Eu raramente perco a calma; muito mais raro ainda é eu me entregar a perigosas indignações perante erros e ofensas; mas permitam que aqui me deixe arrebatar declarando que considero a súbita e violenta extinção daquele cargo, decretada pela nova Constituição, como um ato... prematuro! – tanto mais que eu contava com rendimentos vitalícios e, assim, só recebi proventos de uns breves anos. Mas falei disto só de passagem.

Meu escritório estava instalado no segundo andar do nº... da Wall Street. De um lado dava para a parede branca de um largo poço coberto por uma claraboia cuja área tinha a dimensão do prédio, de alto a baixo.

Esta vista podia ser considerada, no mínimo, insípida e falha daquilo a que os paisagistas chamam de pitoresco, mas, em compensação, o panorama do outro lado oferecia pelo menos um contraste, pois nessa direção as minhas janelas dominavam a vista desimpedida de uma alta parede de tijolo, enegrecida pelo tempo e por uma sombra permanente. Tal parede não requeria nenhuma luneta para desvendar suas belezas ocultas, pois, para benefício das pessoas míopes, achava-se afastada dez pés das vidraças de minha janela. Devido à grande altura dos edifícios em torno e ao fato de o meu escritório ser no segundo andar, o intervalo entre essa parede e a minha assemelhava-se a uma gigantesca cisterna quadrangular.

Na época que precedeu imediatamente a aparição de Bartleby, tinha a meu serviço três empregados: dois escriturários e um promissor rapaz como mensageiro. O primeiro era Turkey; o segundo, Nippers e o terceiro, Ginger Nut1. Estes não são nomes que possam se encontrados normalmente num registro qualquer. Na verdade, eram apelidos mutuamente conferidos pelos meus três funcionários, e considerados expressivos quanto às suas respectivas personalidades e características. Turkey era um inglês atarracado, mais ou menos da minha idade, ou seja, não muito longe dos sessenta. De manhã podíamos dizer que seu rosto apresentava um belo matiz rosado, mas, depois de bater meio-dia – sua hora de almoço – flamejava como uma grelha cheia de brasas do Natal, e continuava ardendo – mas, por assim dizer, num declínio gradual – até as seis da tarde, mais ou menos; depois dessa hora, eu não via mais o seu rosto, que, atingindo o meridiano com o sol, parecia pôr-se como este para despontar no dia seguinte, atingir o apogeu e declinar com igual regularidade e indefectível radiação.

Das inúmeras coincidências singulares de que me apercebi no decurso da minha vida, uma delas, e, talvez, não das menores, foi a de que exatamente quando Turkey ostentava os raios mais ardentes de sua rubra e congestionada fisionomia, começava também nesse preciso momento crítico o período diário em que eu via sua capacidade profissional seriamente perturbada para o resto das vinte e quatro horas. Não que ele se mostrasse totalmente ocioso ou avesso ao trabalho, nestes momentos; longe disso. O problema é que, justamente, ele mostrava-se disposto a uma atividade frenética. Havia nele uma estranha, inflamada, confusa e estabanada inquietação. Não tomava o menor cuidado ao molhar a pena no tinteiro. Todos os seus borrões nos meus documentos eram feitos depois que dava meio-dia. Na verdade, não somente era desastrado e desagradavelmente dado a fazer borrões na parte da tarde, como também, em certos dias, exagerava, chegando a ser turbulento. Nessas ocasiões, seu rosto se inflamava com crescente ardor, como fogo sobre o qual se joga mais carvão vegetal. Fazia um tremendo barulho arrastando sua cadeira; entornava a areia da sua caixa de penas, as quais, ao tentar afiná-las, ele quebrava impacientemente em pedaços que, num repente raivoso, atirava ao chão; levantava-se e, debruçado sobre a mesa, dava murros nos papéis de forma tão destrambelhada que dava pena ver um homem de sua idade agir assim. Contudo, como era para mim uma criatura, a muitos títulos, bastante preciosa e, todo o tempo, antes de soar meio-dia, o sujeito mais rápido e aplicado, executando imenso trabalho de uma forma difícil de ser igualada – por essas razões eu estava disposto a não ligar para suas excentricidades, ainda que, de vez em quando, o repreendesse. Fazia-o, no entanto, com certa moderação, pois, embora fosse o mais cortês e respeitoso dos homens durante a parte da manhã, à tarde tinha tendência para a provocação e ficar de língua demasiado solta, em suma, tornava-se insolente. Em vista disso, como eu apreciava a sua atividade matinal e, por isso, não queria perdê-lo – apesar do incômodo que me causava seu comportamento depois do meio-dia –, e sendo eu um homem pacífico e nada disposto a provocar com as minhas repreensões respostas inconvenientes de sua parte, resolvi, num sábado, cerca de meio-dia (ele sempre piorava aos sábados) sugerir-lhe amavelmente que, talvez agora, que ele estava envelhecendo, seria melhor abreviar seus trabalhos; em resumo, não precisava vir ao escritório depois do meio-dia, e, após o almoço, seria melhor ir para casa e repousar até a hora do chá. Mas não; insistiu nos seus deveres vespertinos; animou-se de um ardor intolerável assegurando-me eloquentemente e sempre gesticulando de régua em punho, no outro extremo da sala, que, se seus serviços eram úteis de manhã, quão indispensáveis não seriam então na parte da tarde!

– Com o devido respeito, senhor – disse Turkey nessa ocasião –, eu me considero o seu braço direito. De manhã, apenas preparo a batalha e disponho as minhas colunas; mas de tarde eu tomo a dianteira e, intrepidamente, ataco o adversário, assim...! E arrematou com a régua, num gesto violento.

– E os borrões, Turkey? – objetei.

– É verdade, mas, com o devido respeito, senhor, observe os meus cabelos! Estou começando a envelhecer. Naturalmente, senhor, que um ou dois borrões numa tarde de irritação não constituem motivo para recriminar severamente estes cabelos grisalhos. A velhice, embora borre as páginas, é honrada. Com o devido respeito, senhor, ambos estamos envelhecendo.

Este apelo à minha simpatia foi difícil de resistir. Em todo o caso, compreendi que não aceitava a minha sugestão. Decidi então que ficasse, resolvido, no entanto, a fazer com que ele, na parte da tarde, se ocupasse dos meus documentos menos importantes.

Nippers, o segundo da minha lista, era um jovem macilento, de suíças, com um ar de pirata e cerca de vinte e cinco anos.