a felicidade, a incomparável felicidade da morte!...
Eu vi, senti, compreendi a morte, que se patenteou tal qual é, a visão do bem!
Eu vi a morte — mal julgada, caluniada pelos homens — sono plácido, suavíssimo que começa à última dor, ao extremo transe da vida, e que acaba ao despertar nas delicias da eternidade; paz sem cuidados, sossego sem a mais leve perturbação — véspera instantânea da verdadeira vida — porta do fim que é luz celeste. — Oh! que gozos na morte! a podridão e o fétido do cadáver em sublime contraste muito de longe dariam idéia da pureza e do angélico aroma da alma que se desprende do pó! Que gozos na morte! O mais vaidoso dos reis sente-se pela primeira vez verdadeiramente grande e exaltado elevando-se à esfera onde se encontra igual ao mais humilde e rude dos vassalos ou escravos que tivera!... Não há dor, nem ânsias, nem moléstias, nem privações, nem miopia na imensa e refulgente região da morte! Aquela frieza enregelada do cadáver significa esquecimento absoluto das penas da vida efêmera e mundana.
Pela morte o escravo é livre, a criança e a virgem são anjos, a esposa jovem, a matrona e a velha santas, a mundanaria é Madalena purificada, o malvado, o celerado são arrependidos que se regeneram, o desgraçado é feliz, o mudo tem voz, o paralítico voa, o surdo ouve segredos, o cego vê nas trevas, o desgraçado é perfeitamente feliz!...
A morte é Jordão que lava as culpas...
A morte é glória...
A morte é luz...
Só a morte é que dá principio à vida.
Eis um pouco do muito que a visão do bem me fez descobrir e apreciar na morte.
O préstito já tinha passado.
Deixei cair a luneta mágica.
Abismei-me em profunda introversão, no estado da minha intima consciência, no estado novo e extraordinário do meu espírito...
Achei-me consolado, forte, invencível, contente, feliz...
Eu desejava, almejava morrer...
Morrer era começar a viver... e a viver que vida de delícias!...
Eu acabava de conceber a idéia, e de abraçar-me com a idéia do suicídio.
XXX
Examinei o ponto da cidade onde me achava, e logo conheci que havia parado para ver passar o préstito fúnebre no lugar, que é corte da Rua dos Barbonos, fim da das Mangueiras. e principio da dos Arcos.
A breve distancia estava pois mais adiante a ladeira do morro dantes chamado do Desterro, e desde o século passado de Santa Teresa.
Mais de um suicídio se tem realizado no alto, e nos desertos abismos daquele monte.
Instintivamente mas sem dúvida com a idéia da morte, dirigi-me para a ladeira, e comecei a subi-la passo a passo, com vagar e tranqüilidade, com ânimo sereno, e com o firme propósito de pôr termo a minha vida.
Eu não tinha comigo nem punhal, nem veneno, nem revólver, não levava pois arma, ou instrumento, ou meio de morte, e contudo subia a ladeira com intento de me matar.
A visão do bem me levava à morte.
Eu nunca visitara o sitio famoso do Corcovado; ouvira porém dizer que lá havia enorme precipício, profundíssimo abismo, no seio do qual a morte era certa para o infeliz que por acaso a ele se arrojasse.
Se as informações não eram falsas, o propósito me daria o fim, que receava do acaso ou da imprudência.
Não me era pois necessário levar comigo punhal, veneno, ou revólver: eu tinha por mim o abismo.
Fui subindo a ladeira tranqüila e pausadamente, descansando aqui, ali, e deleitando-me a ouvir o leve ruído das águas da Carioca, que em alguns pontos do antigo encanamento mandado construir pelos vice-reis do tempo colonial, parecem murmurar da negligência, ou da comparativa inferioridade da administração da nossa época, que vinte vezes por ano deixa o povo em penúria d'água, e diariamente lhe da água da Tijuca toldada, mal zelada, e não aquela tão pura e admirável a que o gentio chegava a dar o condão de acender' a inspiração da poesia
E fui subindo sempre.
A noite era formosa; a lua em fase plena mergulhava a cidade em um oceano de luz pálida, mas clara, suave, encantadora e romanesca.
Muitas vezes voltava-me para contemplar essa já grande Babel, esse labirinto de ruas que formam a opulenta capital do Brasil, e me embebia por minutos no grandioso panorama da bela sebastianópolis iluminada por milhares de flamas de gás, que simulavam enfeitiçá-la em noite de festa.
E de cada vez que me voltava para a cidade, eu dela me despedia, dizia-lhe o adeus saudoso e melancólico do filho que se separa da família, e que sabe que não voltará mais ao seu lar.
Eu subia sempre; o silêncio da noite era só interrompido pelo latir dos cães que, sentinelas vigilantes, guardavam as chácaras.
Ainda era cedo, mas a solidão completa; e todavia eu não tinha receio de encontro algum suspeito ou sinistro; receio de quê?... pobre e decidido a morrer, rir-me-ia do ladrão, do assassino que me atacasse.
Depois de muito longa marcha ouvi a voz de um homem que caminhava adiante de mim e que cantava uma rude cantiga com acompanhamento de viola, que ele próprio executava.
Apressei o passo e apanhei o cantor.
Era um guarda do aqueduto.
Trocamos a saudação de — boa noite.
— Vou seguindo o caminho do Corcovado?
— Sim senhor; mas a estas horas?
— É proibido?
— Não; já sei: quer amanhecer lá.
— Adivinhou.
— Pois eu vou dormir às Paineiras.
— Tanto melhor para mim. E das Paineiras ao Corcovado?
— Não há que errar.
Fomos seguindo em silêncio: no fim de meia hora perguntei:
— Por que não canta?
— Gosta?
— Muito.
— O canto anima o trabalho e ilude a fadiga, disse o guarda.
E afinou a viola e cantou outra cantiga também rude, e monótona, mas saudosa e melancólica.
No meio da solidão e da noite o canto do guarda produzia em mim indizível impressão de suave tristura.
Observei com a luneta mágica por mais de três minutos o guarda, e vi que era pobre, tinha mulher e dois filhos, vivia alegre, e por seus dotes merecia as honras da terra e a maior estima dos homens.
Revoltou-me a posição obscura desse homem distintíssimo pela nobreza de caráter, e pela santidade do coração.
Quando acabou a cantiga, perguntei-lhe:
— Que pensa da vida?
— Que custa a viver.
— Não é melhor a morte?
— E minha mulher? e meus filhos?
— É feliz?
— Conforme: se me dessem o dobro do que ganho, eu me julgaria dobradamente feliz um dia.
— E por que não dois dias e mais?
— Porque é quase certo que no segundo dia eu desejaria ainda outra vez o dobro do que estivesse então ganhando.
— E não tem aflições?
— Às vezes, e sobretudo quando não trabalho; mas em tais casos Luisa deixa a costura e vem perguntar-me o que tenho; correm os meninos a pular-me ao pescoço, e lá se vai a tristeza pelo morro abaixo; ou, se estou só em casa pego na viola e canto.
— Que pensa dos homens?
— Bem e mal: nem confio nem desconfio, e julgo que é melhor não pensar neles.
— Por quê?
— Porque todo tempo é pouco para cada um pensar em si, na sua família, no seu trabalho, e nas contas que deve a Deus.
Eu admirava a sabedoria do guarda do aqueduto, e compreendi perfeitamente o seu amor, o seu apego à vida pelo encanto da esposa e dos filhos.
Só o egoísta pode almejar as delícias da morte, sendo esposo e pai; eu porém procurei debalde uma noiva, não tenho filhos e posso portanto e devo morrer.
Enlevado pela conversação ia continuá-la, quando o guarda me disse:
— Estamos nas Paineiras, e aqui nos separamos.
Ensinou-me o fácil caminho que me levaria ao Corcovado, deu-me — boa noite — e desapareceu, metendo-se por um trilho quase encoberto pelo mato.
XXXI
Lavado de suor e arfando de fadiga cheguei finalmente a alto ermo do Corcovado.
A lua brilhava formosíssima, e consultando o relógio, mercê da minha luneta mágica, vi que eram duas horas da madrugada.
Véu impenetrável de cerração cobria o mundo nos espaços imensos em torno do Corcovado.
Eu estava em pé no trono de vasto pais, submerso em dilúvio de neblina; compreendia a soberba majestade do meu sólio; mas tinha idéia das proporções dos meus Estados.
O vento frio fazia-me tremer, o ar leve e puríssimo deleitava-me a respiração.
Sentei-me; quis pensar na morte e não pude, porque meus olhos se cerraram, e dormi.
Despertei ao primeiro raio do sol, que refletiu no meu rosto.
Levantei-me.
Era ainda cedo para ver o mundo abaixo dos meus pés e em torno do Corcovado.
Passeando pela planura, conversei comigo mesmo.
Morrerei; mas antes de morrer quero ver as grandezas da terra que deste sublime trono erguido por Deus se revelam e manifestam aos olhos do homem.
Aqui da altura direi o extremo adeus aos meus lá embaixo.
Será o último serviço que deverei a minha luneta mágica...
O último?...
Oh! eu vou morrer, por que não experimentarei a visão do futuro?... que me importa que se quebre a luneta, quando mais não posso usar dela?...
Fora loucura não tentar a experiência?...
Este novo pensamento dominou-me; fixei a luneta, e observei em volta do Corcovado o aspecto da natureza...
A cerração se desfizera de todo... o mundo se mostrava, se patenteava amplo, completamente sem véus, sem nuvens...vi...
Oh! meu Deus! eu não descreverei, não tentarei descrever o lindo, o belo, o sublime panorama, que por todos os lados, se abriu à minha luneta mágica, as cidades e povoados, as terras, e o oceano. as montanhas e os abismos, os montes e os vales, as torrentes e as pedras, o céu e os campos, a providência, e o mundo, a riqueza do favor de Deus, e a miséria da incúria dos homens!!!
Ajoelhei-me e orei.
Ergui-me e ainda uma vez, e outra, e mais dez vezes enlevei-me na contemplação das majestades da criação que em torno do Corcovado se ostentavam...
Tudo era grande, tudo menos o homem que era o perdulário, e o esbanjador sacrílego dos tesouros da terra, que Deus lhe dera...
Senti que para não odiar, desprezava o homem, desprezei-me também, lembrei-me da morte, que olvidara em minha contemplação entusiasta, lembrei-me também do suicídio e da visão do futuro.
O suicídio era fácil: um abismo estava cavado abaixo de meus pés; atirar-me a ele e não morrer era impossível...
Experimentar a visão do futuro era igualmente muito simples: bastava-me fixar a luneta mágica por mais de treze minutos sobre algum objeto.
Instintivamente lembrei-me da capital do Império do Brasil.
Ter por impressão extrema da vida uma idéia dos tempos que ainda hão de vir para aqueles que deixarei vivos, era uma ambição arrebatadora; ter por extrema despedida do mundo o quadro aberto do futuro próspero da pátria, seria a mais suave consolação, se eu pudesse conseguir a visão do futuro antes de suicidar-me.
Fixei pois a luneta mágica sobre a cidade do Rio de Janeiro e vi. . .
Durante os três primeiros minutos: força vital, prodígios de riqueza do solo do Império, majestade da natureza e em grande número de homens incapacidade, inveja, capricho, nepotismo, vaidade comprometendo tudo, sacrificando tudo, perdendo tudo no culto do egoísmo, e de ruins paixões.
Depois de três minutos até treze: a mesma e ainda mais surpreendente opulência de tesouros naturais do solo, o mais sábio governo do mundo, a população mais moralizada e pura, a constituição e as leis do Império religiosamente executadas, trabalho inteligente, a indústria esplêndida, abundância de ouro, profunda instrução em todos, contentamento geral, o céu na terra enfim...
Além de treze minutos: a visão do futuro... primeiro e de súbito imensa e compacta nuvem negra cobrindo todo o horizonte e logo através dela vivíssimo e penetrante raio de luz que me feriu e deslumbrou, que me fez recuar e cair por terra, quebrando-se em migalhas a luneta mágica de encontro a uma pedra!
Achei-me em trevas; mas ergui-me de pronto, e sem hesitar corri para o abismo e bradando:
— Adeus!...
Saltei o parapeito, arrojando-me ao profundo precipício...
Mas duas mãos possantes suspenderam-me pelas orelhas, pelas orelhas me contiveram por momentos no espaço entre a vida e a morte, e, sempre pelas orelhas, me tiraram da boca do abismo, e me depuseram no chão.
— Ainda é cedo, criança! disse a voz rouca do homem que me salvara, puxando-me as orelhas.
Reconheci o homem pela voz.
Era o armênio.
Fim da Segunda Parte
Epílogo
I
A suavidade das auras, a pureza do ar que banhavam docemente meu rosto e meus pulmões, o vivificante calor dos raios do sol venceram pouco a pouco a superexcitação nervosa que me ficara da tentativa de suicídio, do salto que eu dera, e da suspensão no espaço, na horrível boca do abismo.
Estirado no chão e em convulsivo tremor eu conservava a consciência de que vivia pela ativa lembrança das sensações instantâneas, mas violentas que me tinham torturado a alma; primeiro o adeus, extremo adeus deixado ao mundo, depois, dado o salto, o arrependimento súbito e vão; logo o socorro imediato e não esperado, e enfim a esperança, as ânsias e o terror desses instantes supremos, indizíveis em que me achei entre a vida e a morte, entre o suicídio que parecia absorver-me, e as mãos da providência que me continha pelas orelhas.
Passada uma longa hora, senti que me voltavam as forças.
Ajoelhei-me, e repeti em voz baixa breve oração.
Depois levantei-me e disse, procurando debalde com os olhos o armênio:
— Obrigado!
— Bom sinal! observou este; o teu coração voltou-se para Deus, e depois de render-lhe graças, a tua voz disse na primeira palavra um voto de gratidão ao homem que te salvou: morreste louco, e renasceste ajuizado.
Eu desatara a chorar, e chorei longamente.
O armênio tornou-me, depois de deixar muito tempo livre curso a meu pranto.
— Criança adoidada: já te puxei bastante as orelhas; mancebo infeliz, quero agora consolar-te.
Enxuguei com precipitação as lágrimas, e lancei os olhos quase sem luz para o lado, donde me vinha a voz do armênio.
Ele riu-se e acrescentou
— Adivinhei o teu criminoso intento e vim aqui salvar-te do suicídio, e dar-te nova, terceira e última luneta mágica.
— Oh! .. e onde? e quando?
— Aqui mesmo e em breve.
— Que felicidade!
— Vou proceder à operação mágica.
— Eu a espero ansioso.
— E não tens medo? .. aqui.. neste lugar deserto... a sós comigo. . .
— Não.
— Confias pois muito em mim?
— Muito.
— Não há confiança sem fundamento que ao menos se suponha seguro, e tu nem sequer sabes como me chamo, o que não me admira, porque nem sabes o teu verdadeiro nome.
— Eu o conheço pelo armênio, o mais sábio dos mágicos, e sei que recebi na pia batismal o nome de Simplício.
— Erro duplo! não há aqui armênio nem Simplício.
— Então como nos chamamos?
— Eu me chamo Lição.
— E eu?
— Tu te chamas Exemplo.
— Ah!
— Escuta-me.
II
O armênio começou a falar.
— A exageração degenera os sentimentos, desvirtua os fatos, desfigura a verdade.
"Exagerar é mentir.
"No mundo há o bem e o mal, como há na vida o prazer e a dor.
"Mas o bem é o bem, o mal é o mal como eles são e não podem deixar de ser para a humanidade que e imperfeita: perfeito bem, absoluto mal não há para ela.
"O bem absoluto é Deus; mal absoluto não existe, não pode existir; porque seria o mal sem arrependimento, e sem perdão e portanto um limite à onipotência de Deus, o absurdo na verdade eterna.
"Assim pois acontecimento, ser da criação, homem absolutamente maus ou absolutamente bons não são possíveis, nem se compreendem.
"Estudar o mundo e os homens, observando-os pela enfezada lente as doutrinas, ou prevenções, as tuas duas lunetas exageraram.
"Ora exagerar é mentir.
"Mancebo, a verdadeira sabedoria ensina e manda julgar os homens, aceitar os homens, aproveitar os homens, como os homens são.
"A imperfeição e a contingência da humanidade são as únicas idéias que podem fundamentar um juízo certo sobre todos os homens.
"Fora dessa regra não se pode formar sobre dois homens o mesmo juízo.
"Cada qual é o que é; cada qual tem as suas qualidades, e seus defeitos.
"A sociedade que aceite cada homem com as suas qualidades e os seus defeitos, explorando umas e outras em seu proveito.
"As próprias plantas venenosas são úteis: a ciência faz do veneno mais violento um meio destruidor de moléstias, regenerador da saúde, conservador da vida.
"A educação do homem que é a base mais importante e a essencial da ciência social pode explorar em beneficio da sociedade, dirigindo-os convenientemente, os próprios defeitos correspondentes às qualidades estimáveis de cada um.
"Mancebo! para te levar à verdade já te lancei duas vezes no caminho do erro.
"Erraste acreditando no mal, erraste acreditando no bem, que te mostraram tuas duas lunetas, que exageraram o mal e o bem, ostentando cada uma o exclusivismo falaz do seu encantamento especial.
"Erraste pelo exclusivismo; porque o exclusivismo é o absurdo do absoluto no homem.
"Erraste pela exageração; porque exagerar é mentir."
III
Eu escutara com respeitoso silêncio o armênio que, tendo descansado alguns momentos, disse-me:
— Resolvi dar-te hoje a mais preciosa, mas também a última das lunetas mágicas que de mim terás.
— Qual?...
— Aquela que te fará gozar a visão do bom senso.
— Oh! a visão da sabedoria...
— Quase.
— Serei feliz... perfeitamente feliz!
— Nem assim.
— Por quê?...
— Porque o homem é o homem.
— Não entendo.
— Porque ainda com o bom senso há ardendo na alma do homem uma flama insaciável, que torna impossível a felicidade perfeita.
— Que flama é essa?
— A do desejo — de desejo que tem mil sobrenomes — amor, glória, ambição, ouro, honras, luxo, gula, vingança .. e muito mais que eu não acabaria de dizer nem em duas horas.
— Ao menos porém a visão do bom senso não me tornará nem cético, nem ludibrio do mundo e dos homens.
— E não sofrerás menos por isso
— Como?
— Pela visão do bom senso reconhecerás, onde está o bem e o mal, e mil vezes não poderás aproveitar o bem, e livrar-te do mal.
— Mas é incompreensível!
— A pesar teu serás arrastado para longe do bem e para os precipícios do mal...
— Resistirei.
— Serás o censor de muitos e o reprovado de quase todos...
— Que importa?
— Os homens te condenarão contraditoriamente, como republicano e áulico, excêntrico e tolo, ateu e fanático, imoral e hipócrita, presumido e estúpido, santilão e demônio
— Rir-me-ei deles.
— Terás pois a luneta; mas será a última
— Conservá-la-ei sempre.
— Quebrá-la-ás.
— Conterá ela também a visão do futuro?
— Como, se e a do bom senso? — Criança, a visão do futuro não pode ser mais do que uma combinação de probabilidades feitas à luz do passado.
— Então juro que conservarei a luneta do bom senso por toda a minha vida.
— Fá-la-ás em pedaços e intencionalmente.
— Por quê?
— Porque é melhor não ver.
— Oh! não...
— Vou dar-te a luneta.
IV
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V
Não posso dizer o que se passou durante meia hora ou mais; porque eu nada vi, nada podia ver, pobre míope quase cego que eu era.
O armênio procedera a uma operação mágica não sei como, nem em que altar de cabala improvisado à luz do sol e no alto do Corcovado.
Ouvi piar de aves, silvos de serpentes, conjurações do armênio que me pareciam sair ou do seio da terra, ou de profunda gruta, senti frio de gelo e calor de fogo ardente; em seguida reinou silêncio, e em breve o mágico lançou-me ao pescoço um trancelim que suponho ser de arame que enlaça a luneta pelo competente anel, onde, como vim a saber depois, estava gravado em letras microscópicas o nome — raro.
— Fixa a luneta! gritou-me com sua voz ronca o armênio.
Obedeci, e fixando a luneta mágica, vi diante de mim o mágico melancólico e carrancudo, e o meu amigo Reis agradável e risonho.
O armênio voltou-nos imediatamente as costas, e desapareceu logo, descendo apressado a montanha.
O Reis abraçou-me: e disse:
— Aquele homem é irresistível; adivinhou o ato de loucura que o senhor ia praticar, e prometeu-me salvá-lo sob duas condições, de que não quis prescindir: a primeira foi que eu conviesse em ser-lhe dada uma terceira 6 última luneta mágica, que teria a visão do bom senso; a segunda que eu consentiria em expor à venda no meu armazém lunetas mágicas com a visão do bom senso.
— E o meu amigo...
— Poderia eu hesitar, quando se tratava de impedir o seu suicídio? .. Comprometi-me a tudo; mas consegui do armênio três concessões.
— Quais?
— Que ele faria suas operações mágicas fora da minha casa; que ficaria em sigilo o que o senhor porventura observasse por meio da visão do bom senso; e que exclusivamente aos meus fregueses e amigos de intima confiança eu pessoalmente e só eu cederia, vendidas ou doadas, as lunetas mágicas do bom senso, ficando ainda a meu arbítrio a exigência de segredo, até que provas irrecusáveis do forçado encantamento experimentado por diversas pessoas, excluíssem qualquer suposição de credulidade pueril.
— Portanto o armênio começa enfim a convencê-lo.
— Ainda não; mas é um homem extraordinário. Quer ver? Acertou pelo seu o meu relógio; marcou precisamente a hora em que eu devia chegar ao alto do Corcovado, e encontrá-lo, lançando-lhe ao pescoço a sua nova luneta, e eu cheguei aqui exatamente à hora precisa, e no momento em que o armênio alargava com as mãos o cordão da luneta acima da sua cabeça e o fazia logo descer ao seu pescoço!...
— E se soubesse ..
— Perdão; saberei tudo depois. Agora urge satisfazer a dois empenhos, um meu, e outro nosso.
— O seu antes do nosso: qual é? ..
— Promete-me o sigilo, a que o armênio não se opõe? .
— Pela minha gratidão e amizade juro guardá-lo.
— Obrigado! disse o Reis apertando-me britanicamente a mão
— E o nosso empenho? ..
— Não o adivinha?... são onze horas da manhã e ainda não almoçamos … eu apenas tomei café às três horas da madrugada.
— E eu não ceei ontem, e estou morrendo de fome .. desçamos para a cidade.
— E lá almoçaremos, jantando.
Pusemo-nos alegremente a caminho.
Apesar da fome devoradora que sentia, reconheci que é menos fatigante e desagradável descer do que subir às montanhas, exceto, exceto sempre, mas exceto somente, quando se trata das alturas do governo.
VI
E já lá vai um mês... um mês inteiro de visão do bom senso.
Sinto desejo veemente de referir o que tenho observado; mas estou preso pelo dever de gratidão e pela religião do juramento, que me impõe silêncio.
Quantas lunetas do bom senso terá o armênio preparado magicamente para o armazém do Reis? E este a quantos amigos as terá confiado? . . .
Não posso compreender estas cerimônias e escrúpulos do meu amigo Reis
Tais escrúpulos são até antipatrióticos.
Se o Reis quer teimar no seu prejudicialíssimo sigilo, deve ao menos, e embora muito em segredo, oferecer sete lunetas mágicas com a visão do bom senso para uso dos membros do ministério e do governo do Brasil.
Não posso falar, não posso escrever, não posso dizer o que a visão do bom senso me está ensinando há um mês.
Quando o meu amigo Reis me desligar do juramento que fiz, escreverei o livro da — visão do Bom Senso.
Mas até lá... segredo.
.
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