passa.… passa...

 

Nesta escuridão tristonha

Duma travessa sombria

Quando aparece risonha

Brilha mais que a luz do dia.

 

Quando está noite ceifada

E contemplo imagem sua

Que rompe a treva fechada

Como um reflexo da lua,

 

Penso ver o seu semblante

Com funda melancolia

Que o lábio embriagante

Não conheceu a alegria

 

E vejo curvado à dor

Todo o seu primeiro encanto

Comunica-me o palor

As faces, aos olhos pranto.

 

Todos os dias passava

Por aquela estreita rua

E o palor que me aterrava

Cada vez mais se acentua

 

Um dia já não passou

O outro também já não

A sua ausência cavou

Ferida no meu coração

 

Na manhã do outro dia

Com o olhar amortecido

Fúnebre cortejo via

E o coração dolorido

 

Lançou-me em pesar profundo

Lançou-me a mágoa seu véu:

Menos um ser neste mundo

E mais um anjo no céu.

 

Depois o carro funério

Esse carro de amargura

Entrou lá no cemitério

Eis ali a sepultura:

 

Epitáfio

Cristãos! Aqui jaz no pó da sepultura

Uma jovem filha da melancolia

O seu viver foi repleto d'amargura

Seu rir foi pranto, dor sua alegria.

 

Quando eu me sento à janela

Pelos vidros que a neve embaça

Julgo ver imagem dela

Que já não passa... não passa.

 

1902

 

 

[Em busca da beleza]

 

I

 

Soam vãos, dolorido epicurista,

Os versos teus, que a minha dor despreza;

Já tive a alma sem descrença presa

Desse teu sonho, que perturba a vista.

 

Da Perfeição segui em vã conquista,

Mas vi depressa, já sem a alma acesa,

Que a própria ideia em nós dessa beleza

Um infinito de nós mesmos dista.

 

Nem à nossa alma definir podemos

A Perfeição em cuja estrada a vida,

Achando-a intérmina, a chorar perdemos.

 

O mar tem fim, o céu talvez o tenha,

Mas não a ânsia de Coisa indefinida

Que o ser indefinida faz tamanha.

 

 

II

 

Nem defini-la, nem achá-la, a ela —

A Beleza. No mundo não existe.

Ai de quem com a alma inda mais triste

Nos seres transitórios quer colhê-la!

 

Acanhe-se a alma porque não conquiste

Mais que o banal de cada coisa bela,

Ou saiba que ao ardor de querer havê-la

À Perfeição — só a desgraça assiste.

 

Só quem da vida bebeu todo o vinho,

Dum trago ou não, mas sendo até o fundo,

Sabe (mas sem remédio) o bom caminho;

 

Conhece o tédio extremo da desgraça,

Que olha estupidamente o nauseabundo

Cristal inútil da vazia taça.

 

 

III

 

Só quem puder obter a estupidez

Ou a loucura pode ser feliz.

Buscar, querer, amar... tudo isto diz

Perder, chorar, sofrer, vez após vez.

 

A estupidez achou sempre o que quis

Do círculo banal — da sua avidez;

Nunca aos loucos o engano se desfez

Com quem um falso mundo seu condiz.

 

Há dois males: verdade e aspiração,

E há uma forma só de os saber males:

É conhecê-los bem, saber que são

 

Um o horror real, o outro o vazio —

Horror não menos — dois como que vales

Duma montanha que ninguém subiu.

 

 

IV

 

Leva me longe, meu suspiro fundo,

Além do que deseja e que começa,

Lá muito longe, onde o viver se esqueça

Das formas metafísicas do mundo.

 

Aí que o meu sentir vago e profundo

O seu lugar exterior conheça,

Aí durma em fim, aí enfim faleça

O cintilar do espírito fecundo.

 

Aí... mas de que serve imaginar

Regiões onde o sonho é verdadeiro

Ou terras para o ser atormentar?

 

É elevar demais a aspiração,

E, falhado esse sonho derradeiro,

Encontrar mais vazio o coração.

 

 

V

 

Braços cruzados, sem pensar nem crer,

Fiquemos pois sem mágoas nem desejos.

Deixemos beijos, pois o que são beijos?

A vida é só o esperar morrer.

 

Longe da dor e longe do prazer,

Conheçamos no sono os benfazejos

Poderes únicos; sem urzes, brejos,

A sua estrada sabe apetecer.

 

Coroado de papoilas e trazendo

Artes porque com sono tira sonhos,

Venha Morfeu, que as almas envolvendo,

 

Faça a felicidade ao mundo vir

Num nada onde sentimo-nos risonhos

Só de sentirmos nada já sentir.

 

 

VI

 

O sono — Oh, ilusão! — o sono? quem

Logrará esse vácuo ao qual aspira

A alma que, de aspirar em vão, delira,

E já nem força para querer tem?

 

Que sono apetecemos? O d'alguém

Adormecido na feliz mentira

Da sonolência vaga que nos tira

Todo o sentir no qual a dor nos vem?

 

Ilusão tudo! Querer um sono eterno,

Um descanso, uma paz, não é senão

O último anseio desesperado e vão.

 

Perdido, resta o derradeiro inferno

Do tédio intérmino, esse de já não

Nem aspirar a ter aspiração.

 

1909

 

 

[Mar. Manhã]

 

Suavemente grande avança

Cheia de sol a onda do mar;

Pausadamente se balança,

E desce como a descansar.

 

Tão lenta e longa que parece

De uma criança de Titã

O glauco seio que adormece,

Arfando à brisa da manhã.

 

Parece ser um ente apenas

Este correr da onda do mar

Como uma cobra que em serenas

Dobras se alongue a colear.

 

Unido e vasto e interminável

No são sossego azul do sol,

Arfa com um mover-se estável

O oceano ébrio de arrebol.

 

E a minha sensação é nula,

Quer de prazer, quer de pesar...

Ébria de alheia a mim ondula

Na onda lúcida do mar.

 

1909

 

 

[Visão]

 

Há um país imenso mais real

Do que a vida que o mundo mostra ter

Mais do que a Natureza natural

À verdade tremendo de viver.

 

Sob um céu uno e plácido e normal

Onde nada se mostra haver ou ser

Onde nem vento geme, nem fatal

A ideia de uma nuvem se faz crer,

 

Jaz — uma terra não — não um solo

Mas estranha, gelando em desconsolo

A alma que vê esse pais sem véu,

 

Hirtamente silente nos espaços

Uma floresta de escarnados braços

Inutilmente erguidos para o céu.

 

1910

 

 

[Análise]

 

Tão abstrata é a ideia do teu ser

Que me vem de te olhar, que, ao entreter

Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,

E nada fica em meu olhar, e dista

Teu corpo do meu ver tão longemente,

E a ideia do teu ser fica tão rente

Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me

Sabendo que tu és, que, só por ter-me

Consciente de ti, nem a mim sinto.

E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto

A ilusão da sensação, e sonho,

Não te vendo, nem vendo, nem sabendo

Que te vejo, ou sequer que sou, risonho

Do interior crepúsculo tristonho

Em que sinto que sonho o que me sinto sendo.

 

1911

 

 

[Ó naus felizes]

 

Ó naus felizes, que do mar vago

Volveis enfim ao silêncio do porto

Depois de tanto noturno mal —

Meu coração é um morto lago,

E à margem triste do lago morto

Sonha um castelo medieval...

 

E nesse, onde sonha, castelo triste,

Nem sabe saber a, de mãos formosas

Sem gosto ou cor, triste castelã

Que um porto além rumoroso existe,

Donde as naus negras e silenciosas

Se partem quando é no mar amanhã...

 

Nem sequer sabe que há o, onde sonha,

Castelo triste... Seu espírito monge

Para nada externo é perto e real...

E enquanto ela assim se esquece, tristonha,

Regressam, velas no mar ao longe,

As naus ao porto medieval...

 

1910 (?)

 

 

[Hora morta]

 

Lenta e lenta a hora

Por mim dentro soa

(Alma que se ignora!)

Lenta e lenta e lenta,

Lenta e sonolenta

A lua se escoa...

 

Tudo tão inútil!

Tão como que doente

Tão divinamente

Fútil — ah, tão fútil

Sonho que se sente

De si próprio ausente...

 

Naufrágio ante o ocaso

Hora de piedade...

Tudo é névoa e acaso

Hora oca e perdida,

Cinza de vivida

(Que Poente me invade?)

 

Por que lenta ante olha

Lenta em seu som,

Que sinto ignorar?

Por que é que me gela

Meu próprio pensar

Em sonhar amar?...

 

Que morta esta hora!

Que alma minha chora

Tão perdida e alheia?...

Mar batendo na areia,

Para quê? para quê?

Pra ser o que se vê

Na alva areia batendo?

Só isto? Não há

Lâmpada de haver —

— Um — sentido ardendo

Dentro da hora — já

Espuma de morrer?

 

1913

 

 

[Impressões do crepúsculo]

 

Pauis [pântanos] que roçarem ânsias pela minha alma em ouro...

Dobre longínquo de Outros Sinos... Empalidece o louro

Trigo na cinza do poente... Corre um frio carnal por minha alma...

Tão sempre a mesma, a Hora!... Balouçar de cimos de palma!...

Silêncio da parte inferior das folhas, outono delgado

Dum canto de vaga ave... Azul esquecidos em estagnado...

Ó que mudo grito de ânsia põe garras na Hora!...

Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora?...

Estendo as mãos para Além, mas no estender delas já vejo

Que não é aquilo que quero aquilo que desejo...

Címbalos de imperfeição... Ó tão antiguidade

A hora expulsa de si-Tempo!... Onda de recuo que invade

O meu abandonar-me a mim-próprio até desfalecer

E recordar tanto o eu presente que me sinto esquecer...

Fluido de auréola transparente de Foi, oco de ter-se...

O mistério sabe-me a eu ser outro... Luar sobre o não conter-se...

A sentinela é hirta, a lança que finca no chão

É mais alta que ela... Pra que é tudo isto... Dia chão...

Trepadeiras de despropósito lambendo de Hora os aléns!

Horizontes fechando os olhos ao espaço em que são elos de erro!

Fanfarras de ópios de silêncios futuros!... Longes trens!...

Portões vistos longe, através das árvores, tão de ferro!...

 

1913

 

 

[Hora absurda]

 

O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas...

Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...

E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas

Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...

 

Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...

O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...

Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto

Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...

 

Abre todas as portas e que o vento varra a ideia

Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões...

Minha alma é uma caverna enchida pela maré cheia,

E a minha ideia de te sonhar uma caravana de histriões...

 

Chove ouro baço, mas não no lá-fora... É em mim... Sou a Hora,

E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela...

Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...

No meu céu interior nunca houve uma única estrela...

 

Hoje o céu é pesado como a ideia de nunca chegar a um porto...

A chuva miúda é vazia... a Hora sabe a ter sido...

Não haver qualquer coisa como leitos para as naus!... Absorto

Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...

 

Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,

Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há,

Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,

E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...

 

Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos...

Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas...

Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas...

E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos...

 

Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram!

Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam

De Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram

Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...

 

O palácio está em ruínas...