Por que faziam as coisasque faziam, e o que sentiam, e do que se tratava tudo aquilo,afinal? Ouviu novamente tia Lucy falar com tia Eleanor. Elatirara aquela manhã para cuidar do caráter de uma criada:

– E naturalmente, a gente espera que às dez e meia da manhã a criada esteja escovando a escada.

Que estranho! Que indizivelmente estranho! Mas não conseguiu explicar para si mesma por que de repente, enquanto sua tia falava, todo o sistema em que viviam tinha parecido a seus olhos algo pouco familiar, inexplicável, e elas mesmas como cadeiras ou guarda-chuvas largados aqui e ali sem nenhum motivo. E só pôde dizer, com uma leve gagueira:

V-v-você gosta da tia Eleanor, tia Lucy? E sua tia respondeu com aquela risadinha cacarejante:

Mas minha querida criança, que perguntas você faz!

Gosta muito? Quanto? – insistiu Rachel.

Acho que nunca pensei “quanto” – disse Miss Vinrace.

– Se a gente gosta, não pensa em “quanto”, Rachel – o que se destinava à sobrinha,que jamais se “aproximara”de suas tias tão cordialmente quanto elas desejavam.

– Mas você sabe que gosto de você, não sabe, querida,porque você é filha de sua mãe, se não por outros motivos, muitos outros motivos – e abaixou-se e beijou Rachel com alguma emoção, e a discussão se desfez no ambiente como um jarro de leite derramado.

Assim Rachel atingiu aquele estágio de pensamento,se é que se pode chamar isso de pensar, em que os olhosse concentram numa bola ou maçaneta, e os lábios jánão se movem mais. Seus esforços para compreenderapenas tinham magoado sua tia, e a conclusão era queseria melhor não tentar. Sentir qualquer coisa intensamente era criar um abismo entre si mesma e outros, quesentem intensa mas talvez diferentemente. Era bem melhor tocar piano e esquecer o resto. Sua conclusão foimuito bem-vinda. Deixar aqueles homens e mulheresesquisitos – suas tias, os Hunt, Ridley, Helen, Mr. Peppere o resto – serem símbolos, informes mas dignos símbolos da idade, da juventude, da maternidade, da erudição,e belos como muitas vezes são belas as pessoas num palco. Era como se ninguém jamais dissesse algo que realmente fosse sincero, ou jamais falasse de uma emoçãoque sentia, mas para isso existia a música. Com a realidade residindo no que se via ou se sentia, mas não secomentava, era possível aceitar um sistema em que ascoisas giravam e giravam de modo bastante satisfatóriopara outras pessoas, sem se perturbar em pensar sobreelas com freqüência, exceto como algo superficialmenteestranho. Absorvida por sua música, ela aceitava seudestino com bastante complacência, indignando-se,quem sabe, uma vez a cada 15 dias, e depois aquietandose como se aquietava agora. Inexplicavelmente imersanuma confusão onírica, sua mente parecia entrar em comunhão, que se expandia deliciosamente, com o espírito dos quadros esbranquiçados no convés, com o espíritodo mar, com o espírito do Opus 111 de Beethoven, e atécom o espírito do pobre William Cowper lá em Olney.Como uma bola de penugem de cardo, sua mente beijava o mar, erguia-se, beijava-o de novo, e assim, erguendo-se e beijando, finalmente perdia-se de vista. O subire descer da bola de penugem era representado por umasúbita inclinação de sua própria cabeça para diante, equando se perdeu de vista ela adormeceu.

Dez minutos depois Mrs. Ambrose abriu a porta e encarou-a. Não a surpreendeu descobrir que assim Rachel passava suas manhãs. Olhou em torno do aposento, para

o piano, os livros, a confusão geral. Em primeiro lugar,analisou Rachel esteticamente; deitada ali, desprotegida,ela parecia uma vítima que caíra das garras de uma ave de rapina, mas encarada como mulher, uma jovem de 24 anos, dava motivo a reflexões. Mrs. Ambrose ficou parada ali pensando pelo menos dois minutos. Então sorriu, vi-rou-se sem fazer ruído e afastou-se para que a adormecida não despertasse e não houvesse entre as duas o constrangimento de um diálogo.

3

Cedo na manhã seguinte houve rumor de correntes arrastadas na parte de cima;o coração firme do Euphrosyne lentamente cessou de pulsar; e Helen, metendo o nariz sobre o convés, viu um castelo imóvel sobre uma colina imóvel.Tinham lançado âncora na embocadura do Tejo e,em vez de se quebrarem sempre novas ondas, as mesmas ondas ficavam voltando e lavando novamente os flancos do navio.

Assim que tomou o café da manhã, Willoughby desapareceu pela lateral do navio carregando uma maleta de couro castanho, gritando sobre o ombro que todo mundo devia se controlar e se comportar porque ele iria ficar em Lisboa fazendo negócios até as cinco da tarde.

E por essa hora ele reapareceu carregando sua maleta,dizendo-se cansado,aborrecido,faminto,sedento,com frio e precisando do seu chá imediatamente. Esfregando asmãos, ele lhes contou as aventuras do dia: como encontrara o pobre velho Jackson penteando o seu bigode diante doespelho no escritório, sem o aguardar, e fizera-o trabalharnaquela manhã como raramente acontecia; depois o convidara para um almoço com champanhe e hortelãs; fizerauma visita a Mrs. Jackson, mais gorda que nunca a pobre mulher, que ainda perguntara bondosamente por Rachel –e ah, meu Deus, o pequeno Jackson confessara que cometera uma fraqueza confusa – bom, bom, segundo ele nãohouve nenhum prejuízo, mas de que adiantava dar ordensse eram imediatamente desobedecidas? Ele dissera claramente que não aceitaria passageiros nessa viagem. Aí começou a procurar em seus bolsos e acabou descobrindo umcartão, que botou na mesa diante de Rachel. Ela leu: “Mr. e Mrs. Richard Dalloway, Browne Street 23, Mayfair”.

– Mr. Richard Dalloway – prosseguiu Vinrace – parece ser um cavalheiro que pensa que porque um dia foi membro do Parlamento e sua esposa é filha de um nobre,eles podem ter tudo o que quiserem apenas pedindo. Seja como for, convenceram o pobre do Jackson. Disseram que tinham de ter passagens...