Haviam-lhe amarrado o queixo com um lenço, o qual, não sei como, se desatara. Os lábios lívidos se torciam numa espécie de sorriso, e por entre sua moldura melancólica os dentes de Berenice, brancos, luzentes, terríveis me fixavam ainda, com uma realidade demasiado vívida. Afastei-me convulsivamente do leito e, sem pronunciar uma palavra, como um louco, corri para fora daquele quarto de mistério, de horror e de morte...

Achei-me de novo sentado na biblioteca, e de novo ali estava só. Parecia-me que havia pouco despertara de um sonho confuso e agitado. Sabia que era então meia-noite e bem ciente estava de que, desde o pôr do sol, Berenice tinha sido enterrada. Mas, durante esse tétrico intervalo, eu não tinha qualquer percepção positiva, ou pelo menos definida. Sua recordação, porém, estava repleta de horror, horror mais horrível porque vindo do impreciso, terror mais terrível porque saído da ambiguidade. Era uma página espantosa do registro de minha existência, toda escrita com sombra e com medonhas e ininteligíveis recordações. Tentava decifrá-la, mas em vão; e de vez em quando, como o espírito de um som evadido, parecia-me retinir nos ouvidos o grito agudo e lancinante de uma voz de mulher. Eu fizera alguma coisa; que era, porém? Fazia a mim mesmo tal pergunta, em voz alta, e os ecos do aposento me respondiam: Que era?

Sobre a mesa, a meu lado, ardia uma lâmpada e perto dela estava uma caixinha. Não era de forma digna de nota e eu frequentemente a vira antes, pois pertencia ao médico da família; mas, como viera ter ali, sobre minha mesa, e por que estremecia eu ao contemplá-la? Não valia a pena importar-me com tais coisas e meus olhos por fim caíram sobre as páginas abertas de um livro, sobre uma sentença nelas sublinhada. Eram as palavras singulares, porém simples, do poeta Ebn Zaiat: Dicebant mihi sodales, si sepulchrum amicae visitarem, curas meas aliquantulum fore levatas.

Por que, então, ao lê-las, os cabelos de minha cabeça se eriçaram até a ponta e o sangue de meu corpo se congelou nas veias?

Uma leve pancada soou na porta da biblioteca. E, pálido como o habitante de um sepulcro, um criado entrou, na ponta dos pés. Sua fisionomia estava transtornada de pavor e ele me falou numa voz trêmula, rouca e muito baixa. Que disse? Ouvi frases truncadas. Falou-me de um grito selvagem que perturbara o silêncio da noite... todos em casa se reuniram... saíram procurando em direção ao som. E depois sua voz se tornou penetrantemente distinta, ao falar-me de um túmulo violado... de um corpo desfigurado, desamortalhado, mas que ainda respirava, ainda palpitava, ainda vivia!

Apontou para minhas roupas; estavam sujas de coágulos de sangue. Eu nada falava e ele pegou-me levemente na mão; gravavam-se nela os sinais de unhas humanas. Chamou-me a atenção para certo objeto encostado à parede: era uma pá.

Com um grito, saltei para a mesa e agarrei a caixa que nela se achava. Mas não pude arrombá-la; e, no meu tremor, ela deslizou de minhas mãos e caiu com força, quebrando-se em pedaços. E dela, com um som tintinante, rolaram vários instrumentos de cirurgia dentária, de mistura com trinta e duas coisas brancas, pequenas, como que de marfim, que se espalharam por todo o assoalho.

Notas

1Publicado pela primeira vez no Southern Literary Messenger, março de 1835. Título original: Berenice.

2Meus companheiros me asseguravam que visitando o túmulo de minha amiga conseguiria, em parte, alívio para as minhas tristezas. (N.T.)

3Porque como Júpiter, durante a estação invernosa, dá duas vezes sete dias de calor, os homens chamavam este benigno e temperado tempo de “A ama da bela Alcíone” (Simônides). (N.T.)

4Todos os seus passos eram sentimentos... / Todos os seus dentes eram ideias. Ideias! (N.T.)

Morela5

Ele mesmo, por si mesmo unicamente, eternamente Um e único.

Platão, Symposium.

Era com sentimentos de profunda embora singularíssima afeição que eu encarava minha amiga Morela. Levado a conhecê-la por acaso, há muitos anos, minha alma, desde nosso primeiro encontro, ardeu em chamas que nunca antes conhecera; não eram, porém, as chamas de Eros, e foi amarga e atormentadora para meu espírito a convicção crescente de que eu não podia, de modo algum, definir sua incomum significação, ou regular-lhe a vaga intensidade.