Só no luar que nasce os pendões rotos

Estrelam no absurdo campo desolado

Uma derrota heráldica de ignotos.

 

(sem data)

 

 

[A minha vida é um barco abandonado]

 

A minha vida é um barco abandonado

Infiel, no ermo porto, ao seu destino.

Por que não ergue ferro e segue o atino

De navegar, casado com o seu fado?

 

Ah! falta quem o lance ao mar, e alado

Torne seu vulto em velas; peregrino

Frescor de afastamento, no divino

Amplexo da manhã, puro e salgado.

 

Morto corpo da ação sem vontade

Que o viva, vulto estéril de viver,

Boiando à tona inútil da saudade.

 

Os limos esverdeiam tua quilha,

O vento embala-te sem te mover,

E é para além do mar a ansiada Ilha.

 

(sem data)

 

 

[Os deuses vão-se como forasteiros]

 

Os deuses vão-se como forasteiros

Como uma feira acaba a tradição.

Somos todos palhaços estrangeiros,

A nossa vida é palco e confusão.

 

Ah, dormir tudo! Pôr um sono à roda

Do esforço inútil e da sorte incerta!

Que a morte virtual da vida toda

Seja, sons, a janela que, entreaberta,

 

Só um crepúsculo do mundo deixe

Chegar à sonolência que se sente;

E a alma se desfaça como um feixe

Atado pelos dedos dum demente...

 

(sem data)

 

 

[Já não se torna a eterna primavera]

 

Se já não torna a eterna primavera

Que em sonhos conheci,

O que é que o exausto coração espera

Do que não tem em si?

 

Se não há mais florir de árvores feitas

Só de alguém as sonhar,

Que coisas quer o coração perfeitas,

Quando, e em que lugar?

 

Não: contentemo-nos com ter a aragem

Que, porque existe, vem

Passar a mão sobre o alto da folhagem

E assim nos faz um bem.

 

(sem data)

 

Epílogo

 

 

 

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.

Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos

Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.

(Enlacemos as mãos.)

 

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida

Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,

Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,

Mais longe que os deuses.

 

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.

Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.

Mais vale saber passar silenciosamente

E sem desassossegos grandes.

 

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,

Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,

Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,

E sempre iria ter ao mar.

 

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,

Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,

Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro

Ouvindo correr o rio e vendo-o.

 

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as

No colo, e que o seu perfume suavize o momento —

Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,

Pagãos inocentes da decadência.

 

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois

Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,

Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos

Nem fomos mais do que crianças.

 

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,

Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.

Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,

Pagã triste e com flores no regaço.

 

 

Trecho das Odes de Ricardo Reis (heterônimo de Pessoa).

 

Apêndice

 

 

 

Este apêndice consiste de alguns textos filosóficos da autoria de Fernando Pessoa...

 

 

O HOMEM, ANIMAL IRRACIONAL

 

1. O homem é um animal irracional, exatamente como os outros. A única diferença é que os outros são animais irracionais simples, e o homem é um animal irracional complexo. É esta a conclusão a que nos leva a psicologia científica, no seu atual estado de desenvolvimento. O subconsciente, inconsciente, é que dirige e impera, no homem como no animal. A consciência, a razão, o raciocínio são meros espelhos. O homem tem apenas um espelho mais polido que os animais que lhe são inferiores.

2. Sendo assim, toda a vida social procede de irracionalismos vários, sendo absolutamente impossível (exceto no cérebro dos loucos e dos idiotas) a ideia de uma sociedade racionalmente organizada, ou justiceiramente organizada, ou, até, bem organizada.

3. A única coisa superior que o homem pode conseguir é um disfarce do instinto, ou seja o domínio do instinto por meio de um instinto reputado superior. Esse instinto é o instinto estético. Toda a verdadeira política e toda a verdadeira vida social superior, é uma simples questão de senso estético, ou de bom gosto.

4. A humanidade, ou qualquer nação, divide-se em três classes sociais verdadeiras: os criadores de arte; os apreciadores de arte; e a plebe. As épocas maiores da humanidade são aquelas em que sobressaem os criadores de arte, mas não se sabe como se realizam essas épocas, porque ninguém sabe como se produzem homens de génio.

5. Toda a vida e história da humanidade é uma coisa, no fundo, inteiramente fútil, não se percebe para que há, e só se percebe que tem que haver.

6. A plebe só pode compreender a civilização material. Julgar que ter automóvel é ser feliz é o sinal distintivo do plebeu.

 

 

O EU E A RELAÇÃO COM TODOS

 

Um ente, ou Eu, qualquer existe essencialmente porque se sente, e sente-se porque se sente distinto de outro, ou de outros.

Cada ente, visto que é o que é por natureza, e por natureza sente que o é, tende a sentir-se o que é o mais completamente possível; e, como o que se sente, o sente através de distinguir-se dos outros, e, portanto, de estar em relação com outros, para sentir-se o que é o mais completamente possível, deve sentir-se o que é o mais relativamente, ou relacionadamente, possível.

Para se sentir o que é o mais relativamente possível, força é que seja o mais relativo ou relacionado que pode ser, e que seja assim relativo ou relacionado com a maior perfeição, ou intensidade, possível. Quer isto dizer que, para um ente se sentir o mais possível a si-próprio (o que quer dizer, para ser o mais possível ele-próprio) tem que sentir o mais absoluta e puramente possível a sua Relação.