Em vez de ler o Times, leiamos a Eternidade. Os convencionalismos, em última instância, são tão ruins quanto as impurezas. Até os fatos da ciência podem empoeirar a mente com sua secura, a menos que sejam, num certo sentido, apagados a cada manhã, ou antes tornados férteis pelo orvalho da verdade fresca e vívida. O conhecimento não nos chega em detalhes, mas em lampejos da luz celeste. Sim, cada pensamento que atravessa a mente ajuda a desgastá-la e a aprofundar seus sulcos, que, assim como nas ruas de Pompeia, evidenciam o quanto ela foi usada. Há tantas coisas que poderíamos muito bem decidir ignorar — decidir deixar que as carrocinhas de mascates que as carregam atravessem, no mais lento dos passos, a ponte de gloriosa extensão pela qual confiamos passar finalmente da mais distante margem do tempo para a mais próxima praia da eternidade! Será que não temos nenhuma cultura, nenhum refinamento, mas apenas talento para viver grosseiramente e servir ao Demônio, para adquirir um pouco de riqueza mundana, ou fama, ou liberdade, e exibir tudo isso como se fôssemos só casca, sem nenhum grão delicado e vivo em nosso interior? Será que nossas instituições devem ser como aquela castanha-brava que só produz frutos abortivos, cuja única utilidade é espetar-nos os dedos?
Dizem que a América é a arena onde se trava a batalha da liberdade, mas certamente não se está querendo dizer liberdade num sentido meramente político. Mesmo se concordarmos que o americano se livrou de um governante tirano, ele ainda é escravo de uma tirania econômica e moral. Agora que a república — a res-publica — foi estabelecida, é hora de cuidar da res-privata, o estado privado, cuidando para que “ne quid res-PRIVATA detrimenti caperet” (o estado privado não seja prejudicado), como exortava o senado romano a seus cônsules.
E chamamos isto de terra da liberdade? De que adianta ficarmos livres do rei George se seguimos escravos do rei Preconceito? De que adianta nascer livre e não viver em liberdade? Qual é o valor de qualquer liberdade política se não for um meio para a liberdade moral? A liberdade de que nos vangloriamos é a liberdade de ser escravos ou a liberdade de ser de fato livres? Somos uma nação de políticos, preocupados apenas com a defesa exterior da liberdade. São os filhos dos nossos filhos que poderão talvez ser realmente livres. Nossos impostos são cobrados de modo injusto. Há uma parcela de nós que não é representada. É tributação sem representação. Damos abrigo a soldados, a idiotas e a todo tipo de gado dentro de nós. Abrigamos nosso corpo bruto em nossa pobre alma, até que aquele devore toda a substância desta.
No que diz respeito a uma verdadeira cultura e humanidade, somos ainda essencialmente provincianos, não cosmopolitas. Meros Jônatas.j Somos provincianos porque não encontramos nossos valores em nossa própria terra, porque não veneramos a verdade, mas os reflexos da verdade, porque somos deformados e reduzidos por uma devoção exclusiva aos negócios, ao comércio, à manufatura, à agricultura e coisas do tipo, que são apenas meios e não fins em si mesmos.
Igualmente provinciano é o Parlamento inglês. Meros matutos, eles traem a si mesmos cada vez que emerge uma questão mais importante para decidirem, como por exemplo a questão da Irlanda — por que não dizer a questão inglesa? Suas naturezas são subjugadas por suas ocupações. Suas “boas maneiras” dizem respeito apenas a coisas secundárias. As melhores maneiras do mundo não passam de inaptidão e estupidez quando contrastadas com uma inteligência mais refinada. Parecem apenas modas de tempos passados, mera etiqueta, antiquadas mesuras e roupas rendadas. É o caráter vicioso das maneiras, não sua excelência, que é continuamente abandonado pelo caráter; elas são como roupas descartadas ou cascas, reivindicando o respeito que pertencia à criatura viva. Oferecem-nos a casca, não a carne, e não é desculpa o fato de que, no caso de alguns moluscos, a concha é mais valiosa do que a carne. O homem que empurra suas maneiras para cima de mim age como se insistisse em me apresentar sua coleção de curiosidades, quando o que eu desejo ver é ele mesmo. Não foi com esse sentido que o poeta Decker chamou Cristo de “o primeiro cavalheiro de verdade que existiu”. Repito que nesse sentido a mais esplêndida corte da Cristandade é provinciana, tendo autoridade para tratar apenas dos interesses transalpinos, mas não dos assuntos de Roma.
Um pretor ou procônsul seria suficiente para resolver as questões que absorvem a atenção do Parlamento inglês e do Congresso americano.
Governo e legislativo! Pensei que fossem profissões respeitáveis. Na história do mundo ouvimos falar de divinos Numas Pompílios, Licurgos e Solons, cujos nomes ao menos podem significar legisladores ideais; mas o que dizer de uma legislação que regula a procriação de escravos ou a exportação de tabaco? O que têm legisladores divinos a ver com a exportação e importação de tabaco? O que legisladores humanos têm a ver com a procriação de escravos? Suponhamos que a questão fosse submetida a qualquer filho de Deus (e Ele não tem filhos no século xviii? Trata-se de uma família extinta?): em que condições ela retornaria a nós? O que teria a dizer em sua defesa no juízo final um estado como a Virgínia, que tem nessas duas coisas — escravos e tabaco — sua principal produção? Que base existe para o patriotismo num estado como esse? Extraio meus dados de quadros estatísticos publicados pelos próprios estados.
Um comércio que branqueia todos os mares em busca de nozes e passas, e com esse propósito converte seus marinheiros em escravos! Vi outro dia um navio que tinha naufragado, com a perda de muitas vidas, e sua carga de trapos, bagas de zimbro e amêndoas amargas espalhadas pela praia. Pareceu-me nada compensador enfrentar os perigos do mar entre Livorno e Nova York por causa de uma carga de bagas de zimbro e amêndoas amargas. A América mandando buscar seus alimentos amargos no Velho Mundo! A água do mar, o naufrágio, já não são amargos o bastante para azedar nosso cálice da vida? No entanto é esse, em grande medida, nosso alardeado comércio; e há aqueles que se intitulam estadistas e filósofos que são tão cegos a ponto de pensar que o progresso e a civilização dependem precisamente desse tipo de intercâmbio e atividade — a atividade de moscas girando ao redor de um barril de melado. Muito bem, pode dizer alguém, desde que os homens fossem ostras. E muito bem, respondo eu, desde que os homens fossem mosquitos.
O tenente Herndon, que o nosso governo enviou para explorar a Amazônia e, segundo dizem, ampliar a área da escravidão, observou que lá havia falta “de uma população industriosa e ativa, que conheça os confortos da vida e tenha necessidades artificiais que a incitem a extrair os grandes recursos do país”. Mas quais seriam as “necessidades artificiais” a ser estimuladas? Não o gosto pelos supérfluos, como o tabaco e os escravos de sua Virgínia natal, nem o gelo, o granito e outras riquezas materiais da nossa Nova Inglaterra; “os grandes recursos de um país” tampouco seriam a fertilidade ou aridez do solo que produz tais riquezas.
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