Punha todos os nomes de homem no feminino e, como era muito imbecil, julgava esse gracejo bastante espirituoso e não deixava de rir às gargalhadas. Como, a par disso, era enormemente apegado a seu posto diplomático, os modos zombeteiros e deploráveis que ostentava na rua eram interrompidos constantemente pelo susto que lhe causava no mesmo momento a passagem de pessoas da sociedade, mas sobretudo de funcionários.
- Esta pequena telegrafista - dizia, cutucando o barão carrancudo-, já me dei bem com ela, mas a velhaca resolveu mudar de vida! Oh! aquele entregador das Galerias Lafayette, que maravilha! Meus Deus, aí vem passando o diretor dos Assuntos Comerciais. Tomara que não tenha notado o meu gesto!
Seria capaz de falar nisso ao ministro, que me poria em disponibilidade, tanto mais que também é "uma".-
O Sr. de Charlus explodia de raiva. Enfim, para abreviar aquele passeio que o exasperava, resolveu mostrar a carta e pedir ao embaixador que a lesse, mas recomendou-lhe descrição, pois fingia que Charlie estivesse com ciúmes, a fim de poder fazer crer que era amado.
- Ora - acrescentou, com um impagável ar de bondade -, devemos sempre tentar causar o mínimo possível de sofrimento aos outros.
Antes de retornar à loja de Jupien, o autor faz questão de dizer o quanto ficaria entristecido se o leitor se melindrasse com cenas tão estranhas. Por um lado (e é a menor parte da coisa), julgam que a aristocracia parece, proporcionalmente, neste livro, mais acusada de degenerescência que as outras classes sociais. Mesmo que assim fosse, não seria de admirar. As mais antigas famílias acabam por confessar, num nariz grosso e vermelho, num queixo deformado, sinais específicos em que todos admiram a "raça". Mas, em meio aos traços persistentes e sem cessar agravados, há os que não são visíveis, e estes são as tendências e os gostos.
Uma objeção mais grave, se tivesse fundamento, seria dizer que tudo isso nos é estranho e que é preciso extrair poesia da verdade bem próxima. A arte extraída do real mais familiar existe de fato e seu domínio é talvez o maior. Mas não é menos verdade que um grande interesse, por vezes a beleza, pode nascer de ações decorrentes de uma forma de espírito de tal modo distanciada de tudo o que sentimos, de tudo em que acreditamos, que nem sequer podemos chegar a compreendê-Ias, e elas se apresentam diante de nós como um espetáculo sem motivo. Que existe de mais poético do que Xerxes, filho de Dario, mandando açoitar as águas que haviam engolido seus barcos?
É certo que Morel, usando dos poderes que seus encantos lhe davam sobre a moça, transmitiu-lhe, tomando-os à sua conta, as observações do barão, pois a expressão "pagar o chá" desapareceu tão completamente da loja do coleteiro, como desaparece para sempre de um salão determinada pessoa íntima que era recebida todos os dias e com quem, por um motivo ou outro, brigou-se ou que convém ocultar e só se freqüenta fora de casa. O Sr. de Charlus ficou satisfeito com a desaparição de "pagar o chá", e viu naquilo uma prova de sua ascendência sobre Morel e o apagamento da única manchinha na perfeição da moça. Por fim, como todos os da sua espécie, embora sendo sinceramente amigo de Morel e de sua quase noiva, e ardente partidário da união deles, gostava muito do poder de criar à sua vontade brigas mais ou menos inofensivas, acima e fora das quais se mantinha tão olímpico feito o seria seu irmão.
Morel dissera ao Sr. de Charlus que amava a sobrinha de Jupien, queria desposá-la, e era doce ao barão acompanhar seu jovem amigo às visitas, em que representava o papel de futuro sogro indulgente e discreto. Nada lhe agradava mais.
Minha opinião pessoal é que "pagar o chá" vinha do próprio Morel, e que, por cegueira de amor, a jovem costureira adotara uma expressão da criatura adorada, expressão que destoava, pela feiúra, na linguagem bonita da moça. Essa linguagem, as maneiras encantadoras que se harmonizavam com ela, a proteção do Sr. de Charlus, faziam com que muitos fregueses para quem ela trabalhara a recebessem como amiga, convidando-a para jantar, mesclando-a às suas relações; aliás, a mocinha só aceitava esses convites com a permissão do Sr. de Charlus e nas noites em que isto lhe convinha. "Uma costureirinha na alta sociedade?", diriam. "Que inverossimilhança!" Pensando bem, não era menos inverossímil que antigamente Albertine viesse ver-me à meia-noite, e agora vivesse comigo. E talvez fosse inverossímil com outra, de modo algum com Albertine, sem pai nem mãe, levando uma vida tão livre que, no começo, eu a tomara em Balbec pela amante de um ciclista, tendo por parente mais próximo a Sra. Bontemps que, já na casa da Sra.
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