Para ele, isso era um enigma. De todos os excêntricos que o general-de-brigada havia encontrado, nenhum era comparável àquele rebento das ciências exatas.
Phileas Fogg não havia ocultado a Sir Francis Cromarty o seu projeto de uma viagem de volta ao mundo, nem em que condições ele a operava. O general-de-brigada via nessa aposta apenas uma esdruxularia sem finalidade útil e à qual, necessariamente, faltava o tranSire benefaciendo que deve guiar todo homem razoável. No ritmo em que avançava o bizarro cavalheiro, ele, evidentemente, passaria o seu tempo sem “nada fazer”, nem por ele mesmo, nem pelos outros.
Uma hora depois de ter deixado Bombaim, o trem – que, cruzando os viadutos, atravessara a ilha Salceta – corria para o continente. Na estação de Callyan, ele deixou à direita o ramal que, por Kandallah e Pounah, descia rumo ao sudeste, e ganhou a estação de Pauwell. A essa altura, internou-se entre as várias montanhas das Ghâtes-Ocidentais, formadas basicamente de betume e de basalto, e cujos mais elevados cumes são cobertos por densas florestas.
De quando em vez, Sir Francis Cromarty e Phileas Fogg trocavam algumas palavras, e, neste momento, o general-de-brigada, reanimando uma conversação que amiúde morria, disse:
– Alguns anos atrás, Mr. Fogg, o senhor haveria sofrido neste local um atraso que teria, provavelmente, comprometido o seu itinerário.
– Por que razão, Sir Francis?
– Porque a estrada de ferro terminava na base destas montanhas, que se tinha de atravessar em palanquim ou no dorso de um pônei até a estação de Kandallah, situada na encosta do lado oposto.
– Esse atraso não haveria de forma alguma estorvado a economia do meu programa – respondeu Mr. Fogg. – Eu mesmo, para esta viagem, previ a eventualidade de certos obstáculos.
– Todavia, Mr. Fogg – retomou o general-de-brigada –, é provável que o senhor tivesse um terrível fardo a suportar com a aventura desse homem.
Chavemestra, com os pés enrolados em sua coberta, dormia profundamente e nem sonhava que sobre ele se falava.
– O governo inglês é extremamente severo, e com razão, quanto a esse tipo de delito – continuou Sir Francis Cromarty. – Acima de tudo, ele faz questão de que se respeite os costumes religiosos dos hindus, e se seu criado tivesse sido apanhado...
– Então, se ele tivesse sido apanhado – respondeu Mr. Fogg –, ele teria sido condenado, ele teria expiado a sua pena, e, depois, ele teria voltado tranqüilamente à Europa. Eu não vejo como esse caso teria podido impor um atraso ao seu amo!
E, nesse ponto, a conversação novamente morreu. Durante a noite, o trem cruzou as Ghâtes, passou por Nassik, e, no dia seguinte, 21 de outubro, avançou por uma região relativamente plana, a do território do Khandeish. Pela campanha, muito bem cultivada, espalhavam-se povoados, no alto dos quais o minarete do pagode correspondia ao campanário da igreja européia. Numerosos córregos, na maior parte afluentes ou subafluentes do Godaveri, irrigavam aquele torrão fértil.
Chavemestra, acordado, olhava, e mal podia acreditar que ele atravessava o país dos hindus dentro de um trem da Great Peninsular Railway. Parecia-lhe inverossímil aquilo. E, no entanto, nada de mais real! A locomotiva, dirigida pelo braço de um maquinista inglês e ativada pela hulha inglesa, lançava a sua fumaça sobre os plantios dos algodoais, dos cafezais, das moscadeiras, dos craveiros, dos pimenteiros rubros. O vapor contorcia-se em espirais em volta dos grupos de palmeiras, entre as quais surgiam pitorescos bangalôs, alguns viharis, espécie de monastérios abandonados, e templos maravilhosos que enriqueciam a inexaurível ornamentação da arquitetura indiana. Então, imensas extensões de terra desenhavam-se a perder de vista, matas onde não faltavam nem as serpentes, nem os tigres, que os silvos do trem espavoriam, e, enfim, florestas, fendidas pelo traçado da via férrea, ainda habitadas por elefantes, que, com olhos meditabundos, olhavam passar o comboio desenfreado.
No curso da manhã, para além da estação de Malligaum, os viajantes cruzaram aquele território funesto, tantas vezes ensangüentado pelos adoradores da deusa Kâli. Não distante dali, erguia-se Ellora e os seus admiráveis pagodes, bem como a famosíssima Aurungabad, centro do violento Aureng-Zeb, hoje simples capital de uma das províncias emancipadas do Reino do Nizam. Era sobre essas terras que Feringhea, o chefe dos thugs e rei dos Estranguladores[13], exercia a sua dominação. Esses assassinos, reunidos numa associação invulnerável, estrangulavam, em honra da deusa da Morte, vítimas de todas as idades, sem jamais derramar o sangue, e houve tempos em que não se podia escavar num ponto qualquer deste solo sem nele encontrar um cadáver. O governo inglês chegou a impedir essas mortes numa notável proporção, mas a aterrorizante associação continuava a existir e ainda atuava.
Ao meio-dia e meia, o trem parou na estação de Burhampour, e Chavemestra pôde adquirir um par de pantufas, enfeitadas com pérolas falsas, que ele calçou com uma indisfarçável vaidade.
Os viajantes almoçaram rapidamente, e partiram rumo à estação de Assurghur, após haverem por alguns instantes margeado o Tapty, um pequeno rio que vai desembocar no golfo de Cambaye, próximo de Surata.
Faz-se oportuno revelar que pensamentos ocupavam, então, o espírito de Chavemestra. Até a sua chegada em Bombaim, ele crera – e pudera crer – que toda aquela história acabaria ali. Mas agora que ele seguia a todo vapor através da Índia, uma reviravolta produzira-se no seu modo de ver as coisas. Rapidamente, sua natureza voltava a nele exprimir-se. Ele reencontrava as idéias fantasistas de sua mocidade, levava a sério os projetos de seu amo, acreditava na veracidade da aposta, e, conseqüentemente, naquela volta ao mundo e naquele limite de tempo que não se podia ultrapassar. Já então ele preocupava-se com os possíveis atrasos e com os acidentes que poderiam suceder no caminho. Ele sentia-se como que interessado nessa porfia, e tremia ao pensar que pudera comprometê-la, na véspera, com sua imperdoável parvoíce.
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