Não trouxera a navalha, porque tinha medo de ser preso, por causa do negócio da Nair e do suicídio da mãe dela; e armado... Mediu a musculatura do desconhecido. Era antes fraco do que forte, mas parecia disposto. Chegaram à confeitaria e sentaram-se. O caixeiro serviu vermouth; e, quando iam em meio, o outro disse ex-abrupto para Cassi:
— O senhor sabe quem é aquela moça que vinha a meu lado?
Colhido de surpresa, não pôde tergiversar e disse prontamente:
— Não sei absolutamente.
— É minha irmã — afirmou o desconhecido.
— Também não sabia — respondeu docilmente o terrível Cassi,
— Não podia saber naturalmente — justificou o rapaz. — Saio cedo de casa para o escritório e volto tarde, pois janto e almoço na cidade. Agora, eu chamei o senhor para lhe dizer uma coisa: se o senhor continua a perseguir minha irmã, meto-lhe cinco tiros na cabeça.
Ao dizer isto, foi tirando dos bolsos de dentro do paletó um magnífico Smith & Wesson, muito reluzente e com um luxuoso cabo de madrepérola.
Cassi redobrou o esforço para não denunciar o susto e, simulando calma, disse:
— Mas, meu caro senhor, creio que nunca faltei com o respeito devido à senhora sua irmã.
— É verdade; mas é preciso deixar de persegui-la — confirmou o outro e logo acrescentou, como que dando por acabada a entrevista:
— Quer tomar alguma coisa mais?
— Não; muito obrigado.
Despediram-se, sem se apertarem as mãos; e Cassi foi para a sua roda de Ataliba do Timbó, Zezé Mateus, Franco Sousa e Arnaldo.
Um deles perguntou-lhe:
— O que queria aquele sujeito contigo?
— Nada. É meu vizinho e, sabendo que sou morador antigo, pediume que lhe arranjasse um cavalo para vender, que ele me dava uma comissão.
Cassi era assim e assim mantinha a sua fama de valente. Não julguem que tinha estima e amizade por esses rapazes que andavam sempre com ele. Ele não os amava, como não amava ninguém e com ninguém simpatizava. Era uma coorte digna dele, que o iludia do vácuo feito em torno dele, por todos os rapazes daquelas bandas.
Ataliba do Timbó era um mulato claro, faceiro, bem apessoado, mas antipático pela sua falsa arrogância e fatuidade. Havia sido operário em uma oficina do Estado. Meteu-se com Cassi e, aos poucos, abandonou o emprego, abandonou a mãe, de quem era único arrimo, e quis imitar o mestre até o fim. Foi infeliz. Arranjou uma complicação policial e matrimonial de donzelas, nas quais Cassi era useiro e vezeiro, e saiu-se mal. Obrigaram-no a casar; mas teve a hombridade de ficar com a mulher, embora, resignadamente, ela sofresse toda a espécie de privações, no horrível subúrbio de Dona Clara, enquanto ele andava sempre muito suburbanamente e tivesse vários uniformes de football.
Tirava proventos do jogo de dados ou campista, e também do football, em que era considerado bom jogador — "plêiel", como dizem lá.
De vários clubes, havia sido expulso ou se havia demitido voluntariamente, porque os companheiros suspeitavam-no ser peitado pelos adversários, para facilitar estes fazer pontos. Ultimamente, era agente de jogo de bicho, e sua mulher viera gozar de mais algum conforto.
Pobre Ernestina! Era tão alegre, tão tagarela, era moça, e bonitinha, na sua fisionomia miúda e na sua tez pardo-clara, um tanto baça, é verdade, mas não a ponto de enfeá-la, quando conheceu Ataliba; e hoje? Estava escanzelada, cheia de filhos, a trair sofrimentos de toda a espécie, sempre mal calçada, quando, nos tempos de solteira, o seu luxo eram os sapatos! Quem te viu e quem te vê!
Zezé Mateus era um verdadeiro imbecil. Não ligava duas idéias; não guardava coisa alguma dos acontecimentos que assistia. A sua única mania era beber e dizer-se valente. Topava todos os ofícios; capinava, vendia peixe e verdura, com cesto à cabeça; era servente de pedreiro, apanhava e vendia passarinhos, como criança; e tinha outras habilidades desse jaez.
Era branco, com uma fisionomia empastada, cheia de rugas precoces, sem dentes, todo ele mole, bambo. A sua testa era deprimida, e era longo e estreito o seu crânio, do feitio daqueles a que o povo chama "cabeça de mamão-macho".
Totalmente inofensivo, quase inválido pela sua imbecilidade nativa e pela bebida, uma família a quem ele prestava pequenos serviços — ir às compras, ao açougue, lavar a casa — dava-lhe um barracão na chácara, onde dormia, e comida, se estivesse presente às refeições. Encontrava-se nessa ruína humana o melhor da turma e o único que não tinha maldade no coração. Era um ex-homem e mais nada.
O Franco Sousa, este, era um malandro mais apurado, que, uma vez ou outra, aderia ao grupo de Cassi. Intitulava-se advogado e vivia de embrulhar os crédulos clientes que lhe caíam nas mãos. Todos sabiam que ele não tratava de coisa alguma, pois não podia absolutamente tratar, já por não saber coisa alguma das tricas forenses, já por não ser, de verdade, advogado. Assim mesmo, sempre apareciam ingênuos roceiros, simplórias viúvas, que, no pressuposto de que os seus serviços, na justiça, sobre a demarcação de terras litigiosas ou despejos de inquilinos relapsos, fossem mais baratos, procuravam-no. Ele recebia os adiantamentos e, em seguida, mais algum dinheiro, conforme a ingenuidade e a falta de experiência do cliente, e não fazia nada. Entretanto, vivia muito decentemente com a mulher, filhos e filhas. Cassi não lhe pisava em casa, e, aos poucos, foi se afastando do violeiro, a conselho da mulher, que zelava extremamente pela reputação das filhas, que se faziam moças.
O último dos asseclas do modinheiro era um tal Arnaldo, Arnaldo tout court. Nele, talvez, houvesse tipo mais nojento do que mesmo em Cassi.
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