Tenho comido como um ogro que sai do jejum. São os ares do mar.
– E o seu amo, jamais vejo-o no convés.
– Jamais... Não é um homem curioso.
– Imagine, senhor Chavemestra, que essa pretensa viagem em oitenta dias poderia muito bem encobrir alguma missão secreta... Uma missão diplomática, por exemplo!
– Realmente, senhor Fix, eu não sei de nada... e, para ser franco, não daria nem um tostão para sabê-lo.
Depois desse encontro, Chavemestra e Fix palestraram várias vezes juntos. O inspetor de polícia fazia questão de relacionar-se com o criado de Mr. Fogg, algo do que, eventualmente, poderia tirar proveito. Assim, amiúde, ele oferecia-lhe, no bar-room do Mongólia, algumas doses de whisky ou de cerveja, que o bom sujeito aceitava sem cerimônia, retribuindo-lhe as doses para não fazer-se devedor. Este, aliás, via em Fix um cavalheiro perfeitamente honesto.
Entanto, o navio avançava rapidamente. No dia 13, pôde-se ver Moka, que surgiu cercada de muralhas em ruínas, acima das quais sobressaíam algumas verdejantes tamareiras. Ao longe, nas montanhas, estendiam-se vastos cafezais. Chavemestra encantou-se ao contemplar aquela famosa cidade, chegando a conceber que, com os seus muros circulares e o seu forte desmantelado que desenhava-se como uma alça, ela semelhava-se a uma enorme taça partida ao meio.
Durante a noite seguinte, o Mongólia atravessou o estreito de Bab-el-Mandeb, cujo nome, em Árabe, significa a Porta das Lágrimas, e, no dia 14, o subseqüente, ele fazia escala em Steamer-Point, a noroeste da baía de Áden. Era lá que ele devia refazer a sua provisão de combustível.
Grave e crucial empresa, esta de alimentar a fornalha dos navios a tais distâncias dos centros de produção. Apenas para a Companhia Peninsular, tratava-se de uma despesa anual calculada em oitocentas mil libras (20 milhões de francos, o carvão custando, naqueles mares distantes, oitenta francos a tonelada). Com efeito, fora necessário instalar depósitos em vários portos.
O Mongólia ainda deveria fazer mil seiscentas e cinqüenta milhas antes de alcançar Bombaim, e devia permanecer quatro horas em Steamer-Point, a fim de reencher os seus paióis.
Mas essa retenção de maneira alguma podia prejudicar o programa de Phileas Fogg. Ela era prevista. Aliás, o Mongólia, ao invés de chegar em Áden só na manhã do dia 15 de outubro, lá atracou no ocaso do dia 14. Um ganho de quinze horas.
Mr. Fogg e o seu pajem desembarcaram. O cavalheiro queria que visassem o seu passaporte. Fix seguiu-o sem ser notado. Concluída a formalidade do visto, Phileas Fogg retornou a bordo, retomando a sua partida interrompida.
Chavemestra, ele, passeava, como era seu hábito, no meio daquela população de somalis, de banianos[9], de parses[10], de judeus, de árabes, de europeus, que compunham os vinte e cinco mil habitantes de Áden. Ele admirou as fortificações que fazem dessa cidade “a Gibraltar do mar da Índia” e as magníficas cisternas nas quais ainda trabalhavam os engenheiros ingleses, dois mil anos após os engenheiros do rei Salomão.
“Interessantíssimo, interessantíssimo! – dizia a si mesmo Chavemestra, ao regressar a bordo. – Dou-me conta de que viajar não é nada mal quando se quer ver coisas novas.”
Às seis horas da tarde, o Mongólia batia as pás do seu hélice[11] nas águas da baía de Áden para, logo a seguir, sulcar o mar das Índias. Eram-lhe concedidas cento e sessenta e oito horas para efetuar a travessia entre Áden e Bombaim. De resto, estas águas indianas foram-lhe favoráveis. O vento soprava sempre a noroeste e as velas, içadas, ajudaram o vapor.
A nave, mais carregada, jogava menos. As passageiras, em toaletes novos, reapareceram no convés. Os cantos e as danças recomeçaram.
A viagem realizou-se, assim, nas melhores condições. Chavemestra estava encantado com o gentil companheiro que o acaso presenteara-lhe na pessoa de Fix.
No domingo, dia 20 de outubro, por volta do meio-dia, avistou-se a costa indiana.
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