Abra a boca. Bem – disse ela, experimentando com o dedo –, seu dente está mesmo frouxo, mas você não vai morrer por isso. Mary, traga-me um fio de seda e um tição aceso do fogão da cozinha.
Tom disse apressadamente:
– Oh, por favor, titia, não arranque meu dente! Não estou sentindo mais dor nenhuma. Juro que não dói. Quero ficar “paralético”, se estiver doendo! Por favor, titia, não arranque, eu não quero ter de ficar em casa e perder aula!
– Ah, então não quer? Isto quer dizer que armou toda esta confusão para ficar em casa matando aula e depois escapar pela janela para ir pescar? Tom, Tom, eu amo tanto você, mas parece que você arranja todas as maneiras possíveis para quebrar meu velho coração com suas travessuras!
A esta altura, os instrumentos dentais estavam prontos. A velha senhora amarrou firmemente uma das pontas do fio de seda no dente de Tom e deu uma volta com a outra ponta, que atou com igual firmeza na coluna dos pés da cama. Então, ela pegou a acha de lenha com a ponta vermelha de fogo e subitamente avançou com ela contra o rosto do menino, que recuou assustado. O dente frouxo ficou pendurado, balançando junto ao pé da cama.
Mas todo o sofrimento tem sua compensação. Depois do café da manhã, Tom foi caminhando vagarosamente para a escola e todos os outros meninos ficaram com uma enorme inveja dele, porque a falha entre seus dentes superiores lhe permitia agora cuspir de uma maneira nova e admirável. Ele reuniu um “séquito” bastante grande de meninos, todos profundamente interessados na exibição; um deles, que tinha um corte em um dedo, o qual o tornara até esse momento o centro da fascinação e o foco das homenagens de toda a escola, descobriu-se subitamente sem admiradores e privado de sua glória. Seu coração ficou pesaroso e resmungou com desdém que não achava nada de mais em cuspir como Tom Sawyer estava cuspindo; mas outro dos meninos zombou: – “Uvas verdes!”, e ele separou-se do grupo, vagando errante como um herói injustiçado.[1]
Depois de algum tempo, Tom encontrou o pária juvenil da aldeia, Huckleberry Finn, filho de um bêbado contumaz. Huckleberry era cordialmente odiado e temido por todas as mães da cidadezinha, porque ele era um vagabundo vulgar, sem lei nem rei, sem eira nem beira, uma péssima companhia para seus filhos – especialmente porque todos os meninos o admiravam profundamente e sentiam o maior prazer em andar com ele, apesar de estarem proibidos; no fundo de seus corações, desejavam ser iguais a ele. Tom, juntamente com todos os demais meninos respeitáveis, invejava a condição alegre de excluído gozada por Huckleberry. Também ele tinha ordens estritas para não brincar com o outro. Assim, eles brincavam juntos toda vez que surgia uma oportunidade. Huckleberry estava sempre usando roupas velhas refugadas por homens adultos, permanentemente ostentando farrapos coloridos, como se fosse uma bandeja de frutas. Seus cabelos eram um espetáculo horrível, formando uma espécie de meia-lua recortada nas pontas com uma lâmina de faca. Seu casaco, quando ele usava um, chegava-lhe quase aos tornozelos e os botões desciam quase até o chão; suas calças eram sustentadas por um único suspensório, o fundilho descia até a metade das coxas e parecia não conter nada. As pernas das calças, completamente rasgadas e esfiapadas, arrastavam-se atrás dele pelo chão, quando não estavam arregaçadas. Mas acontece que Huckleberry ia e vinha para onde lhe dava na telha. Quando o tempo estava bom, dormia na soleira das portas; se chovesse, entrava dentro de um barril virado; melhor que tudo, ele não tinha de ir à escola e nem à igreja; não obedecia a ninguém, não tinha casa nem patrão; podia ir pescar ou nadar sempre que quisesse e ficar até a hora que lhe agradasse. Ninguém o repreendia, se entrasse em uma briga; ficava na rua até altas horas; era sempre o primeiro menino a andar descalço na primavera e o último a colocar algum tipo de calçado no outono. Mais ainda, nunca tinha de se lavar, não punha roupa limpa e sabia praguejar e dizer um monte de outras palavras maravilhosas que os meninos nunca ouviam em casa. Em resumo, aquele rapaz possuía todas as coisas que concorrem para tornar a vida preciosa. Pelo menos, era o que pensavam todos os rapazes perseguidos, atormentados, repreendidos e respeitáveis de St. Petersburg. Imediatamente, Tom saudou o romântico indesejável:
– Alô, Huckleberry!
– Pegue seu alô, enfie na cabeça e veja se gosta.
– Que é que você tem na mão?
– Um gato morto.
– Deixe eu pegar, Huck. Caramba, como está duro! Onde foi que você encontrou ele?
– Comprei de um carinha.
– A troco de quê?
– Eu dei pra ele um cartão azul e uma bexiga que consegui no matadouro.
– E onde é que conseguiu o cartão azul?
– Comprei do Ben Rogers faiz duas semana por um ferrinho de empurrar arco.
– Me diz uma coisa – para que serve um gato morto, Huck?
– Pra que serve? Ora, pra curar verrugas!
– É mesmo? Quem diria! Pois eu sei de uma coisa melhor.
– Aposto que não sabe. O que é?
– Ora, água de toco.
– Água de toco? Pois eu não dava uma agulha quebrada por água de toco.
– Ah, não dava, não dava! Você já experimentou?
– Eu não. Mas Bob Tanner sim.
– Quem foi que lhe disse?
– Bem, ele contou a Jeff Thatcher e Jeff contou pra Johnny Baker e Johnny contou a Jim Hollis e Jim contou a Ben Rogers e Ben contou a um negrão e o negrão me contou.
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