Lembras-te da Jeanne Dambreuil quando se picava com morfina? Lembras-te do João Guedes quando nos convidava para as fumeries{1} de ópio? Sabiam ambos que acabavam a vida e não podiam resistir. Eu quero resistir e não posso. Estás a conversar com um homem que se sente doido.
— Tomas morfina, agora? Foi o desgosto decerto...
O rapaz que tinha o olhar desvairado perscrutou o vagão. Não havia ninguém mais — a não ser eu, e eu dormia profundamente... Ele então aproximou-se do sujeito gordo, numa ânsia de explicações.
— Foi de repente, Justino. Nunca pensei! Eu era um homem regular, de bons instintos, com uma família honesta. Ia casar com a Clotilde, ser de bondade a que amava perdidamente. E uma noite estávamos no baile das Praxedes, quando a Clotilde apareceu decotada, com os braços nus. Que braços! Eram delicadíssimos, de uma beleza ingênua e comovedora, meio infantil, meio mulher — a beleza dos braços das Oréadas{2} pintadas por Botticeli, misto de castidade mística e de alegria pagã. Tive um estremecimento. Ciúmes? Não. Era um estado que nunca se apossara de mim: a vontade de tê-los só para os meus olhos, de beija-los, de acaricia-los, mas principalmente de faze-los sofrer. Fui ao encontro da pobre rapariga fazendo um enorme esforço, porque o meu desejo era agarrar-lhe os braços, sacudi-los, aperta-los com toda a força, fazer-lhes manchas negras, bem negras, feri-los... Porque? Não sei, nem eu mesmo sei — uma nevrose! Essa noite passei-a numa agitação incrível. Mas contive-me. Contive-me dias, meses, um longo tempo, com pavor do que poderia acontecer. O desejo, porém ficou, cresceu, brotou, enraigou-se na minha pobre alma. No primeiro instante, a minha vontade era bater-lhe com pesos, brutalmente. Agora a grande vontade era de espeta-los, de enterrar-lhes longos alfinetes, de coze-los devagarinho, a picadas. E junto de Clotilde, por mais compridas que trouxesse as mangas, eu via esses braços nus como na primeira noite, via a sua forma grácil e suave, sentia a finura da pele e imaginava o súbito estremeção quando pudesse enterrar o primeiro alfinete, escolhia posições, compunha o prazer diante daquele susto de carne que havia de sentir.
— Que horror 1
— Afinal, uma outra vez, encontrei-a na sauterie{3} da viscondessa de Lages, com um vestido em que as mangas eram de gaze. Os seus braços — oh! que braços, Justino, que braços ! — estavam quase nus. Quando Clotilde erguia-os, parecia uma ninfa que fosse se metamorfoseando em anjo. No canto da varanda, entre as roseiras, ela disse-me — “Rodolfo, que olhar o seu. Está zangado? “Não foi possível reter o desejo que me punha a tremer, rangendo os dentes. — “Oh! não! fiz. Estou apenas com vontade de espetar este alfinete no seu braço. “Sabes como é pura a Clotilde. A pobrezita olhou-me assustada, pensou, sorriu com tristeza: —“Se não quer que eu mostre os braços porque não me disse a mais tempo, Rodolfo? Diga, é isso que o faz zangado? “— “É , é isso, Clotilde. “E rindo — como esse riso devia parecer idiota! — continuei “É preciso pagar ao meu ciúme a sua dívida de sangue. Deixe espetar o alfinete.
1 comment