Quase não se viam as balizas pretas dos navios naufragados,ou as torres em espiral feitas pelas grandes enguias cavando suas tocas ou os monstros lisos de flancos verdes que passavam vi-rando-se rápidos para um lado e outro.
– E, Rachel, se alguém procurar por mim, estou ocupado até a uma – disse o pai dela, reforçando suas palavras como freqüentemente fazia quando falava com a filha,dando-lhe um tapinha nos ombros.
– Até a uma – repetiu ele. – E você vai encontrar alguma ocupação, hein? Treinar escalas no piano, francês, um pouco de alemão, hein? Há Mr. Pepper que sabe mais sobre verbos separáveis do que qualquer homem na Europa,hein? – e ele continuou rindo. Rachel também riu, como sempre ria sem achar graça, mas porque admirava o pai.Mas quando estava se virando, talvez pensando encontrar alguma ocupação, foi interceptada por uma mulher tão grande e gorda que era inevitável ser interceptada por ela. O discreto jeito hesitante com que se movia, com seu vestido preto sóbrio, mostrava que pertencia a uma classe mais baixa; mesmo assim, assumiu uma postura de rocha,olhando em torno para ver se não havia gente fina perto dali antes de dar sua mensagem, que se referia ao estado dos lençóis e era da maior gravidade.
– Não sei realmente como vamos agüentar esta via-gem, Miss Rachel, realmente não sei – começou ela sacudindo a cabeça. – Só há lençóis suficientes para uma vez,e o do patrão tem um lugar puído onde a gente poderia enfiar o dedo. E os cobertores, a senhora notou os cobertores? Pensei cá comigo mesma que uma pessoa pobre teria vergonha deles. Aquele que dei a Mr. Pepper nem serviria para cobrir um cachorro... Não, Miss Rachel, eles não poderiam ser remendados; só servem para proteger os móveis. Mesmo que a gente costurasse até os ossos dos dedos ficarem à mostra, na primeira vez que fossem lavados todo o trabalho seria desmanchado outra vez.
Sua voz estava tremendo de indignação como se estivesse à beira das lágrimas.
Não havia nada a fazer senão descer e inspecionar uma grande pilha de roupas de cama colocada sobre uma mesa.Mrs. Chailey lidava com os lençóis como se conhecesse cada um deles por nome, caráter e constituição. Alguns tinham manchas amarelas, outros, lugares onde os fios estavam esgarçados; mas para o olho comum pareciam como geralmente se parecem lençóis, muito frios, brancos e irrepreensivelmente limpos.
De repente, Mrs. Chailey, mudando do assunto dos lençóis e tirando-os totalmente do pensamento, fechou os punhos em cima deles e proclamou:
– E não se poderia pedir a nenhuma criatura viva que ficasse onde eu fico!
Queriam que Mrs. Chailey ficasse numa cabine suficientemente grande, mas perto demais das caldeiras, de modoque depois de cinco minutos podia ouvir seu coração “disparando”, queixou-se, colocando as mãos em cima dele, compondo um estado de coisas que Mrs.Vinrace,mãe de Rachel,jamais teria sequer sonhado em causar – Mrs. Vinrace, queconhecia cada lençol de sua casa e esperava de cada um omelhor que pudesse fazer, mas não mais que isso.
Era a coisa mais fácil do mundo conseguir outro aposento, e o problema dos lençóis resolvia-se por si ao mesmo tempo, miraculosamente, uma vez que manchas e puídos podiam ser reparados, mas...
– Mentiras! Mentiras! Mentiras! – exclamou a criada indignada correndo para o convés. – De que adianta me dizer mentiras?
Com raiva porque uma mulher de 50 anos se portava como uma criança e chorando procurava uma mocinha porque queria ficar onde não tinha licença para ficar, ela não pensou naquele caso particular e, pegando seu caderno de música, logo esqueceu tudo sobre a velha e seus lençóis.
Mrs. Chailey dobrava os lençóis, mas sua expressão denunciava seu abatimento interior.O mundo já não se importava com ela, e um navio não era um lar. Quando se acenderam os lampiões ontem e os marinheiros despencaram sobresua cabeça, ela chorou; choraria esta noite também; choraria amanhã. Aquilo não era um lar. Enquanto isso ela arranjavaos enfeites daquele quarto que conseguira facilmente demais.Eram estranhos enfeites para se trazer numa viagem marítima – cachorrinhos de porcelana, jogos de chá em miniatura,xícaras ostensivamente estranhas com o brasão da cidade de Bristol, caixas de grampos de cabelo cobertas de trevos, cabeças de antílopes em gesso colorido, além de uma infinidade de minúsculas fotografias, representando trabalhadorescom seus trajes de domingo e mulheres segurando bebêsbranquinhos. Mas havia um retrato numa moldura dourada,para a qual se precisava de um prego, e antes de procurá-loMrs. Chailey botou seus óculos e leu o que estava escritonum bilhete no verso.
“Este retrato de sua patroa foi dado a Emma Chailey por Willoughby Vinrace em gratidão por 30 anos de devotado serviço.”
Lágrimas obliteraram as palavras e a cabeça do prego.
– Desde que eu possa fazer alguma coisa pela sua família – dizia ela batendo o prego na moldura, quando uma voz chamou melodiosamente no corredor:
– Mrs. Chailey! Mrs. Chailey! Chailey imediatamente recompôs seu vestido, ajeitou o rosto e abriu a porta.
Estou em apuros – disse Mrs. Ambrose, corada e ofegante. – A senhora sabe como são os homens. As cadeiras altas demais... mesas baixas demais... a 15 centímetros entre o chão e a porta.
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