Declarai vossos nomes.

– Huck Finn das Mãos Sangrentas e Joe Harper, o Terror dos Mares.

Fora o próprio Tom que lhes concedera estes títulos, retirados de sua literatura favorita.

– Certo está. Declarai a contrassenha!

Dois sussurros teatrais emitiram em coro a mesma palavra terrível, que ecoou através da noite adormecida:

– SANGUE!

Então Tom atirou seu presunto pela beirada do rochedo e pulou atrás dele, rasgando tanto suas roupas como sua pele durante a façanha. Havia um caminho fácil e agradável ao longo da praia, logo abaixo do penhasco, mas não apresentava as vantagens evidentes da dificuldade e do perigo que são tão caros aos corações de todos os piratas.

O Terror dos Mares tinha trazido um bom pedaço de toucinho e quase morrera de cansaço com o esforço de carregá-lo até ali. Finn das Mãos Sangrentas tinha roubado uma panela com um longo tripé que servia como frigideira e uma boa quantidade de folhas de tabaco curadas apenas pela metade, além de várias espigas de milho para preparar cachimbos de sabugo. Mas nenhum dos piratas fumava nem “mascava”, exceto ele mesmo. O Vingador Negro do Mar das Caraíbas disse que não ficava bem iniciarem suas aventuras sem um pouco de fogo. Esta havia sido uma excelente lembrança: naquela época, os fósforos ainda eram praticamente desconhecidos. Avistaram uma fogueira meio apagada em uma grande balsa ancorada uns cem metros mais acima e foram furtivamente até lá para roubar uns tições. Tornaram o assalto em uma grandiosa aventura, dizendo “caluda!”[1] de vez em quando e parando repetidas vezes com os dedos sobre os lábios; movendo as mãos sobre os cabos de adagas imaginárias e emitindo ordens em murmúrios macabros: se “os inimigos” surgissem, deveriam “cravar as lâminas até o punho”, porque “os mortos não falam”. Eles sabiam perfeitamente bem que os balseiros estavam todos na aldeia, dormindo nos armazéns ou se divertindo, mas isto não era desculpa para conduzirem esta expedição de uma forma inadequada a autênticos piratas.

Logo depois, eles empurraram a jangada para o rio e Tom assumiu o comando. Huck pegou o remo esquerdo e Joe o remo dianteiro. Tom permaneceu parado no meio do navio, com uma expressão soturna no olhar e braços cruzados, dando as ordens em um tom baixo e austero:

– Toda força a vante e apanhem o vento!

– Sim, sim, senhor![2]

– Firmar, firma-a-a-ar!

– Está firme, senhor!

– Mudar o curso um ponto a bombordo!

– Um ponto a bombordo, senhor!

Uma vez que os meninos estavam firme e monotonamente remando a jangada para o meio da corrente do rio, sem a menor dúvida todos entendiam que estas ordens eram emitidas somente por uma questão de “estilo” e que na verdade não significavam nada em particular e não se destinavam mesmo a serem cumpridas.

– Quais as velas que estão desfraldadas?

– A mezena, a vela principal e a bujarrona, senhor!

– Ergam os sobrejoanetes! Subam aos mastros depressa, meia dúzia de vocês! Ferrem as velas do mastro dianteiro! Agora, depressa!

– Sim, sim, senhor!

– Desfraldem bem a vela principal! Firmem as adriças e os estais! Agora, meus bravos!

– Sim, sim, senhor!

– Enfrentar a deriva! Tudo a bombordo! A postos para enfrentar a corrente quando ela chegar! Bombordo, bombordo! Agora, homens! Toda a força! Firmar o curso!

– Está firme, senhor!

A jangada passou além do meio do rio; os meninos apontaram a dianteira bem para frente e então aplicaram os remos. O rio não estava cheio e assim a corrente não era mais rápida que uns três ou quatro quilômetros por hora. Mas era necessário manter o curso, e deste modo os jovens aventureiros quase não falaram durante os três quartos de hora seguintes. Eventualmente, a jangada passou pela frente da cidadezinha distante. Duas ou três luzes tremulantes mostraram onde ela ficava, pacificamente adormecida, além da amplidão vaga e cheia de reflexos de estrelas, seus habitantes perfeitamente inconscientes do tremendo evento que ocorria sobre as águas do rio. O Vingador Negro permaneceu parado no centro da jangada, com os braços cruzados, “dando um último olhar” para a cena de suas antigas alegrias e seus recentes sofrimentos, desejando que “ela” o pudesse ver agora, enfrentando os perigos e a morte com um coração inquebrantável, partindo para enfrentar seu destino com um sorriso feroz nos lábios. Sua imaginação não tinha grande dificuldade em descrever a Ilha Jackson como um lugar remoto, embora pudesse ser avistada da aldeia – e deste modo, pôde “olhar pela última vez” sua antiga morada por um longo tempo, com o coração partido, porém, na realidade, sentindo-se bastante satisfeito. Os outros piratas também estavam “olhando pela última vez”; e todos olharam por tanto tempo que a corrente quase os arrastou para longe, impedindo-os de atingir a ilha. Mas descobriram o perigo a tempo e desviaram para compensar. Mais ou menos pelas duas da manhã, a jangada encalhou na barra de areia a uns duzentos metros acima da ponta da ilha e eles tiveram de vadear para cá e para lá até descarregarem seus mantimentos. Parte dos pertences da pequena jangada consistia em uma vela gasta, que eles colocaram sobre alguns arbustos, amarrando-lhe as pontas firmemente, a fim de formar uma tenda que abrigasse suas provisões; mas eles mesmos decidiram dormir ao ar livre enquanto durasse o bom tempo, como compete aos fora da lei.

Fizeram uma fogueira junto a um grande tronco caído a uns vinte ou trinta passos dentro da sombra da floresta e então fritaram um pouco de toucinho na panela trazida por Huck, para a ceia; e consumiram cerca de metade do pão de milho que também haviam trazido. Pareceu-lhes a maior das diversões estarem fazendo um banquete na liberdade daquela floresta virgem de uma ilha inexplorada e sem habitantes, longe de todas as moradias dos homens – e juraram que jamais retornariam à civilização. As chamas do fogo brilhavam em seus rostos reluzentes e lançavam clarões avermelhados sobre os troncos que formavam os pilares de seu templo na floresta e sobre a folhagem que parecia envernizada por entre as guirlandas de cipós. Quando a última fatia crocante de toucinho tinha sido devorada, depois que a última ração de pão de milho tinha sido consumida, os meninos se esticaram sobre a relva, radiantes de contentamento. Poderiam ter encontrado um lugar mais fresco, mas não negariam a si próprios uma característica tão romântica como adormecer junto ao fogo do acampamento.

– Mas não está gostoso? – perguntou Joe.

– Está uma delícia – respondeu Tom.

– O que iam dizer os caras se pudessem nos ver agora?

– Dizer? Ora, eles iam morrer de vontade de estar aqui junto conosco! Hein, Hucky?

– Acho que sim – disse Huckleberry. – Seja como for, pra mim, está muito bom! Não perciso de nada melhó do que isto. Em geral, eu nem ao menos como tanto ansim. E, aqui, eles não podem vir chutar o cara e ficar dizendo coisas.

– Pra mim é a vida que eu pedi a Deus – comentou Tom. – Você não tem hora para se levantar de manhã e não tem de ir à escola, nem lavar a cara, nem todas essas besteiras.

Depois de uma pausa, acrescentou:

– Você vê, Joe, um pirata não tem de fazer nada, pelo menos quando está na praia; mas se você fosse um eremita, ia ter de rezar o tempo todo e, além do mais, eremitas não se divertem com nada, ainda mais que ficam mesmo sozinhos sem ninguém por perto para conversar.

– Pois é, você tem toda a razão – disse Joe –, mas eu não tinha pensado muito sobre essa coisa toda, sabe como é.