A porta tinha umas tábuas de carvalho sólidas e grossas. Papai tomava muito cuidado pra não deixar uma faca ou qualquer coisa na cabana quando ele tava fora. Acho que eu já tinha revirado o lugar umas cem vezes. Bem, eu ficava um tempão vasculhando a cabana, porque era quase que a única maneira de matar o tempo. Mas desta vez finalmente encontrei uma coisa: achei uma velha serra enferrujada sem o cabo; tava enfiada entre um caibro e as madeiras do telhado. Engraxei a serra e pus mãos à obra. Tinha uma velha manta de cavalo pregada contra as toras bem no fundo da cabana atrás da mesa, pra não deixar o vento soprar pelas frestas e apagar a vela. Fui pra baixo da mesa, levantei a manta e comecei a serrar uma parte da grande tora de baixo, um buraco grande pra eu poder passar. Bem, era um trabalho demorado, mas eu tava chegando perto do fim quando ouvi a espingarda de papai na mata. Dei um sumiço nos sinais do meu trabalho, deixei cair a manta e escondi a serra; pouco depois, papai entrou.

Papai não tava de bom humor – ou seja, tava em seu estado natural. Disse que foi na cidade e que tudo tinha dado errado. O seu advogado disse que achava que ia ganhar a ação e conseguir o dinheiro, se começassem o julgamento, mas tinha muitos jeitos de adiar a ação por bastante tempo, e o juiz Thatcher sabia como fazer isso. E disse que as pessoas falavam que ia ter outro julgamento pra me separar dele e me mandar pra viúva, minha guardiã, e elas achavam que ia dar certo dessa vez. Isso foi um choque e tanto, porque eu não queria mais voltar pra casa da viúva e viver tão esturricado e civilizado, como diziam. Então o velho passou a praguejar e rogou praga pra tudo e pra todos que passavam pela sua cabeça, e aí praguejou contra todos de novo pra ter certeza que não tinha pulado ninguém, e depois disso arrematou com uma espécie de praga geral pra todo mundo, inclusive um monte de gente de quem não sabia o nome, e assim chamava fulano não-sei-das-quantas quando chegava na vez delas, e seguia rogando suas pragas.

Ele disse que queria ver a viúva me ganhar. Disse que ia ficar à espreita e, se tentassem pregar uma peça dessas nele, ele sabia de um lugar a uns nove ou onze quilômetros pra me esconder, onde podiam me procurar até morrer que não iam conseguir me achar. Isso me deixou bem preocupado de novo, mas só por um minuto, porque eu achava que não ia mais estar por perto quando isso fosse acontecer.

O velho me mandou ir até o bote buscar as coisas que ele tinha conseguido. Tinha um saco de vinte e dois quilos de milho, um pedaço de toicinho, munição, um jarro de quatro galões de uísque, um livro velho e dois jornais para servir de bucha, além de um pouco de estopa. Carreguei uma parte lá pra cima, voltei e me sentei na proa do bote pra descansar. Fiquei pensando em tudo e imaginei dar no pé com a espingarda e algumas linhas, e entrar na mata na hora de fugir. Pensei em não parar num só lugar, mas sair andando pelo campo, em geral de noite, e caçar e pescar pra me manter vivo, e assim ir pra tão longe que nem o velho nem a viúva iam conseguir me encontrar. Pensei em fazer o buraco com a serra e partir naquela noite, se papai ficasse bastante bêbado, e eu achava que ele ia ficar. Tava tão cheio desses pensamentos que não percebi quanto tempo passei ali, até que o velho gritou e perguntou se eu tava dormindo ou afogado.

Carreguei todas as coisas pra cabana, e então já tava quase escuro. Enquanto eu cozinhava o jantar, o velho tomou um ou dois tragos e meio que se animou, e começou a esbravejar de novo. Ele tinha andado bêbado pela cidade e passado a noite caído na sarjeta, tava uma figura e tanto de se olhar. Alguém podia pensar que ele era Adão, porque tava que era barro puro. Toda vez que a bebida começava a fazer efeito, ele quase sempre atacava o governo. Desta vez, disse:

– E chamam isso de governo! Ora, é só olhar e ver como é. Aqui tá uma lei pronta pra arrancar o filho de um homem – o próprio filho de um homem, que ele teve todo o trabalho e toda a ansiedade e todos os gasto pra criar. Sim, quando esse homem conseguiu criar finalmente esse filho, e ele agora tá pronto pra trabalhar e começar a fazer alguma coisa pelo pai e dar um descanso pra ele, aí a lei sem mais nem menos ataca o pai.