Na província neva.

Nos lares aconchegados,

Um sentimento conserva

Os sentimentos passados.

 

Coração oposto ao mundo,

Como a família é verdade!

Meu pensamento é profundo,

Estou só e sonho saudade.

 

E como é branca de graça

A paisagem que não sei,

Vista de trás da vidraça

Do lar que nunca terei!

 

1928 (ou anterior)

 

[Tenho dó das estrelas]

 

Tenho dó das estrelas

Luzindo há tanto tempo,

Há tanto tempo...

Tenho dó delas.

 

Não haverá um cansaço

Das coisas.

De todas as coisas,

Como das pernas ou de um braço?

 

Um cansaço de existir,

De ser,

Só de ser,

O ser triste brilhar ou sorrir...

 

Não haverá, enfim,

Para as coisas que são,

Não a morte, mas sim

Uma outra espécie de fim,

Ou uma grande razão —

Qualquer coisa assim

Como um perdão?

 

1928 (ou anterior)

 

 

[Abajur]

 

A lâmpada acesa

(Outrem a acendeu)

Baixa uma beleza

Sobre o chão que é meu.

 

No quarto deserto

Salvo o meu sonhar,

Faz no chão incerto

Um círculo a ondear.

 

E entre a sombra e a luz

Que oscila no chão

Meu sonho conduz

Minha inatenção.

 

Bem sei... Era dia

E longe de aqui...

Quanto me sorria

O que nunca vi!

 

E no quarto silente

Com a Luz a ondear

Deixei vagamente

Até de sonhar...

 

1929

 

 

[Um muro de nuvens densas]

 

Um muro de nuvens densas

Põe na base do ocidente

Negras roxuras pretensas.

 

Com a noite tudo acaba.

O céu frio é transparente.

Nada de chuva desaba.

 

E não sei se tenho pena

Ou alegria da ausente

Chuva e da noite serena

 

De resto, nunca sei nada,

Minha alma é a sombra presente

De uma presença passada.

 

Meus sentimentos são rastros.

Só meu pensamento sente...

A noite esfria-se de astros.

 

1929

 

 

[Aqui na orla da praia]

 

Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,

Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar,

Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,

E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.

 

A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio

Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;

O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é;

A glória concede e nega; não tem verdades a fé.

 

Por isso na orla morena da praia calada e só,

Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;

Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,

E comecei a morrer muito antes de ter vivido.

 

Deem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,

Não quero nada do acaso, senão a brisa na face;

Deem-me um vago amor de quanto nunca terei,

Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.

 

Só, no silêncio cercado pelo som brusco do mar,

Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,

Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,

Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.

 

1929

 

 

[Como inútil taça cheia]

 

Como inútil taça cheia

Que ninguém ergue da mesa,

Transborda de dor alheia

Meu coração sem tristeza.

 

Sonhos de mágua figura

Só para ter que sentir

E assim não tem a amargura

Que se temeu a fingir.

 

Ficção num palco sem tábuas

Vestida de papel seda

Mima uma dança de mágoas

Para que nada suceda.

 

1930

 

 

[Gomes Leal]

 

Sagra, sinistro, a alguns o astro baço.

Seus três anéis irreversíveis são

A desgraça, a tristeza, a solidão.

Oito luas fatais fitam no espaço.

 

Este, poeta, Apolo em seu regaço

A Saturno entregou. A plúmbea mão

Lhe ergueu ao alto o aflito coração,

E, erguido, o apertou, sangrando lasso.

 

Inúteis oito luas da loucura

Quando a cintura tríplice denota

Solidão e desgraça e amargura!

 

Mas da noite sem fim um rastro brota,

Vestígios de maligna formosura:

É a lua além de Deus, álgida e ignota.

 

1924 (?)

 

 

[Meus pensamentos de mágoa]

 

Boiam leves, desatentos,

Meus pensamentos de mágoa

Como, no sono dos ventos,

As algas, cabelos lentos

Do corpo morto das águas.

 

Boiam como folhas mortas

À tona de águas paradas.

São coisas vestindo nadas,

Pós remoinhando nas portas

Das casas abandonadas.

 

Sono de ser, sem remédio,

Vestígio do que não foi,

Leve mágoa, breve tédio,

Não sei se para, se flui;

Não sei se existe ou se dói.

 

1930

 

 

[Contemplo o lago mudo]

 

Contemplo o lago mudo

Que uma brisa estremece.

Não sei se penso em tudo

Ou se tudo me esquece.

 

O lago nada me diz.

Não sinto a brisa mexê-lo.

Não sei se sou feliz

Nem se desejo sê-lo.

 

Trémulos vincos risonhos

Na água adormecida.

Por que fiz eu dos sonhos

A minha única vida?

 

1930

 

 

[Entre a tormenta]

 

Às vezes entre a tormenta,

Quando já umedeceu,

Raia uma nesga de céu,

Com que a alma se alimenta.

 

E às vezes entre o torpor

Que não é tormenta da alma,

Raia uma espécie de calma

Que não conhece o langor.

 

E, quer num quer noutro caso,

Como o mal feito está feito,

Restam os versos que deito,

Vinho no copo do acaso.

 

Porque verdadeiramente

Sentir é tão complicado

Que é só andando enganado

É que se crê que se sente.

 

Sofremos? Os versos pecam.

Mentimos? Os versos falham.

E tudo é chuvas que orvalham

Folhas caídas que secam.

 

1930

 

 

[A surpresa de ser]

 

Dá a surpresa de ser

É alta, de um louro escuro.

Faz bem só pensar em ver

Seu corpo meio maduro.

 

Seus seios altos parecem

(Se ela estivesse deitada)

Dois montinhos que amanhecem

Sem ter que haver madrugada.

 

E a mão do seu braço branco

Assenta em palmo espalhado

Sobre a saliência do flanco

Do seu relevo tapado.

 

Apetece como um barco.

Tem qualquer coisa de gomo.

Meu Deus, quando é que eu embarco?

Ó fome, quando é que eu como?

 

1930

 

 

[Tenho dito tantas vezes]

 

Tenho dito tantas vezes

Quanto sofro sem sofrer

Que me canso dos revezes

Que sonho só pra os não ter.

 

E esta dor que não tem mágoa,

Esta tristeza inatingível

Passa em mim como um som de água

Ouvido num outro nível.

 

E, de aí, talvez que seja

Uma nova antiga dor

Que outra vida minha esteja

Lembrando no meu torpor.

 

E é como a aragem que nasce

De ouvir música e sentir...

Ah, que a emoção em mim passe

Como se a estivesse a ouvir!

 

1930

 

 

[A sombra vasta]

 

Lenta e quieta a sombra vasta

Cobre o que vejo menos já.

Pouco somos, pouco nos basta.

O mundo tira o que nos dá.

Que nos contente o pouco que há.

 

A noite, vindo corno nada,

Lembra-me quem deixei de ser,

A curva anónima da estrada

Faz-me lembrar, faz-me esquecer,

Faz-me ter pena e ter de a ter.

 

Ó largos campos já cinzentos

Na noite, para além de mim,

Vou amanhã meus pensamentos

Enterrar onde estais assim.

Vou ter aí sossego e fim.

 

Poesia! Nada! A hora desce

Sem qualidade ou emoção.

Meu coração o que é que esquece?

Se é o que eu sinto que foi vão,

Porque me dói o coração?

 

1930

 

 

[É dia de Natal]

 

Chove. É dia de Natal.

Lá para o Norte é melhor:

Há a neve que faz mal.

E o frio que ainda é pior.

 

E toda a gente é contente

Porque é dia de o ficar.

Chove no Natal presente.

Antes isso que nevar.

 

Pois apesar de ser esse

O Natal da convenção,

Quando o corpo me arrefece

Tenho o frio e Natal não.

 

Deixo sentir a quem quadra

E o Natal a quem o fez,

Pois se escrevo ainda outra quadra

Fico gelado dos pés.

 

1930

 

 

[Por trás daquela janela]

 

Por trás daquela janela

Cuja cortina não muda

Coloco a visão daquela

Que a alma em si mesma estuda

No desejo que a revela.

 

Não tenho falta de amor.

Quem me queira não me falta.

Mas teria outro sabor

Se isso fosse interior

Àquela janela alta.

 

Por quê? Se eu soubesse, tinha

Tudo o que desejo ter.

Amei outrora a Rainha,

E há sempre na alma minha

Um trono por preencher.

 

Sempre que posso sonhar,

Sempre que não vejo, ponho

O trono nesse lugar;

Além da cortina é o lar,

Além da janela o sonho.

 

Assim, passando, entreteço

O artifício do caminho

E um pouco de mim me esqueço

Pois mais nada à vida peço

Do que ser o seu vizinho.

 

1930

 

 

[O último sortilégio]

 

“Já repeti o antigo encantamento

E a grande Deusa aos olhos se negou.

Já repeti, nas pausas do amplo vento,

As orações cuja alma é um ser fecundo.

Nada me o abismo deu ou o céu mostrou.

Só o vento volta onde estou toda e só,

E tudo dorme no confuso mundo.

 

Outrora meu condão fadava as sarças

E a minha evocação do solo erguia

Presenças concentradas das que esparsas

Dormem nas formas naturais das coisas.

Outrora a minha voz acontecia.

Fadas e elfos, se eu chamasse, via,

E as folhas da floresta eram lustrosas.

 

Minha varinha, com que da vontade

Falava às existências essenciais,

Já não conhece a minha realidade.

Já, se o círculo traço, não há nada.

Murmura o vento alheio extintos ais,

E ao luar que sobe além dos matagais

Não sou mais do que os bosques ou a estrada.

 

Já me falece o dom com que me amavam.

Já me não torno a forma e o fim da vida

A quantos que, buscando-os, me buscavam.

Já, praia, o mar dos braços não me inunda.

Nem já me vejo ao sol saudado erguida,

Ou, em êxtase mágico perdida,

Ao luar, à boca da caverna funda.

 

Já as sacras potências infernais,

Que, dormentes sem deuses nem destino,

À substância das coisas são iguais,

Não ouvem minha voz ou os nomes seus.

A música partiu-se do meu hino.

Já meu furor astral não é divino

Nem meu corpo pensado é já um Deus.

 

E as longínquas deidades do atro poço,

Que tantas vezes, pálida, evoquei

Com a raiva de amar em alvoroço,

Inevocadas hoje ante mim estão.

Como, sem que as amasse, eu as chamei,

Agora, que não amo, as tenho, e sei

Que meu vendido ser consumirão.

 

Tu, porém, Sol, cujo ouro me foi presa,

Tu, Lua, cuja prata converti,

Se já não podeis dar-me essa beleza

Que tantas vezes tive por querer,

Ao menos meu ser findo dividi —

Meu ser essencial se perca em si,

Só meu corpo sem mim fique alma e ser!

 

Converta-me a minha última magia

Numa estátua de mim em corpo vivo!

Morra quem sou, mas quem me fiz e havia,

Anónima presença que se beija,

Carne do meu abstrato amor cativo,

Seja a morte de mim em que revivo;

E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!”

 

1930

 

 

[Gato que brincas na rua]

 

Gato que brincas na rua

Como se fosse na cama,

Invejo a sorte que é tua

Porque nem sorte se chama.

 

Bom servo das leis fatais

Que regem pedras e gentes,

Que tens instintos gerais

E sentes só o que sentes.

 

És feliz porque és assim,

Todo o nada que és é teu.

Eu vejo-me e estou sem mim,

Conheço-me e não sou eu.

 

1931

 

 

[Não digas nada!]

 

Não: não digas nada!

Supor o que dirá

A tua boca velada

É ouvi-lo já.

 

É ouvi-lo melhor

Do que o dirias.

O que és não vem à flor

Das frases e dos dias.

 

És melhor do que tu.

Não digas nada; sê!

Graça do corpo nu

Que invisível se vê.

 

1931

 

 

[De onde é quase o horizonte]

 

De onde é quase o horizonte

Sobe uma névoa ligeira

E afaga o pequeno monte

Que para na dianteira.

 

E com braços de farrapo

Quase invisíveis e frios

Faz cair seu ser de trapo

Sobre os contornos macios.

 

Um pouco de alto medito

A névoa só com a ver.

A vida? Não acredito.

A crença? Não sei viver.

 

1931

 

 

[Vai uma nuvem errando]

 

Vaga, no azul amplo solta,

Vai uma nuvem errando.

O meu passado não volta.

Não é o que estou chorando.

 

O que choro é diferente.

Entra mais na alma da alma.

Mas como, no céu sem gente,

A nuvem flutua calma,

 

E isto lembra uma tristeza

E a lembrança é que entristece,

Dou à saudade a riqueza

De emoção que a hora tece.

 

Mas, em verdade, o que chora

Na minha amarga ansiedade

Mais alto que a nuvem mora,

Está para além da saudade.

 

Não sei o que é nem consinto

À alma que o saiba bem

Visto da dor com que minto

Dor que a minha alma tem.

 

1931

 

 

[O andaime]

 

O tempo que eu hei sonhado

Quantos anos foi de vida!

Ah, quanto do meu passado

Foi só a vida mentida

De um futuro imaginado!

 

Aqui à beira do rio

Sossego sem ter razão.

Este seu correr vazio

Figura, anónimo e frio,

A vida vivida em vão.

 

A esperança que pouco alcança!

Que desejo vale o ensejo?

E uma bola de criança

Sobe mais que a minha esperança.

Rola mais que o meu desejo.

 

Ondas do rio, tão leves

Que não sois ondas sequer,

Horas, dias, anos, breves

Passam — verduras ou neves

Que o mesmo sol faz morrer.

 

Gastei tudo que não tinha

Sou mais velho do que sou.

A ilusão, que me mantinha,

Só no palco era rainha;

Despiu-se, e o reino acabou.

 

Leve som das águas lentas,

Gulosas da margem ida,

Que lembranças sonolentas

De esperanças nevoentas!

Que sonhos o sonho e a vida!

 

Que fiz de mim? Encontrei-me

Quando estava já perdido.

Impaciente deixei-me

Como a um louco que teime

No que lhe foi desmentido.

 

Som morto das águas mansas

Que correm por ter que ser,

Leva não só as lembranças,

Mas as mortas esperanças —

Mortas, porque hão de morrer.

 

Sou já o morto futuro.

Só um sonho me liga a mim —

O sonho atrasado e obscuro

Do que eu devera ser — muro

Do meu deserto jardim.

 

Ondas passadas, levai-me

Para o olvido do mar!

Ao que não serei legai-me,

Que cerquei com um andaime

A casa por fabricar.

 

1924

 

 

[Hoje que a tarde é calma e o céu tranquilo]

 

Hoje que a tarde é calma e o céu tranquilo,

E a noite chega sem que eu saiba bem,

Quero considerar-me e ver aquilo

Que sou, e o que sou o que é que tem.

 

Olho por todo o meu passado e vejo

Que fui quem foi aquilo em torno meu,

Salvo o que o vago e incógnito desejo

De ser eu mesmo de meu ser me deu.

 

Como a páginas já relidas, vergo

Minha atenção sobre quem fui de mim,

E nada de verdade em mim albergo

Salvo uma ânsia sem princípio ou fim.

 

Como alguém distraído na viagem,

Segui por dois caminhos par a par.

Fui com o mundo, parte da paisagem;

Comigo fui, sem ver nem recordar.

 

Chegado aqui, onde hoje estou, conheço

Que sou diverso no que informe estou.

No meu próprio caminho me atravesso

Não conheço quem fui no que hoje sou.

 

Serei eu, porque nada é impossível,

Vários trazidos de outros mundos, e

No mesmo ponto espacial sensível

Que sou eu, sendo eu por estar aqui?

 

Serei eu, porque todo o pensamento

Podendo conceber, bem pode ser,

Um dilatado e múrmuro momento,

De tempos-seres de quem sou o viver?

 

1931

 

 

[Guia-me a só razão]

 

Guia-me a só razão.

Não me deram mais guia

Alumia-me em vão?

Só ela me alumia.

 

Tivesse quem criou

O mundo desejado

Que eu fosse outro que sou

Ter-me-ia outro criado.

 

Deu-me olhos para ver.

Olho, vejo, acredito.

Como ousarei dizer:

“Cego, fora eu bendito”?

 

Como o olhar, a razão

Deus me deu, para ver

Para além da visão

Olhar de conhecer.

 

Se ver é enganar-me,

Pensar um descaminho,

Não sei. Deus os quis dar-me

Por verdade e caminho.

 

1932

 

 

[Há quase um ano não escrevo]

 

Há quase um ano não escrevo.

Pesada, a meditação

Torna-me alguém que não devo

Interromper na atenção.

 

Tenho saudades de mim,

De quando, de alma alheada,

Eu era não ser assim,

E os versos vinham de nada.

 

Hoje penso quanto faço,

Escrevo sabendo o que digo...

Para quem desce do espaço

Este crepúsculo antigo?

 

1932

 

 

[Fúria nas trevas o vento]

 

Fúria nas trevas o vento

Num grande som de alongar

Não há no meu pensamento

Senão não poder parar.

 

Parece que a alma tem

Treva onde sopre a crescer

Uma loucura que vem

De querer compreender.

 

Raiva nas trevas o vento

Sem se poder libertar.

Estou preso ao meu pensamento

Como o vento preso ao ar.

 

1932

 

 

[A morte é a curva da estrada]

 

A morte é a curva da estrada,

Morrer é só não ser visto.

Se escuto, eu te ouço a passada

Existir como eu existo.

 

A terra é feita de céu.

A mentira não tem ninho.

Nunca ninguém se perdeu.

Tudo é verdade e caminho.

 

1932

 

 

[Quem bate à minha porta?]

 

Quem bate à minha porta

Tão insistentemente

Saberá que está morta

A alma que em mim sente?

 

Saberá que eu a velo

Desde que a noite é entrada

Com o vácuo e vão desvelo

De quem não vela nada?

 

Saberá que estou surdo?

Porque o sabe ou não sabe,

E assim bate, ermo e absurdo,

Até que o mundo acabe?

 

1932

 

 

[Iniciação]

 

Não dormes sob os ciprestes,

Pois não há sono no mundo.

 

...

 

O corpo é a sombra das vestes

Que encobrem teu ser profundo.

 

Vem a noite, que é a morte

E a sombra acabou sem ser.

Vais na noite só recorte,

Igual a ti sem querer.

 

Mas na Estalagem do Assombro

Tiram-te os Anjos a capa.

Segues sem capa no ombro,

Com o pouco que te tapa.

 

Então Arcanjos da Estrada

Despem-te e deixam-te nu.

Não tens vestes, não tens nada:

Tens só teu corpo, que és tu.

 

Por fim, na funda caverna,

Os Deuses despem-te mais.

Teu corpo cessa, alma externa,

Mas vês que são teus iguais.

 

...

 

A sombra das tuas vestes

Ficou entre nós na Sorte.

Não estás morto, entre ciprestes.

 

...

 

Neófito, não há morte.

 

1935 (ou anterior)

 

 

[Na sombra do Monte Abiegno]

 

Na sombra do Monte Abiegno

Repousei de meditar.

Vi no alto o alto Castelo

Onde sonhei de chegar.

Mas repousei de pensar

Na sombra do Monte Abiegno.

 

Quando fora amor ou vida,

Atrás de mim o deixei,

Quando fora desejá-los,

Porque esqueci não lembrei.

À sombra do Monte Abiegno

Repousei porque abdiquei.

 

Talvez um dia, mais forte

Da força ou da abdicação,

Tentarei o alto caminho

Por onde ao Castelo vão.

Na sombra do Monte Abiegno

Por ora repouso, e não.

 

Quem pode sentir descanso

Com o Castelo a chamar?

Está no alto, sem caminho

Senão o que há por achar.

Na sombra do Monte Abiegno

Meu sonho é de o encontrar.

 

Mas por ora estou dormindo,

Porque é sono o não saber.

Olho o Castelo de longe,

Mas não olho o meu querer.

Da sombra do Monte Abiegno

Que me virá desprender?

 

1932

 

 

[Do vale à montanha]

 

Do vale à montanha,

Da montanha ao monte,

Cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por casas, por prados,

Por quinta e por fonte,

Caminhais aliados.

 

Do vale à montanha,

Da montanha ao monte,

Cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por penhascos pretos,

Atrás e defronte,

Caminhais secretos.

 

Do vale à montanha,

Da montanha ao monte,

Cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por plainos desertos

Sem ter horizontes,

Caminhais libertos.

 

Do vale à montanha,

Da montanha ao monte,

Cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por ínvios caminhos,

Por rios sem ponte,

Caminhais sozinhos.

 

Do vale à montanha,

Da montanha ao monte

Cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por quanto é sem fim,

Sem ninguém que o conte,

Caminhais em mim.

 

1932

 

 

[Cansa sentir quando se pensa]

 

Cansa sentir quando se pensa.

No ar da noite a madrugar

Há uma solidão imensa

Que tem por corpo o frio do ar.

 

Neste momento insone e triste

Em que não sei quem hei de ser,

Pesa-me o informe real que existe

Na noite antes de amanhecer.

 

Tudo isto me parece tudo.

E é uma noite a ter um fim

Um negro astral silêncio surdo

E não poder viver assim.

 

(Tudo isto me parece tudo.

Mas noite, frio, negro sem fim,

Mundo mudo, silêncio mudo —

Ah, nada é isto, nada é assim!)

 

1932

 

 

[A quem o devo?]

 

Não meu, não meu é quanto escrevo,

A quem o devo?

De quem sou o arauto nado?

Porque, enganado,

Julguei ser meu o que era meu?

Que outro me deu?

Mas, seja como for, se a sorte

For eu ser morte

De uma outra vida que em mim vive,

Eu, o que estive

Em ilusão toda esta vida

Aparecida,

Sou grato. Ao que do pó que sou

Me levantou.

 

(E me fez nuvem um momento

De pensamento).

 

(Ao de quem sou, erguido pó,

Símbolo só).

 

1932

 

 

[Sorriso audível das folhas]

 

Sorriso audível das folhas,

Não és mais que a brisa ali.

Se eu te olho e tu me olhas,

Quem primeiro é que sorri?

O primeiro a sorrir ri.

 

Ri, e olha de repente,

Para fins de não olhar,

Para onde nas folhas sente

O som do vento passar.

Tudo é vento e disfarçar.

 

Mas o olhar, de estar olhando

Onde não olha, voltou;

E estamos os dois falando

O que se não conversou.

Isto acaba ou começou?

 

1930

 

 

[Autopsicografia]

 

O poeta é um fingidor

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

 

E os que leem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

 

E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração.

 

1931

 

 

[Isto]

 

Dizem que finjo ou minto

Tudo que escrevo. Não.

Eu simplesmente sinto

Com a imaginação.

Não uso o coração.

 

Tudo o que sonho ou passo,

O que me falha ou finda,

É como que um terraço

Sobre outra coisa ainda.

Essa coisa é que é linda.

 

Por isso escrevo em meio

Do que não está ao pé,

Livre do meu enleio,

Sério do que não é.

Sentir? Sinta quem lê!

 

1933 (ou anterior)

 

 

[Passa uma nuvem pelo sol]

 

Passa uma nuvem pelo sol

Passa uma pena por quem vê.

A alma é como um girassol:

Vira-se ao que não está ao pé.

 

Passou a nuvem; o sol volta.

A alegria girassolou.

Pendão latente de revolta,

Que hora maligna te enrolou?

 

1933

 

 

[É brando o dia]

 

É brando o dia, brando o vento.

É brando o sol e brando o céu.

Assim fosse meu pensamento!

Assim fosse eu, assim fosse eu!

 

Mas entre mim e as brandas glórias

Deste céu limpo e este ar sem mim

Intervêm sonhos e memórias...

Ser eu assim, ser eu assim!

 

Ah, o mundo é quanto nós trazemos.

Existe tudo quanto existo.

Há porque vemos.

E tudo é isto, tudo é isto!

 

1933

 

 

[Entre o luar e a folhagem]

 

Entre o luar e a folhagem,

Entre o sossego e o arvoredo,

Entre o ser noite e haver aragem

Passa um segredo.

Segue-o minha alma na passagem

 

Tênue lembrança ou saudade,

Princípio ou fim do que não foi,

Não tem lugar, não tem verdade,

Atrai e dói.

Segue-o meu ser em liberdade.

 

Vazio encanto ébrio de si!

Tristeza ou alegria o traz?

O que sou dele a quem sorri?

Não é nem faz.

Só de segui-lo me perdi.

 

1933

 

 

[O cheiro de flores]

 

Ouço, como se o cheiro

De flores me acordasse...

É música — um canteiro

De influência e disfarce.

 

Impalpável lembrança,

Sorriso de ninguém,

Com aquela esperança

Que nem esperança tem...

 

Que importa, se sentir

É não se conhecer?

Ouço, e sinto sorrir

O que em mim nada quer.

 

1933

 

 

[Nuvens sobre a floresta]

 

Nuvens sobre a floresta...

Sombra com sombra a mais...

Minha tristeza é esta —

A das coisas reais.

 

A outra, a que pertence

Aos sonhos que perdi,

Nesta hora não me vence,

Se a há, não a há aqui.

 

Mas esta, a do arvoredo

Que o céu sem luz invade,

Faz-me receio e medo...

Quem foi minha saudade?

 

1933

 

 

[Não sei se é sonho, se realidade]

 

Não sei se é sonho, se realidade,

Se uma mistura de sonho e vida,

Aquela terra de suavidade

Que na ilha extrema do sul se olvida.

É a que ansiamos. Ali, ali

A vida é jovem e o amor sorri

 

Talvez palmares inexistentes,

Áleas longínquas sem poder ser,

Sombra ou sossego deem aos crentes

De que essa terra se pode ter

Felizes, nós? Ali, talvez, talvez,

Naquela terra, daquela vez,

 

Mas já sonhada se desvirtua,

Só de pensá-la cansou pensar;

Sob os palmares, à luz da lua,

Sente-se o frio de haver luar

Ah, nesta terra também, também

O mal não cessa, não dura o bem.

 

Não é com ilhas do fim do mundo,

Nem com palmares de sonho ou não,

Que cura a alma seu mal profundo,

Que o bem nos entra no coração.

É em nós que é tudo. É ali, ali,

Que a vida é jovem e o amor sorri.

 

1933

 

 

[Aqui onde se espera]

 

Aqui onde se espera

— Sossego, só sossego —

Isso que outrora era,

 

Aqui onde, dormindo,

— Sossego, só sossego —

Se sente a noite vindo,

 

E nada importaria

— Sossego, só sossego —

Que fosse antes o dia,

 

Aqui, aqui estarei

— Sossego, só sossego —

Como no exílio um rei,

 

Gozando da ventura

— Sossego, só sossego —

De não ter a amargura

 

De reinar, mas guardando

— Sossego, só sossego —

O nome venerando...

 

Que mais quer quem descansa

— Sossego, só sossego —

Da dor e da esperança,

 

Que ter a negação

— Sossego, só sossego —

De todo o coração?

 

1933

 

 

[Redemoinha o vento]

 

Redemoinha o vento,

Anda à roda o ar.

Vai meu pensamento

Comigo a sonhar.

 

Vai saber na altura

Como no arvoredo

Se sente a frescura

Passar alta a medo.

 

Vai saber de eu ser

Aquilo que eu quis

Quando ouvi dizer

O que o vento diz.

 

1933

 

 

[Momento imperceptível]

 

Momento imperceptível,

Que coisa foste, que há

Já em mim qualquer coisa

Que nunca passará?

 

Sei que, passados anos,

O que isto é lembrarei,

Sem saber já o que era,

Que até já o não sei.

 

Mas, nada só que fosse,

Fica dele um ficar

Que será suave ainda

Quando eu o não lembrar.

 

1933

 

 

[Um rumor de pertencer]

 

Vai alto pela folhagem

Um rumor de pertencer,

Como se houvesse na aragem

Uma razão de querer.

 

Mas, sim, é como se o som

Do vento no arvoredo

Tivesse um intuito, ou bom

Ou mau, mas feito em segredo,

 

E que, pensando no abismo

Onde os ventos são ninguém,

Subisse até onde cismo,

E, alto, alado, num vaivém

 

De tormenta comovesse

As árvores agitadas

Até que delas me viesse

Este mau conto de fadas.

 

1933

 

 

[Quando as crianças brincam]

 

Quando as crianças brincam

E eu as ouço brincar,

Qualquer coisa em minha alma

Começa a se alegrar.

 

E toda aquela infância

Que não tive me vem,

Numa onda de alegria

Que não foi de ninguém.

 

Se quem fui é enigma,

E quem serei visão,

Quem sou ao menos sinta

Isto no coração.

 

1933

 

 

[Passos tardam na relva]

 

Passos tardam na relva

Entre o luar e o luar,

Tudo é eflúvio e selva.

Sente-se alguém passar.

 

Passa, pisando leve

O chão que o luar desmente,

Num pálido hausto leve

De pisar levemente.

 

É elfo, é gnomo, é fada

A forma que ninguém vê?

Lembro: não houve nada.

Sinto, e a saudade crê.

 

1933

 

 

[O que me dói]

 

O que me dói não é

O que há no coração

Mas essas coisas lindas

Que nunca existirão...

 

São as formas sem forma

Que passam sem que a dor

As possa conhecer

Ou as sonhar o amor.

 

São como se a tristeza

Fosse árvore e, uma a uma,

Caíssem suas folhas

Entre o vestígio e a bruma.

 

1933

 

 

[Por que é que um sono agita]

 

Porque é que um sono agita

Em vez de repousar

O que em minha alma habita

E a faz não descansar?

 

Que externa sonolência,

Que absurda confusão,

Me oprime sem violência

Me faz ver sem visão?

 

Entre o que vivo e a vida,

Entre quem estou e sou,

Durmo numa descida,

Descida em que não vou.

 

E, num infiel regresso

Ao que já era bruma,

Sonolento me apresso

Para coisa nenhuma.

 

1933

 

 

[Contemplo o que não vejo]

 

Contemplo o que não vejo.

É tarde, é quase escuro,

E quanto em mim desejo

Está parado ante o muro.

 

Por cima o céu é grande;

Sinto árvores além;

Embora o vento abrande,

Há folhas em vaivém.

 

Tudo é do outro lado,

No que há e no que penso.

Nem há ramo agitado

Que o céu não seja imenso.

 

Confunde-se o que existe

Com o que durmo e sou

Não sinto, não sou triste,

Mas triste é o que estou.

 

1933

 

 

[Entre o sono e o sonho]

 

Entre o sono e o sonho,

Entre mim e o que em mim

É o quem eu me suponho,

Corre um rio sem fim.

 

Passou por outras margens,

Diversas mais além,

Naquelas várias viagens

Que todo o rio tem.

 

Chegou onde hoje habito

A casa que hoje sou.

Passa, se eu me medito;

Se desperto, passou.

 

E quem me sinto e morre

No que me liga a mim

Dorme onde o rio corre —

Esse rio sem fim.

 

1933

 

 

[A morte chega cedo]

 

A morte chega cedo,

Pois breve é toda vida

O instante é o arremedo

De uma coisa perdida.

 

O amor foi começado,

O ideal não acabou,

E quem tenha alcançado

Não sabe o que alcançou.

 

E a tudo isto a morte

Risca por não estar certo

No caderno da sorte

Que Deus deixou aberto.

 

1933

 

 

[Repousa sobre o trigo]

 

Repousa sobre o trigo

Que ondula um sol parado.

Não me entendo comigo.

Ando sempre enganado.

 

Tivesse eu conseguido

Nunca saber de mim,

Ter-me-ia esquecido

De ser esquecido assim.

 

O trigo mexe leve

Ao sol alheio e igual.

Como a alma aqui é breve

Com o seu bem e mal!

 

1933

 

 

[Tudo que faço ou medito]

 

Tudo que faço ou medito

Fica sempre na metade.

Querendo, quero o infinito.

Fazendo, nada é verdade.

 

Que nojo de mim me fica

Ao olhar para o que faço!

Minha alma é lúcida e rica,

E eu sou um mar de sargaço —

 

Um mar onde boiam lentos

Fragmentos de um mar de além...

Vontades ou pensamentos?

Não o sei e sei-o bem.

 

1933

 

 

[Aquele clarão]

 

Se eu, ainda que ninguém,

Pudesse ter sobre a face

Aquele clarão fugace

Que aquelas árvores têm,

 

Teria aquela alegria

Que as coisas têm de fora,

Porque a alegria é da hora;

Vai com o sol quando esfria.

 

Qualquer coisa me valera

Melhor que a vida que tenho —

Ter esta vida de estranho

Que só do sol me viera!

 

1933

 

 

[Tenho tanto sentimento]

 

Tenho tanto sentimento

Que é frequente persuadir-me

De que sou sentimental,

Mas reconheço, ao medir-me,

Que tudo isso é pensamento,

Que não senti afinal.

 

Temos, todos que vivemos,

Uma vida que é vivida

E outra vida que é pensada,

E a única vida que temos

É essa que é dividida

Entre a verdadeira e a errada.

 

Qual porém é verdadeira

E qual errada, ninguém

Nos saberá explicar;

E vivemos de maneira

Que a vida que a gente tem

É a que tem que pensar.

 

1933

 

 

[Durmo]

 

Durmo. Se sonho, ao despertar não sei

Que coisas eu sonhei.

Durmo. Se durmo sem sonhar, desperto

Para um espaço aberto

Que não conheço, pois que despertei

Para o que inda não sei.

Melhor é nem sonhar nem não sonhar

E nunca despertar.

 

1933

 

 

[Viajar! Perder países!]

 

Viajar! Perder países!

Ser outro constantemente,

Por a alma não ter raízes

De viver de ver somente!

 

Não pertencer nem a mim!

Ir em frente, ir a seguir

A ausência de ter um fim,

E da ânsia de o conseguir!

 

Viajar assim é viagem.

Mas faço-o sem ter de meu

Mais que o sonho da passagem.

O resto é só terra e céu.

 

1933

 

 

[Coisa distante]

 

Que coisa distante

Está perto de mim?

Que brisa fragrante

Me vem neste instante

De ignoto jardim?

 

Se alguém me dissesse,

Não quisera crer.

Mas sinto-o, e é esse

O ar bom que me tece

Visões sem as ver.

 

Não sei se é dormindo

Ou alheado que estou;

Sei que estou sentindo

A boca sorrindo

Aos sonhos que sou.

 

1933

 

 

[Na ribeira deste rio]

 

Na ribeira deste rio

Ou na ribeira daquele

Passam meus dias a fio.

Nada me impede, me impele,

Me dá calor ou dá frio.

 

Vou vendo o que o rio faz

Quando o rio não faz nada.

Vejo os rastros que ele traz,

Numa sequência arrastada,

Do que ficou para trás.

 

Vou vendo e vou meditando,

Não bem no rio que passa

Mas só no que estou pensando,

Porque o bem dele é que faça

Eu não ver que vai passando.

 

Vou na ribeira do rio

Que está aqui ou ali,

E do seu curso me fio,

Porque, se o vi ou não vi.

Ele passa e eu confio.

 

1933

 

 

[No mal-estar em que vivo]

 

No mal-estar em que vivo

No mal pensar em que sinto,

Sou de mim mesmo cativo,

A mim mesmo minto.

 

Se fosse outro fora outro.

Se em mim houvesse certeza,

Não seria o fluido e neutro

Que ama a beleza.

 

Sim, que ama a beleza e a nega

Nesta vida sem bordão

Que contra si mesma alega

Que tudo é vão.

 

1933

 

 

[Quando era criança]

 

Quando era criança

Vivi, sem saber,

Só para hoje ter

Aquela lembrança.

 

E hoje que sinto

Aquilo que fui.

Minha vida flui,

Feita do que minto.

 

Mas nesta prisão,

Livro único, leio

O sorriso alheio

De quem fui então.

 

1933

 

 

[Chove. Há silêncio]

 

Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva

Não faz ruído senão com sossego.

Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva

Do que não sabe, o sentimento é cego.

Chove. Meu ser (quem sou) renego...

 

Tão calma é a chuva que se solta no ar

(Nem parece de nuvens) que parece

Que não é chuva, mas um sussurrar

Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.

Chove. Nada apetece...

 

Não paira vento, não há céu que eu sinta.

Chove longínqua e indistintamente,

Como uma coisa certa que nos minta,

Como um grande desejo que nos mente.

Chove. Nada em mim sente...

 

1933

 

 

[Grandes mistérios]

 

Grandes mistérios habitam

O limiar do meu ser,

O limiar onde hesitam

Grandes pássaros que fitam

Meu transpor tardo de os ver.

 

São aves cheias de abismo,

Como nos sonhos as há.

Hesito se sondo e cismo,

E à minha alma é cataclismo

O limiar onde está.

 

Então desperto do sonho

E sou alegre da luz,

Inda que em dia tristonho;

Porque o limiar é medonho

E todo passo é uma cruz.

 

1933

 

 

[Dorme]

 

Dorme, que a vida é nada!

Dorme, que tudo é vão!

Se alguém achou a estrada,

Achou-a em confusão,

Com a alma enganada.

 

Não há lugar nem dia

Para quem quer achar,

Nem paz nem alegria

Para quem, por amar,

Em quem ama confia.

 

Melhor entre onde os ramos

Tecem dosséis sem ser

Ficar como ficamos,

Sem pensar nem querer.

Dando o que nunca damos.

 

1933

 

 

[Não sei que sonho me não descansa]

 

Não sei que sonho me não descansa

E me faz mal...

Mas eia! o harmônio a guiar a dança

Nesse quintal.

 

E eu perco o fio ao que não existe

E ouço dançar,

Já não alheio, nem sequer triste,

Só de escutar.

 

Quanta alegria onde os outros são

E dançam bem!

Dei-lhes de graça meu coração

E o que ele tem.

 

Na noite calma o harmónio toca

Aquela dança,

E o que em mim sonha um momento evoca

Nova esperança.

 

Nova esperança que há de cessar

Quando, já dia,

O harmônio eterno que há de acabar

Feche a alegria.

 

Ah, ser os outros! Se eu o pudesse

Sem outros ser!,

Enquanto o harmônio minha alma enchesse

De o não saber.

 

1933

 

 

[Fresta]

 

Em meus momentos escuros

Em que em mim não há ninguém,

E tudo é névoas e muros

Quando a vida dá ou tem,

 

Se, um instante, erguendo a fronte

De onde em mim sou aterrado,

Vejo o longínquo horizonte

Cheio de sol posto ou nado,

 

Revivo, existo, conheço,

E, ainda que seja ilusão

O exterior em que me esqueço,

Nada mais quero nem peço.

Entrego-lhe o coração.

 

1934

 

 

[Onda]

 

Onda que, enrolada, tornas,

Pequena, ao mar que te trouxe

E ao recuar te transtornas

Como se o mar nada fosse,

 

Porque é que levas contigo

Só a tua cessação,

E, ao voltar ao mar antigo,

Não levas meu coração?

 

Há tanto tempo que o tenho

Que me pesa de o sentir.

Leva-o no som sem tamanho

Com que te ouço fugir!

 

1934

 

 

[Montes]

 

Montes, e a paz que há neles, pois são longe...

Paisagens, isto é, ninguém...

Tenho a alma feita para ser de um monge

Mas não me sinto bem.

 

Se eu fosse outro, fora outro. Assim

Aceito o que me dão,

Como quem espreita para um jardim

Onde os outros estão.

 

Que outros? Não sei. Há no sossego incerto

Uma paz que não há,

E eu fito sem o ler o livro aberto

Que nunca me dirá...

 

1934

 

 

[Neste mundo em que esquecemos]

 

Neste mundo em que esquecemos

Somos sombras de quem somos,

E os gestos reais que temos

No outro em que, almas, vivemos,

São aqui esgares e assomos.

 

Tudo é noturno e confuso

No que entre nós aqui há.

Projeções, fumo difuso

Do lume que brilha ocluso

Ao olhar que a vida dá.

 

Mas um ou outro, um momento.

Olhando bem, pode ver

Na sombra e seu movimento

Qual no outro mundo é o intento

Do gesto que o faz viver.

 

E então encontra o sentido

Do que aqui está a esgarçar,

E volve ao seu corpo ido,

Imaginado e entendido,

A intuição de um olhar.

 

Sombra do corpo saudosa,

Mentira que sente o laço

Que a liga à maravilhosa

Verdade que a lança, ansiosa,

No chão do tempo e do espaço.

 

1934

 

 

[Foi um momento]

 

Foi um momento

O em que pousaste

Sobre o meu braço,

Num movimento

Mais de cansaço

Que pensamento.

A tua mão

E a retiraste.

Senti ou não?

 

Não sei. Mas lembro

E sinto ainda

Qualquer memória

Fixa e corpórea

Onde pousaste

A mão que teve

Qualquer sentido

Incompreendido,

Mas tão de leve!...

 

Tudo isto é nada,

Mas numa estrada

Como é a vida

Há uma coisa

Incompreendida...

 

Sei eu se quando

A tua mão

Senti pousando

Sobre o meu braço,

E um pouco, um pouco,

No coração,

Não houve um ritmo

Novo no espaço?

 

Como se tu,

Sem o querer,

Em mim tocasses

Para dizer

Qualquer mistério,

Súbito e etéreo,

Que nem soubesses

Que tinha ser.

 

Assim a brisa

Nos ramos diz

Sem o saber

Uma imprecisa

Coisa feliz.

 

1934

 

 

[Cessa o teu canto!]

 

Cessa o teu canto!

Cessa, que, enquanto

O ouvi, ouvia

Uma outra voz

Como que vindo

Nos interstícios

Do brando encanto

Com que o teu canto

Vinha até nós.

 

Ouvi-te e ouvi-a

No mesmo tempo

E diferentes

Juntas a cantar.

E a melodia

Que não havia,

Se agora a lembro,

Faz-me chorar.

 

Foi tua voz

Encantamento

Que, sem querer,

Nesse momento

Vago acordou

Um ser qualquer

Alheio a nós

Que nos falou?

 

Não sei. Não cantes!

Deixa-me ouvir

Qual o silêncio

Que há a seguir

A tu cantares!

 

Ah, nada, nada!

Só os pesares

De ter ouvido,

De ter querido

Ouvir para além

Do que é o sentido

Que uma voz tem.

 

Que anjo, ao ergueres

A tua voz

Sem o saberes

Veio baixar

Sobre esta terra

Onde a alma erra

E com as asas

Soprou as brasas

De ignoto lar?

 

Não cantes mais!

Quero o silêncio

Para dormir

Qualquer memória

Da voz ouvida,

Desentendida,

Que foi perdida

Por eu a ouvir...

 

1934

 

 

[Eros e Psique]

 

... E assim vedes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.

 

Do ritual do grau de Mestre do Átrio na Ordem Templária de Portugal

 

Conta a lenda que dormia

Uma Princesa encantada

A quem só despertaria

Um Infante, que viria

De além do muro da estrada

 

Ele tinha que, tentado,

Vencer o mal e o bem,

Antes que, já libertado,

Deixasse o caminho errado

Por o que à Princesa vem.

 

A Princesa Adormecida,

Se espera, dormindo espera.

Sonha em morte a sua vida,

E orna-lhe a fronte esquecida,

Verde, uma grinalda de hera.

 

Longe o Infante, esforçado,

Sem saber que intuito tem,

Rompe o caminho fadado.

Ele dela é ignorado.

Ela para ele é ninguém.

 

Mas cada um cumpre o Destino —

Ela dormindo encantada,

Ele buscando-a sem tino

Pelo processo divino

Que faz existir a estrada.

 

E, se bem que seja obscuro

Tudo pela estrada fora,

E falso, ele vem seguro,

E, vencendo estrada e muro,

Chega onde em sono ela mora.

 

E, inda tonto do que houvera,

À cabeça, em maresia,

Ergue a mão, e encontra hera,

E vê que ele mesmo era

A Princesa que dormia.

 

1934 (ou anterior)

 

 

[Houve um ritmo no meu sono]

 

Houve um ritmo no meu sono,

Quando acordei o perdi.

Porque saí do abandono

De mim mesmo, em que vivi?

 

Não sei que era o que não era.

Sei que suave me embalou,

Como se o embalar quisera

Tornar-me outra vez quem sou.

 

Houve uma música finda

Quando acordei de a sonhar.

Mas não morreu: dura ainda

No que me faz não pensar.

 

1934

 

 

[Quando o sol o doura]

 

Azul, ou verde, ou roxo, quando o sol

O doura falsamente de vermelho,

O mar é áspero [?], casual [?] ou mo(le),

É uma vez abismo e outra espelho.

Evoco porque sinto velho

O que em mim quereria mais que o mar

Já que nada ali há por desvendar.

 

Os grandes capitães e os marinheiros

Com que fizeram a navegação,

Jazem longínquos, lúgubres parceiros

Do nosso esquecimento e ingratidão.

Só o mar, às vezes, quando são

Grandes as ondas e é deveras mar

Parece incertamente recordar.

 

Mas sonho... O mar é água, é agua nua,

Serva do obscuro ímpeto distante

Que, como a poesia, vem da lua

Que uma vez o abate outra o levanta.

Mas, por mais que descante

Sobre a ignorância natural do mar,

Pressinto-o, vazante, a murmurar.

 

Quem sabe o que é a alma? Quem conhece

Que alma há nas coisas que parecem mortas.

Quanto em terra ou em nada nunca esquece.

Quem sabe se no espaço vácuo há portas?

Ó sonho que me exortas

A meditar assim a voz do mar,

Ensina-me a saber-te meditar.

 

Capitães, contramestres — todos nautas

Da descoberta infiel de cada dia ó

Acaso vos chamou de ignotas flautas

A vaga e impossível melodia.

Acaso o vosso ouvido ouvia

Qualquer coisa do mar sem ser o mar

Sereias só de ouvir e não de achar?

 

Quem atrás de intérminos oceanos

Vos chamou à distância como [?] quem

Sabe que há nos corações humanos

Não só uma ânsia natural de bem

Mas, mais vaga, mais subtil também,

Uma coisa que quer o som do mar

E o estar longe de tudo e não parar.

 

Se assim é, e se vós e o mar imenso

Sois qualquer coisa, vós por o sentir

E o mar por o ser, disto que penso;

Se no fundo ignorado do existir

Há mais alma que a que pode vir

À tona vã de nós, como à do mar,

Fazei-me livre, enfim, de o ignorar.

 

Dai-me uma alma transposta de argonauta,

Fazei que eu tenha, como o capitão

Ou o contramestre, ouvidos para a flauta

Que chama ao longe o nosso coração,

Fazei-me ouvir, como a um perdão,

Numa reminiscência de ensinar,

O antigo português que fala o mar!

 

1935

 

 

[Começa a ir ser dia]

 

Começa a ir ser dia,

O céu negro começa,

Numa menor negrura

Da sua noite escura,

A ter uma cor fria

Onde a negrura cessa.

 

Um negro azul-cinzento

Emerge vagamente

De onde o oriente dorme

Seu tardo sono informe,

E há um frio sem vento

Que se ouve e mal se sente.

 

Meu eu, o mal dormido,

Não sinto noite ou frio,

Nem sinto vir o dia

Da solidão vazia.

Só sinto o indefinido

Do coração vazio.

 

Em vão o dia chega

A quem não dorme, a quem

Não tem que ter razão

Dentro do coração,

Que quando vive nega

E quando ama não tem.

 

Em vão, em vão, e o céu

Azula-se de verde

Acinzentadamente.

Que é que a minha alma sente?

Nem isto, não, nem eu,

Na noite que se perde.

 

1935

 

 

[A Outra]

 

Amamos sempre no que temos

O que não temos quando amamos.

O barco para, largo os remos

E, um a outro, as mãos nos damos.

A quem dou as mãos?

À Outra.

 

Teus beijos são de mel de boca,

São os que sempre pensei dar,

E agora a minha boca toca

A boca que eu sonhei beijar.

De quem é a boca?

Da Outra.

 

Os remos já caíram na água,

O barco fez o que a água quer.

Meus braços vingam minha mágoa

No abraço que enfim podem ter.

Quem abraço?

A Outra.

 

Bem sei, és bela, és quem desejei...

Não deixe a vida que eu deseje

Mais que o que pode ser teu beijo

O poder ser eu que te beije.

Beijo, e em quem penso?

Na Outra.

 

Os remos vão perdidos já,

O barco vai não sei para onde.

Que fresco o teu sorriso está,

Ah, meu amor, e o que ele esconde!

Que é do sorriso

Da Outra?

 

Ah, talvez mortos ambos nós,

Num outro rio sem lugar

Em outro barco outra vez sós

Possamos nós recomeçar.

Que talvez sejas

A Outra.

 

Mas não, nem onde essa paisagem

É sob eterna luz eterna

Te acharei mais que alguém na viagem

Que amei com ansiedade terna

Por ser parecida

Com a Outra.

 

Ah, por ora, idos remo e rumo,

Dá-me as mãos, a boca, o teu ser.

Façamos desta hora um resumo

Do que não poderemos ter.

Nesta hora, a única,

Sê a Outra.

 

1935

 

 

[Não me digas mais nada]

 

Não me digas mais nada. O resto é a vida.

Sob onde a uva está amadurecida

Moram meus sonos, que não querem nada.

Que é o mundo? Uma ilusão vista e sentida.

 

Sob os ramos que falam com o vento,

Inerte, abdico do meu pensamento.

Tenho esta hora e o ócio que está nela.

Levem o mundo: deixem-me o momento!

 

Se vens, esguia e bela, deitar vinho

Em meu copo vazio, eu, mesquinho

Ante o que sonho, morto te agradeço

Que não sou para mim mais que um vizinho.

 

Quando a jarra que trazes aparece

Sobre meu ombro e sua curva desce

A deitar vinho, sonho-te, e, sem ver-te,

Por teu braço teu corpo me apetece.

 

Não digas nada que tu creias. Fala

Como a cigarra canta. Nada iguala

O ser um som pequeno entre os rumores

Com que este mundo [?].

 

A vida é terra e o vivê-la é lodo.

Tudo é maneira, diferença ou modo.

Em tudo quanto faças sê só tu,

Em tudo quanto faças sê tu todo.

 

1935

 

 

[Teus olhos entristecem]

 

Teus olhos entristecem

Nem ouves o que digo.

Dormem, sonham esquecem...

Não me ouves, e prossigo.

 

Digo o que já, de triste,

Te disse tanta vez...