que bebessem de suas águas não se lembrariam mais de seu passado na Terra. Mais adiante, o autor refere-se ao Estige, outro rio infernal da mitologia grega.
e- Trecho do prólogo dos Contos da Cantuária, de Geoffrey Chaucer (c. 1343-1400). Dizem os versos originais, em inglês arcaico: “Than longen folk to goon on pilgrimages,/ And palmeres for to seken strange strondes”.
f- Jardins onde viviam as ninfas Hespérides, localizados às margens do rio Oceano. Na mitologia grega, as Hespérides encarnam o crepúsculo, a transição entre o dia e a noite.
g- Trecho do poema Lycidas (1638), do poeta inglês John Milton (1608-74). Eis os versos originais: “And now the Sun had stretched out all the hills,/ And now was dropped into the western bay;/ At last he rose, and twitched his mantle blue;/ To-morrow to fresh woods and pastures new”.
h- Refere-se a François André Michaux (1770-1855), filho de André Michaux (1746-1802), ambos biólogos e exploradores franceses, que viajaram juntos e separados pela América do Norte e escreveram livros sobre sua flora. O Michaux citado no parágrafo anterior é o pai.
i- Célebre frase de John Quincy Adams (1767-1848), presidente dos Estados Unidos entre 1825 e 1829.
j- Panorama, aqui, tem o sentido, registrado pelo Houaiss, de “amplo quadro circular que permite ao espectador, colocado num ponto central, observar, como se estivesse do alto, objetos representados”. Eram comuns os espetáculos dessa espécie de pré-cinema na época em que Thoreau escreve.
k- Ben Jonson (1572-1637): poeta, dramaturgo e ator inglês, contemporâneo de Shakespeare. O verso citado faz parte da mascarada Love Freed from Ignorance and Folly, de 1611.
l- Lake Poets: grupo de poetas ligados ao romantismo que viviam no Lake District, na Inglaterra, na virada do século xviii para o xix. Entre eles destacavam-se William Wordsworth, Samuel Taylor Coleridge, Robert Southey e, posteriormente, Thomas De Quincey.
m- Referência a um ditado antigo que dizia, com relação às horas necessárias de sono: “Seis para um homem, sete para uma mulher e oito para um bobo”.
n- Jogo de palavras com o nome Concord, que significa “concórdia, harmonia”.
Vida sem princípios
[1863]
Num liceu, há não muito tempo, senti que o conferencista escolhera um tema que lhe era demasiado alheio, e desse modo me fez perder completamente o interesse pelo que dizia. Descrevia coisas que não estavam dentro dele, nem eram próximas a seu coração, mas com as quais só tinha uma relação superficial. Não havia, nesse sentido, um pensamento verdadeiramente central em sua conferência. Eu teria preferido que ele lidasse com suas experiências mais pessoais, como faz o poeta. A melhor homenagem que já me fizeram foi quando alguém me perguntou o que eu pensava, e deu atenção à minha resposta. Fico ao mesmo tempo surpreso e contente quando isso acontece, pois é um uso raro que a pessoa faz de mim, como se estivesse familiarizada com o instrumento. Em geral, quando as pessoas querem alguma coisa de mim, é só para saber quantos acres examinei de suas terras, já que sou agrimensor, ou, no máximo, quais são as notícias que me pesam sobre os ombros. Nunca se empenharam em conhecer a minha carne; contentam-se com a casca. Um homem uma vez percorreu uma distância considerável para vir me convidar a fazer uma palestra sobre a escravidão; mas, na nossa conversa, percebi que ele e sua turma pretendiam que sete oitavos da palestra fossem deles, deixando só um oitavo para mim; portanto, declinei. Quando sou convidado a dar uma conferência em algum lugar — pois tenho alguma experiência nisso —, tomo como ponto pacífico que existe um desejo de ouvir o que eu penso de determinado assunto, ainda que eu possa ser o maior tolo do país, e não que eu deva simplesmente dizer coisas agradáveis, com as quais a plateia vai concordar; e decido, consequentemente, que colocarei no discurso uma grande dose de mim mesmo. Foram me procurar, e comprometeram-se a pagar por mim, portanto decido que é a mim que eles terão, mesmo que eu os aborreça a mais não poder.
Então eu digo agora algo semelhante a vocês, meus leitores. Já que vocês são meus leitores, e que não sou um grande viajante, não falarei sobre gente que vive a 2 mil quilômetros de distância, mas me manterei o mais próximo possível de casa. Como o tempo é curto, deixarei de lado toda adulação e reterei apenas a perspectiva crítica.
Vamos examinar o modo como levamos nossas vidas.
Este mundo é um lugar de negócios. Que alvoroço sem fim! Sou despertado quase toda noite pelo resfolegar da locomotiva. Ela interrompe meus sonhos. Não há dia de descanso. Seria glorioso ver a humanidade ter descanso uma vez na vida.
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