O patrão havia mandado que me entregassem os vinte e cinco pesos de meu soldo mensal, com os quais pude pagar o potrilho, sobrando ainda para "os vícios".
Que mais queria? Três petiços, dos quais um chucro, que me podia reservar uma surpresa má, é verdade; arreios completos, com seu jogo de rédeas e bucal, maneia, loncas e tentos; roupa para mudar-me em caso de molhadura; e bom poncho, que é cobertor, abrigo e impermeável. Com menos avios, na verdade, costuma sair um tropeiro feito.
Acabado aquele inventario, enquanto afivelava as presilhas das rainhas esporas, levantei-me satisfeito, lançando, não sem tristeza, uma olhada ao meu quartinho e ao catre, que ficava desnudo e lamentável como ovelha coureada. Adeus vida de estância, já veríamos o que nos reservam os caminhos e o campo sem trilhas.
Com as mudas de roupa embrulhadas no poncho posto à cintura, saí para fora devagar e detive-me um pouco, porque a noite costuma ser traiçoeira e não há que andar levando-a por diante.
Respirei fundamente o alento dos campos adormecidos. Era uma obscuridade serena, alegrada de estrelas luzentes, como chispas de um fogo crepitante. Ao deixar que entrasse em mim aquele silêncio, senti-me mais forte e maior.
Ao longe ouvi tintinar um cincerro. Alguém andaria pegando um cavalo ou reunindo a tropilha.
Os novilhos não davam ainda sinais de sua vida tosca, mas eu sentia pelo cheiro a presença de seus quinhentos corpos grosseiros.
Logo vi correrem uns cavalos; um cincerro agitou suas notas com precipitação de goteira.
Aqueles barulhos expandiam-se no sereno matinal como ondas na pele sonolenta da água ao golpe de uma pedrada. Perdido na noite cantou um galo, despertando a simpatia de uns quero-queros solitárias expressões de vida diurna, que ampliavam a imensidade do mundo.
No curral, agarrei meu petiço um tanto inquieto pelo inusitado corre-corre de seus companheiros livres. Ao pôr-lhe o bucal, senti-lhe a testa molhada de rocio. Sobre o solo úmido, ouvi rascarem as esporas de Goyo, que andava buscando alguma coisa.
— Bom-dia.
— Perdeste alguma coisa '?
— Ahã, o arreador.
— Qual?
— O de cabo de prata.
— Está no quarto, encostado no baú.
— Vou buscar.
— Não mateamos?
— Agorinha.
Enquanto Goyo buscava seu arreador, encilhei assobiando meu petiço que dormitava, orelhas gachas, resfolegando a intervalos, com desgosto.
Quando entrei na cozinha, estavam já acompanhando a Goyo, Pedro Barrales e Dom Segundo.
— Bons-dias.
— Bons-dias.
Horácio entrou desconjuntando-se de espreguiçar-se.
— Te vais quebrar — riu Goyo.
— Quebrar?... Nem uma ruguinha vou deixar em meu corpo.
Silencioso transpôs Valério a soleira, dirigindo-se a um canto, onde acocorado calçou um polido par de choronas de prata. Depois rodeamos o fogo e o mate começou a correr.
Cada qual vivia para si e minha alegria logo se fez grave, contida. Um estranho nos teria tomado como pesarosos por uma desgraça.
Não podendo falar, observava.
Todos me pareciam maiores, mais robustos, e em seus olhos adivinhavam-se os caminhos da manhã. De peões de estância tinham passado a homens do pampa. Tinham alma de tropeiros, que é ter alma de horizonte.
Suas roupas não eram as do dia anterior; mais rústica, mais adequada, cada peça de sua indumentária falava dos movimentos vindouros.
Dominou-me a rudeza daqueles tipos calados e, não sei se por timidez ou respeito, deixei cair o queixo, encerrando assim minha emoção.
Fora, os cavalos relinchavam.
Dom Segundo pôs-se de pé, saiu um momento, voltou com um par de rédeas toscas e fortes.
— Traz-me um pouco de sebo, rapaz.
Lentamente untou o couro espesso com a pasta, que às três passadas perdeu sua brancura.
Valério acomodou uma pouca roupa em seu poncho, que atou em torno da cintura, sobre o tirador.
Pedro Barrales entrou pela noite, deu uma sonora rebencada num banco e disse com um gesto de resignação: — Me parece que ao meio-dia o sol nos vai fazer ferver o caracu.
Num movimento coincidente saímos, sem necessidade de voz de mando. As esporas ressoaram em coro, traçando no solo seus pontos de reticência. A noite começava a desmaiar. No palanque tomamos cada um seu cavalo e saímos ao tranco pela cancha.
— Goyo — disse Valério —, vai tirando os cavalos...nós vamos buscar a tropa... tu, guri, acompanha a Goyo.E é bom que nos movamos.
Pela primeira vez o capataz dava uma ordem e isto era como um parêntese aberto para a tropeada.
Valério, Horácio e Barrales galoparam para um potreiro próximo, em que se via confusamente o vulto da novilhada encerrada. Goyo e eu abrimos a tranqueira do curral, deixando sair as tropilhas, que logo fizeram família, cada qual com sua madrinha, cujo cincerro lhes serve de vontade.
— Abre a porteira do potreiro grande e fica em frente pra que não disparem.
Tinha iniciado meu trabalho e com ele um grande orgulho: orgulho de dar cumprimento ao mais macho dos ofícios.
Primeiro tive que esporear meu petiço e correr de um ponto a outro, para reprimir os ímpetos libertários das tropilhas; mas muito logo as madrinhas vaqueanas compreenderam, tomando submissas o caminho. Marchando bem as madrinhas, podia rir-me das rebeldias dos mais fogosos, que um assobio e um "volta, pingo" cortavam pela raiz. Tranquilo andei, sabendo-me seguido.
Da cancha vinham os gritos e o ruído da tropa em marcha; rumor de guerra com seus tambores, suas ordens, queixumes, corridas, choques e trambolhões. Aquilo aproximava-se aumentando em tamanho, e logo distinguimos um pesado entrevero de cores e formas na luz nascente.
Foi-se acalmando a tropa até formar uma só massa em movimento, da qual eu era o princípio talhado em ponta.
No meu isolamento, e enquanto o amanhecer ia fazendo sua obra, senti-me de repente triste.
Por quê? Talvez fosse um detalhe do ofício. Na cozinha, antes da partida, não ouvira nenhum riso, surpreendendo-me, pelo contrário, a seriedade das expressões. Seria porque deixavam algo atrás?
Seria um passageiro momento de dúvida ao iniciar a tarefa em que corriam o risco de não voltar mais aos pagos, a suas famílias? Não conhecendo o que era a saudade da querência, entendia pela metade os sentimentos nostálgicos. Seria, então, pelas chinas e os guachinhos? E que tinha eu com isso?
Mas uma farinha olvidada na azáfama da partida apresentou-se nítida a meus olhos: Aurora.
Aurora, pensei, que tinha a ver comigo, senão o compartilhar de um brinquedo sem mais paixão, dada nossa rudimentar sensualidade?
Entretanto, sua imagem não retrocedeu ante meu pensamento. Como estaria a estas horas?
Triste, apesar do sorriso com que se tinha despedido na tarde anterior, no milharal?
Imaginar uma expressão de pranto em seu pequenino rosto feito de alegria lançou-me num repentino enternecimento.
— "Chinita" — disse quase alto e mordi a alça do rebenque, olhando para diante, para distrair-me em outra coisa.
O dia formava-se para leste com vibração potente. Meu petiço escarceava seguido, como chamando a madrugada. Já um pássaro desdobrara o voo sobre a planura.
As recordações de minhas últimas duas horas na estância pareciam empapar-se em névoas e lonjura.

No dia seguinte ao meu primeiro encontro com Aurora, fora efetivar minha compra e, de volta, a encontrara no mesmo lugar, mas dessa vez braba.
— Boas-tardes.
— Buenas.
— Estás braba?
— Não hei de estar! Ontem, por culpa tua, perdi um anel no milharal e mamãe me deu uma sova.
— Queres que eu procure? — perguntei não sem malícia.
— Te lembras onde foi?
— Como não vou lembrar, preciosa?
— Bobo.
Depois, juntos, tínhamos procurado a pequena joia e tínhamos encontrado nossa brincadeira.
Essa tarde não houve zangas e ao nos separarmos não fui eu quem disse: — Amanhã te espero.
Pobre chinoca, aquela manhã fora nosso último encontro.
Distraiu-me dos meus pensamentos a passagem do rio. Voltaram a formar-se o entrevero e a gritaria.
Vacilou a tropa assustada, até que os primeiros novilhos se atiraram na água. Encheu-se de espuma, de ondas e redemoinhos a corrente arisca; saímos na outra margem com as cinchas gotejando e um que outro salpicado nas bombachas.
Sobre a terra, de súbito escurecida, apareceu um sol enorme, e senti que eu era um homem satisfeito da vida.
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