Esse mister consiste em dominar o gado e tocá-lo com destreza, mediante um complicado sistema do qual fazem parte a sabedoria e a arte.
Cada um desses homens deve bastar-se a si próprio em todas as situações derivadas do ofício, que se constitui, por isso mesmo, numa educação completa, abarcando, na sua simplicidade, aquilo que o homem necessita para uma vida integral, do pastoreio à medicina, da música ao duelo.
E, como a liberdade se funda no possuir-se, não no possuir, forma um tipo de homem livre que é a genuína cepa da raça e a marca de nosso individualismo. Daí a sua fidalguia, disposta à aceitação de qualquer superioridade, mas disposta igualmente a enfrentá-la se representa humilhação. O caráter gaúcho não desapareceu. Adaptou-se, como o país, às novas condições da civilização, provando que é capaz de nela subsistir.
A noção da vida como um ato de dominação é herança do antigo conquistador, cujo idioma o gaúcho conserva em seu castelhano arcaico e saboroso. Seu estoicismo não é resignação em face da impotência, mas viril aceitação do destino. Morrer significa perder um jogo ou salvar a honra. O encanto de sua vida errante é a possibilidade da aventura. O livro de Güiraldes é a descrição de uma dessas vidas — páginas de um esforço triunfal jamais igualado entre nós, a prova de um verdadeiro escritor. Dom Segundo, como Martín Fierro, é o gaúcho em pessoa. Representa em prosa o que o outro faz em verso: uma vida vivente. E nisso reside, vê-se logo, sua importância nacional.
A qualidade sempre se impõe neste belo e forte livro, desenvolvido, ao modo dos pintores, numa série de quadros sem continuidade aparente. Sua unidade -como a vida, que é uma coleção de episódios — está no viver. Tal o segredo de sua perfeição irresistível. E tal o próprio desiderato da obra de arte. Nada é mais difícil de se alcançar através da escrita. Güiraldes pinta bem o campo, não porque o conheça, mas porque é artista. Quantos o conheceram antes e nunca o pintaram! Pictórico é o sistema descritivo, assim como a execução é poética. Daí a sua intensidade simpática. Quadros magníficos, e muitos deles serão clássicos.
E os caracteres. Homens do mesmo ofício primitivo e monótono, não há um só entre tantos (passam de vinte) cuja personalidade não provoque interesse. Seu sabor de veracidade familiar tem gosto de pátria.
Outro traço bem gaúcho, a mulher é mera figurante.
A desonestidade e a política mal se insinuam cora suas ridículas vilezas, esbarrando no sarcástico desprezo com o que o gaúcho sempre as viu. Até nisso é argentino e atual este livro nobremente consolador. Pois o que infunde, sobretudo, é a confiança no caráter nacional. E que vitória tão justa, a do artista que soube evocá-lo. Pátria pura, alheia tanto ao subúrbio da nova Salônica — onde os mestiços do sangue e da alma sonham inaugurar o paraíso da canalha — quanto aos depósitos clandestinos das misturas de ultramar. Isso é saber triunfar, saber amar, saber viver, saber portar-se como homem e corno artista.
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1 Condensação de artigo publicado em La Nación, de Buenos Aires, em 12 de setembro de 1926.
2 O poeta Leopoldo Lugones (1874-1938) foi um dos grandes intelectuais argentinos do seu tempo, tendo deixado uma obra importantíssima. Foi um dos fundadores do movimento poético modernista argentino além de historiador, jornalista e professor de literatura. Escreveu Lunário Sentimental (1909), Odas Seculares (1910), El Libro Fiel (1912), Las Horas Doradas (1922) entre outros livros. Em 1916 publicou o importante livro El Payador, uma critica histórica e literária sobre Martín Fierro, o célebre poema de José Hernández. (N.
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