Tia Polly ergueu-o pela alça de costume – sua orelha esquerda – e deu-lhe um croque no alto da cabeça com o dedal que sempre usava.
– Agora, senhor, por que razão você fez essa maldade com o pobre animal inocente?
– Ai! Eu fiz porque estava com pena dele! O coitado não tem tia!
– Como é que é? “O coitado não tem tia”??? Mas o que isso tem a ver com a história, seu patife atrevido?
– Tem um monte de coisas. Porque, se o gato tivesse uma tia, ela mesma teria queimado a língua dele! Teria assado as tripas dele com a mesma facilidade que se ele fosse um ser humano!
Tia Polly sentiu uma súbita pontada de remorso. Esta afirmação colocara todo o negócio sob uma nova luz. O que era crueldade para com um gato, poderia também ser crueldade com uma criança. Ela começou a afrouxar por dentro: estava começando a ficar arrependida. Um pouco de água subiu a seus olhos, ela colocou a mão sobre a cabeça de Tom e disse gentilmente:
– Eu tinha a melhor das intenções, Tom. Além disso, o remédio fez bem a você.
Tom olhou para sua face com um brilho de sagacidade quase imperceptível atravessando a seriedade de sua expressão:
– Eu sei que a senhora tinha a melhor das intenções, titia. Foi o mesmo com Peter. Eu tinha a melhor das intenções e o remédio também fez bem a ele. Eu nunca vi ele correndo e pulando com tanta animação e alegria…
– Ora, cale essa boca, Tom, antes que eu me zangue de novo. Se você conseguir ser um bom menino ao menos por algum tempo, não vai precisar tomar mais remédios.
Nesse dia, Tom chegou à escola bastante adiantado. Já tinha sido observado que este estranho fato vinha ocorrendo todos os dias ultimamente. E de novo, como vinha fazendo habitualmente, ele ficou parado no portão da escola, em vez de brincar com seus colegas. Quando o convidaram, disse que não estava se sentindo muito bem, e realmente até parecia não estar bem. Ele fingia estar olhando para todos os lados, menos para aquele que era de fato o alvo de sua atenção – rua abaixo. Logo, Jeff Thatcher surgiu ao longe e o rosto de Tom se iluminou. Ele perscrutou a rua por um momento e então virou o rosto tristemente. Quando Jeff Thatcher chegou ao portão, Tom o abordou e começou a conversar, conduzindo a “prosa” cuidadosamente para fazer alguma pergunta sobre Becky, mas aquele tonto não mordeu a isca e finalmente se afastou. Tom ficou olhando e olhando, sua esperança crescendo a cada vez que um vestidinho cheio de babados se aproximava e odiando a proprietária assim que percebia que não era quem ele desejava. Finalmente, os vestidinhos pararam de chegar e ele afundou-se novamente em seu desgosto; entrou na sala de aula ainda vazia e sentou-se, sofrendo. No momento seguinte, um novo vestidinho passou pelo portão e o coração de Tom deu um salto. Em um instante, ele tinha saído e se portava feito um índio: gritava, corria, perseguia os outros meninos, pulava sobre a cerca da escola, arriscando quebrar o pescoço ou pelo menos uma perna, dava cambalhotas, caminhava sobre as mãos, com a cabeça para baixo – fazia todas as coisas heroicas de que conseguia se lembrar, mantendo todo o tempo um olhar furtivo sobre Becky Thatcher para ver se ela estava notando. Porém ela parecia perfeitamente inconsciente de suas proezas. Não dava a menor espiada para seu lado. Seria possível que ela nem percebesse que ele estava ali? Transferiu seus malabarismos para mais perto dela, deu gritos de guerra, arrancou o boné da cabeça de um menino e o jogou no telhado da escola, atirou-se contra um grupo de colegas, jogando-os em todas as direções e acabou por estirar-se no chão exatamente embaixo do nariz de Becky, quase a derrubando também. E ela apenas virou-se, com o nariz bem empinado, enquanto emitia um audível – “humpf!” – e acrescentava: “Têm certas pessoas que pensam que são muito espertas – estão sempre se mostrando!”
As bochechas de Tom ficaram vermelhas de vergonha. Ele se levantou bem depressa e foi embora arrastando os pés, sentindo-se esmagado e completamente murcho.
[1]. Confusão com o “Bálsamo de Galahad”, um dos heróis da busca pelo Santo Graal. Em suas andanças, ele recebe, das mãos de um mago ou de uma dama misteriosa, um elixir capaz de curar todas as feridas. (N.T.)
[2]. Um analgésico feito à base de láudano (tintura de ópio) e aguardente, patenteado em 1853, que apregoava curar (matar) todas as dores.
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