E arcar com as consequências de seus atos.

Seu linguajar é essencialmente o modo de falar de quem se quer livre. Uma linguagem capaz de descrever a beleza de um amanhecer no rio, as figuras estranhas pelo caminho, situações de extrema crueldade e momentos de grande ternura, com o desassombro de quem vê o mundo de cara lavada, sem cisco nos olhos. Repito: o desafio de reproduzir essa linguagem em português não é pequeno, e acho que consegui apenas me aproximar de sua eficácia. E, quando resolvem alterar deliberadamente o linguajar de Huck, “civilizá-lo”, o que me ocorre é que isso seria como outro ataque da sanha assassina das famílias em luta, ou então um novo Rei ou um novo Duque invadindo a balsa para trapacear, roubar e acabar com a liberdade de Huck e Jim.

Rosaura Eichenberg

Aviso

As pessoas que tentarem encontrar uma razão para esta narrativa serão processadas; as pessoas que tentarem encontrar uma moral serão banidas; as pessoas que tentarem encontrar um enredo serão fuziladas.

Por ordem do autor

Por G.G., Chefe da Artilharia

Explicação

Neste livro são usados vários dialetos, a saber: o dialeto dos negros de Missouri, a forma mais extrema do dialeto sulista do interior, o dialeto comum de “Pike County” e quatro variedades modificadas desse último. As nuances não foram introduzidas ao acaso, nem por tentativas a esmo, mas laboriosamente, com a orientação e o apoio fidedignos da familiaridade com essas várias modalidades de fala.

Dou essa explicação porque, sem isso, muitos leitores suporiam que todos esses personagens estavam tentando falar da mesma maneira, mas sem conseguir.

O autor

Capítulo 1

Civilizando Huck – Moisés e os “Caras dos Papiros” – Srta. Watson – Tom Sawyer à espera

Cenário: Vale do Mississippi

Tempo: De quarenta a cinquenta anos atrás

Você não sabe nada de mim se não leu um livro com o nome As aventuras de Tom Sawyer, mas pouco importa. Esse livro foi feito pelo senhor Mark Twain, e ele falou a verdade, no mais das vezes. Teve coisas que ele exagerou, mas no mais das vezes ele falou a verdade. Isso não é nada. Nunca vi ninguém que não mentisse uma vez ou outra, a não ser a tia Polly, ou a viúva, ou talvez Mary. A tia Polly – a tia Polly de Tom – e Mary e a Viúva Douglas todas aparecem nesse livro, que é em geral um livro verdadeiro, com alguns exageros, como eu disse antes.

Agora o jeito como o livro acaba é o seguinte: Tom e eu encontramos o dinheiro que os ladrões esconderam na caverna, e isso nos deixou ricos. Ganhamos seis mil dólares cada um – tudo ouro. Uma visão tremenda de dinheiro quando foi empilhado. Bem, o juiz Thatcher ele pegou o dinheiro e guardou rendendo juros, e isso nos dava um dólar por dia pra cada um durante todo o ano – mais do que alguém ia saber o que fazer com ele. A Viúva Douglas ela me pegou pra filho e declarou que ia me civilizar, mas era duro viver na casa o tempo todo, considerando a tristeza de como a viúva era cheia de regras e decente em todos os seus modos. E assim, quando não consegui aguentar mais, dei o fora. Me meti de novo nos meus velhos trapos e no meu barril de açúcar, e fiquei livre e satisfeito. Mas Tom Sawyer me caçou e disse que ia fundar um bando de assaltantes e que eu só podia entrar no grupo voltando pra viúva e sendo respeitável. Assim voltei.

A viúva chorou por mim, me chamou de pobre cordeiro perdido e também me chamou de uma porção de outros nomes, mas nunca teve a intenção de me ofender com isso. Ela me meteu de novo naquelas roupas novas, e eu não podia fazer nada, só suar e suar, e me sentir todo apertado. Bem, então, a velha história começou de novo. A viúva tocava um sino para o jantar, e ocê tinha que chegar na hora. Quando ocê ia pra mesa, não podia começar logo a comer, mas tinha que esperar a viúva baixar a cabeça e resmungar um pouco sobre a comida, apesar de não ter realmente nada de errado com ela – isto é, nada só que tudo era cozido separado. Num barril de restos é diferente, as coisas se misturam e o suco meio que gira com força ali dentro, e a coisa fica mais gostosa.

Depois do jantar ela pegava seu livro e me ensinava sobre Moisés e os caras dos Papiros, e eu tava doido pra saber tudo sobre ele, mas aos poucos ela deixou escapar que já fazia um bom tempo que Moisés tava morto, assim não dei mais bola, porque não me interesso por mortos.

Pouco depois eu quis fumar e pedi licença pra viúva. Mas ela não quis saber. Disse que era um hábito ruim e não era limpo e que eu devia tentar não fazer mais aquilo. É assim com algumas pessoas. Elas pegam birra com alguma coisa mesmo sem saber nada sobre a coisa. Ela ficava se preocupando com Moisés, que não era parente dela, não tinha valor pra ninguém, já morto, entende, mas descobrindo uma falha enorme em mim porque eu fazia uma coisa que tinha alguma serventia.