A Fera na Selva (Novelas Imortais)
Coleção Novelas Imortais
A FERA NA SELVA
HENRY JAMES
tradução de
Fernando Sabino

“Trabalhamos no escuro – fazemos o
que podemos – damos o que temos. Nossa dúvida
é nossa paixão e nossa paixão é nosso dever.
O resto é a loucura da arte.”
— HENRY JAMES
Sumário
Capa
Folha de rosto
Epígrafe
Henry James
A fera na selva
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4
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6
Créditos
Henry James
NA VERDADE, nada aconteceu a Henry James. Neste sentido, é significativo que eu tenha escolhido na sua imensa obra justamente esta novela, para apresentá-lo ao leitor brasileiro: nela, o personagem principal se vê às voltas com o problema de nada lhe acontecer na vida.
Na do autor, se alguma coisa lhe aconteceu, foi negativa: um acidente que lhe injuriou as costas para sempre, impedindo-o que se tornasse soldado durante a Guerra Civil. E levando-o a refugiar-se para sempre na literatura. Nunca se casou, não se registrando ao longo de sua vida nenhuma relação amorosa com alguma mulher – ou algum homem. Nunca precisou de trabalhar para assegurar o seu sustento. Morreu aos 73 anos de idade, a 28 de fevereiro de 1916, tendo nascido nos Estados Unidos, na cidade de Nova Iorque, a 15 de abril de 1843. Em 1875, aos 32 anos portanto, mudou-se para a Europa e passou a viver para sempre na Inglaterra, naturalizando-se inglês um ano antes de morrer. Os seus dados estritamente biográficos se resumem a isto.
Embora nada lhe acontecesse, tudo lhe aconteceu. Privou da amizade dos maiores escritores de seu tempo, como Turguenev, Flaubert, Renan, Zola, Daudet, George Eliot, Ruskin, Morris, Tennyson, Browning, Gladstone, Stevenson e tantos outros. No plano da cultura, da inteligência e da sensibilidade, foi uma das figuras mais atentas e participantes do século XIX, a se julgar pelo que pôde observar do comportamento humano ao seu redor e registrá-lo ao longo de dezenas de romances, novelas, contos, ensaios críticos, dramas e narrativas de viagem.
Muito admirado (e pouco lido) como precursor da moderna ficção, foi quem introduziu o flashback e a narração indireta no romance. Sua volumosa obra é de fazer o leitor se perder numa profusão avassaladora de volumes, se não disciplinar a leitura atentando para a divisão em três fases distintas.
A primeira tem como temática principal o conflito entre a mentalidade americana, principalmente o puritanismo da Nova Inglaterra, e a tolerância europeia. A obra principal deste período é o romance Portrait of a Lady (Retrato de uma senhora).
Na segunda, a nota predominante é a da desilusão na meia-idade, decorrente da falta de consagração popular que sua obra não conseguira alcançar até então. Durante alguns anos ele tentou sem sucesso o teatro, voltando à ficção em obras cujo tema refletia o drama do artista em face da sociedade aristocrática. Característica desta época é o romance The Princess Casamassima (A princesa Casamassima) e particularmente The Tragic Muse (A musa trágica) em que já se anteviam as profundezas nas quais o autor em breve mergulharia.
A terceira fase decorreu da sua determinação de escrever apenas para si mesmo e seu reduzido público. Os temas são cada vez mais impregnados da preocupação fundamental com o problema moral de opção entre o bem e o mal. O leitor já não tem a atenção voltada para a história, propriamente, quase sempre de desenvolvimento arrastado e aparentemente convencional, mas para a maneira com que ela é focalizada: do ponto de vista particular do autor, dando a quem o lê a impressão de estar presente no momento da ação. Com isso ele superava as limitações da ficção tradicional e se tornava um inovador: em vez da aparência do personagem, é seu caráter que se entrevê a cada linha, numa linguagem indireta de admirável finura. A esta fase, na qual sobressaem os livros mais importantes da sua obra, como The Ambassadors (em>Os embaixadores), The Wings of the Dove (As asas da pomba), The Golden Bowl (O vaso de ouro) e inúmeras novelas, pertence a obra-prima da novelística universal, The Beast in the Jungle (A fera na selva), que selecionei para iniciar a coleção “Novelas Imortais”.
Seleção temerária – a partir do próprio autor escolhido. Não me refiro às dificuldades de compreensão dos mistérios que ele vai semeando a cada página de suas obras, enquanto desvenda outros na página seguinte, num jogo de sutilíssima inteligência em que parece divertir-se com o leitor. Refiro-me também à dificuldade da tradução propriamente dita, que me trouxe o arrependimento tão logo a iniciei. Não é de se admirar que Henry James praticamente mal tenha sido apresentado em língua portuguesa. É que as nuanças de um inglês refinadíssimo, semeado de comparações, metáforas, requintadas expressões idiomáticas e toda espécie de preciosas figuras de retórica, representam para o tradutor uma armadilha a cada passo. Não se falando da dificuldade decorrente do próprio tema desta novela em particular, circunscrito à relação, ao longo dos anos, entre um homem e uma mulher a quem nada acontece. O problema dos possessivos his e her, por exemplo, que em nossa língua não concordam em gênero com o possuidor, como no inglês, e sim com o objeto possuído, levou o texto, para maior clareza, a embrenhar-se numa verdadeira selva de deles e delas em vez de seus e suas – assim como o pronome neutro it a uma chuva de issos e aquilos. A riqueza estilística do autor é tão extraordinária que o leva a empregar a mesma expressão, às vezes até na mesma frase, com acepções diversas. Como é o caso, por exemplo, da palavra vagueness, que em português tanto pode ser incerteza, confusão, dúvida ou insegurança, e não vaguidão – o tradutor que adivinhe o que o autor quis dizer.
Nem por isso a aventura em que me meti se tornou menos fascinante. Procurei respeitar a duras penas a sintaxe arrevesada do texto original, tão característica do estilo jamesiano, para reproduzir na medida do possível os volteios, meandros e torneios labirínticos em que sua prosa às vezes se mete, tentando (e conseguindo) dizer o indizível. A leitura exige rigorosa atenção – mas sempre bem recompensada.
Quanto ao conteúdo propriamente dito, nada devo adiantar, para não tirar a surpresa da história, principalmente do final. Estou certo de que na última página a Fera emboscada na Selva haverá de desfechar sobre o leitor o seu bote fatal, como fez comigo, da primeira vez que li esta novela para sempre inesquecível.
FERNANDO SABINO
(1986)
A FERA NA SELVA
1
POUCO importa o que motivou a surpreendente conversa que tiveram durante o encontro, tendo sido provavelmente apenas algumas palavras que ela disse sem qualquer intenção, enquanto os dois iam caminhando lentamente, e ficando para trás, depois de terem renovado o conhecimento um do outro.
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