Eu e outras poesias

Folha de rosto

Sumário

EU

Monólogo de uma sombra

Agonia de um filósofo

O morcego

Psicologia de um vencido

A ideia

O lázaro da pátria

Idealização da humanidade futura

Soneto

Versos a um cão

O deus-verme

Debaixo do tamarindo

As cismas do destino

Budismo moderno

Sonho de um monista

Solitário

Mater originalis

O lupanar

Idealismo

Último credo

O caixão fantástico

Solilóquio de um visionário

A um carneiro morto

Vozes da morte

Insânia de um simples

Os doentes

Asa de corvo

Uma noite no cairo

O martírio do artista

Duas estrofes

O mar, a escada e o homem

Decadência

Ricordanza della mia gioventú

A um mascarado

Vozes de um túmulo

Contrastes

Gemidos de arte

Versos de amor

Sonetos

Depois da orgia

A árvore da serra

Vencido

O corrupião

Noite de um visionário

Alucinação à beira-mar

Vandalismo

Versos íntimos

Vencedor

A ilha de Cipango

Mater

Eterna mágoa

Queixas noturnas

Barcarola

Tristezas de um quarto

Mistérios de um fósforo

OUTRAS POESIAS

O lamento das coisas

O meu nirvana

Caput immortale

Apóstrofe à carne

Louvor à unidade

O pântano

Suprême convulsion

A um gérmen

Natureza íntima

A floresta

A meretriz

Guerra

O sarcófago

Hino à dor

Ultima visio

Aos meus filhos

A dança da psiquê

O poeta do hediondo

A fome e o amor

Homo infimus

Minha finalidade

Numa forja

Noli me tangere

O canto dos presos

Aberração

Vítima do dualismo

A um epiléptico

Canto de onipotência

Minha árvore

Anseio

À mesa

Mãos

Revelação

Versos a um coveiro

Trevas

As montanhas

Apocalipse

A nau

Volúpia imortal

O fim das coisas

Viagem de um vencido

A noite

A obsessão do sangue

Vox victimae

O último número

Saudade

Abandonada

Ceticismo

Mágoas

O condenado

Soneto

Triste regresso

Infeliz

Soneto

Noivado

Soneto

A máscara

Amor e religião

Soneto

O coveiro

Pecadora

No claustro

Il trovatore

A louca

Primavera

A esperança

Soneto

Sofredora

Ecos d’alma

Amor e crença

Ariana

Tempos idos

Soneto

Soneto

A aeronave

Lirial

A minha estrela

Soneto

Versos d’um exilado

Soneto

A esmola de dulce

Ave dolorosa

Soneto

Nimbos

O mar

Anseio

Soneto

No campo

Soneto

Cravo de noiva

Plenilúnio

Insânia

O bandolim

Ara maldita

Soneto

Treva e luz

Soneto

A peste

Ideal

Cítara mística

Súplica num túmulo

Afetos

Martírio supremo

Sombra imortal

Coração frio

Noturno

Sedutora

Pelo mundo

Soneto

O riso

Soneto

A uma mártir

Régio

Pelo mar

Pallida luna

A morte de Vênus

Mártir da fome

Sonho de amor

Soneto

Festival

Noturno

Soneto

Vae victis

A dor

Terra fúnebre

Soneto

Meditando

Soneto

Soneto

O negro

Soneto

O ébrio

O canto da coruja

Senectude Precoce

André Chénier

Mystica Visio

Gozo insatisfeito

Idealizações

A vitória do espírito

Canto íntimo

A luva

À caridade

Ilusão

Nome maldito

Dolências

Ave libertas

Quadras

Vênus morta

Ode ao amor

A lágrima

Canto de agonia

História de um vencido

Estrofes sentidas

EU

MONÓLOGO DE UMA SOMBRA

“Sou uma Sombra! Venho de outras eras,

Do cosmopolitismo das moneras...

Pólipo de recônditas reentrâncias,

Larva de caos telúrico, procedo

Da escuridão do cósmico segredo,

Da substância de todas as substâncias!

A simbiose das coisas me equilibra.

Em minha ignota mônada, ampla, vibra

A alma dos movimentos rotatórios...

E é de mim que decorrem, simultâneas,

A saúde das forças subterrâneas

E a morbidez dos seres ilusórios!

Pairando acima dos mundanos tetos,

Não conheço o acidente da Senectus

– esta universitária sanguessuga

Que produz, sem dispêndio algum de vírus,

O amarelecimento do papírus

E a miséria anatômica da ruga!

Na existência social, possuo uma arma

– O metafisicismo de Abidarma –

E trago, sem bramânicas tesouras,

Como um dorso de azêmola passiva,

A solidariedade subjetiva

De todas as espécies sofredoras.

Com um pouco de saliva quotidiana

Mostro meu nojo à Natureza Humana.

A podridão me serve de Evangelho...

Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques

E o animal inferior que urra nos bosques

É com certeza meu irmão mais velho!

Tal qual quem para o próprio túmulo olha,

Amarguradamente se me antolha,

À luz do americano plenilúnio,

Na alma crepuscular de minha raça

Como uma vocação para a Desgraça

E um tropismo ancestral para o Infortúnio.

Aí vem sujo, a coçar chagas plebeias,

Trazendo no deserto das ideias

O desespero endêmico do inferno,

Com a cara hirta, tatuada de fuligens

Esse mineiro doido das origens,

Que se chama o Filósofo Moderno!

Quis compreender, quebrando estéreis normas,

A vida fenomênica das Formas,

Que, iguais a fogos passageiros, luzem...

E apenas encontrou na ideia gasta

O horror dessa mecânica nefasta,

A que todas as coisas se reduzem!

E hão de achá-lo, amanhã, bestas agrestes,

Sobre a esteira sarcófaga das pestes

A mostrar, já nos últimos momentos,

Como quem se submete a uma charqueada,

Ao clarão tropical da luz danada,

O espólio dos seus dedos peçonhentos.

Tal a finalidade dos estames!

Mas ele viverá, rotos os liames

Dessa estranguladora lei que aperta

Todos os agregados perecíveis,

Nas eterizações indefiníveis

Da energia intra-atômica liberta!

Será calor, causa ubíqua de gozo,

Raio X, magnetismo misterioso,

Quimiotaxia, ondulação aérea,

Fonte de repulsões e de prazeres,

Sonoridade potencial dos seres,

Estrangulada dentro da matéria!

E o que ele foi: clavículas, abdômen,

O coração, a boca, em síntese, o Homem,

– Engrenagem de vísceras vulgares –

Os dedos carregados de peçonha,

Tudo coube na lógica medonha

Dos apodrecimentos musculares!

A desarrumação dos intestinos

Assombra! Vede-a! Os vermes assassinos

Dentro daquela massa que o húmus come,

Numa glutoneria hedionda, brincam,

Como as cadelas que as dentuças trincam

No espasmo fisiológico da fome.

É uma trágica festa emocionante!

A bacteriologia inventariante

Toma conta do corpo que apodrece...

E até os membros da família engulham,

Vendo as larvas malignas que se embrulham

No cadáver malsão, fazendo um s.

E foi então para isto que esse doudo

Estragou o vibrátil plasma todo,

À guisa de um faquir, pelos cenóbios?!...

Num suicídio graduado, consumir-se,

E após tantas vigílias, reduzir-se

À herança miserável de micróbios!

Estoutro agora é o sátiro peralta

Que o sensualismo sodomista exalta,

Nutrindo sua infâmia a leite e a trigo...

Como que, em suas células vilíssimas,

Há estratificações requintadíssimas

De uma animalidade sem castigo.

Brancas bacantes bêbedas o beijam.

Suas artérias hírcicas latejam,

Sentindo o odor das carnações abstêmias,

E à noite, vai gozar, ébrio de vício,

No sombrio bazar do meretrício,

O cuspo afrodisíaco das fêmeas.

No horror de sua anômala nevrose,

Toda a sensualidade da simbiose,

Uivando, à noite, em lúbricos arroubos,

Como no babilônico sansara,

Lembra a fome incoercível que escancara

A mucosa carnívora dos lobos.

Sôfrego, o monstro as vítimas aguarda.

Negra paixão congênita, bastarda,

Do seu zooplasma ofídico resulta...

E explode, igual à luz que o ar acomete,

Com a veemência mavórtica do aríete

E os arremessos de uma catapulta.

Mas muitas vezes, quando a noite avança,

Hirto, observa através a tênue trança

Dos filamentos fluídicos de um halo

A destra descarnada de um duende,

Que, tateando nas tênebras, se estende

Dentro da noite má, para agarrá-lo!

Cresce-lhe a intracefálica tortura,

E de su’alma na caverna escura

Fazendo ultraepiléticos esforços,

Acorda, com os candeeiros apagados,

Numa coreografia de danados,

A família alarmada dos remorsos.

É o despertar de um povo subterrâneo!

É a fauna cavernícola do crânio

– Macbeths da patológica vigília,

Mostrando, em rembrandtescas telas várias,

As incestuosidades sanguinárias

Que ele tem praticado na família.

As alucinações tácteis pululam.

Sente que megatérios o estrangulam...

A asa negra das moscas o horroriza;

E autopsiando a amaríssima existência

Encontra um cancro assíduo na consciência

E três manchas de sangue na camisa!

Míngua-se o combustível da lanterna

E a consciência do sátiro se inferna,

Reconhecendo, bêbedo de sono,

Na própria ânsia dionísica do gozo,

Essa necessidade de horroroso,

Que é talvez propriedade do carbono!

Ah! Dentro de toda a alma existe a prova

De que a dor como um dartro se renova,

Quando o prazer barbaramente a ataca...

Assim também, observa a ciência crua,

Dentro da elipse ignívoma da lua

A realidade de uma esfera opaca.

Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa,

Abranda as rochas rígidas, torna água

Todo o fogo telúrico profundo

E reduz, sem que, entanto, a desintegre,

À condição de uma planície alegre,

A aspereza orográfica do mundo!

Provo desta maneira ao mundo odiento

Pelas grandes razões do sentimento,

Sem os métodos da abstrusa ciência fria

E os trovões gritadores da dialética,

Que a mais alta expressão da dor estética

Consiste essencialmente na alegria.

Continua o martírio das criaturas:

– O homicídio nas vielas mais escuras,

– O ferido que a hostil gleba atra escarva,

– O último solilóquio dos suicidas –

E eu sinto a dor de todas essas vidas

Em minha vida anônima de larva!”

Disse isto a Sombra. E, ouvindo estes vocábulos,

Da luz da lua aos pálidos venábulos,

Na ânsia de um nervosíssimo entusiasmo,

Julgava ouvir monótonas corujas,

Executando, entre caveiras sujas,

A orquestra arrepiadora do sarcasmo!

Era a elegia panteísta do Universo,

Na podridão do sangue humano imerso,

Prostituído talvez, em suas bases...

Era a canção da Natureza exausta,

Chorando e rindo na ironia infausta

Da incoerência infernal daquelas frases.

E o turbilhão de tais fonemas acres

Trovejando grandíloquos massacres,

Há de ferir-me as auditivas portas,

Até que minha efêmera cabeça

Reverta à quietação da treva espessa

E à palidez das fotosferas mortas!

AGONIA DE UM FILÓSOFO

Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto

Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo...

O Inconsciente me assombra e eu nele rolo

Com a eólica fúria do harmatã inquieto!

Assisto agora à morte de um inseto!...

Ah! todos os fenômenos do solo

Parecem realizar de pólo a pólo

O ideal de Anaximandro de Mileto!

No hierático areópago heterogêneo

Das ideias, percorro, como um gênio,

Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!...

Rasgo dos mundos o velário espesso;

E em tudo, igual a Goethe, reconheço

O império da substância universal!

O MORCEGO

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.

Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:

Na bruta ardência orgânica da sede,

Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

“Vou mandar levantar outra parede...”

– Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho

E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,

Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego

A tocá-lo. Minh’alma se concentra.

Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!

Por mais que a gente faça, à noite, ele entra

Imperceptivelmente em nosso quarto!

PSICOLOGIA DE UM VENCIDO

Eu, filho do carbono e do amoníaco,

Monstro de escuridão e rutilância,

Sofro, desde a epigênesis da infância,

A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,

Este ambiente me causa repugnância...

Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia

Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme – este operário das ruínas –

Que o sangue podre das carnificinas

Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,

E há de deixar-me apenas os cabelos,

Na frialdade inorgânica da terra!

A IDEia

De onde ela vem? De que matéria bruta

Vem essa luz que sobre as nebulosas

Cai de incógnitas criptas misteriosas

Como as estalactites duma gruta?!

Vem da psicogenética e alta luta

Do feixe de moléculas nervosas,

Que, em desintegrações maravilhosas,

Delibera, e depois, quer e executa!

Vem do encéfalo absconso que a constringe,

Chega em seguida às cordas do laringe,

Tísica, tênue, mínima, raquítica...

Quebra a força centrípeta que a amarra,

Mas, de repente, e quase morta, esbarra

No molambo da língua paralítica!

O LÁZARO DA PÁTRIA

Filho podre de antigos Goitacases,

Em qualquer parte onde a cabeça ponha,

Deixa circunferências de peçonha,

Marcas oriundas de úlceras e antrazes.

Todos os cinocéfalos vorazes

Cheiram seu corpo. À noite, quando sonha,

Sente no tórax a pressão medonha

Do bruto embate férreo das tenazes.

Mostra aos montes e aos rígidos rochedos

A hedionda elefantíase dos dedos...

Há um cansaço no Cosmos... Anoitece.

Riem as meretrizes no Cassino,

E o Lázaro caminha em seu destino

Para um fim que ele mesmo desconhece!

IDEALIZAÇÃO DA HUMANIDADE FUTURA

Rugia nos meus centros cerebrais

A multidão dos séculos futuros

– Homens que a herança de ímpetos impuros

Tornara etnicamente irracionais! –

Não sei que livro, em letras garrafais,

Meus olhos liam! No húmus dos monturos,

Realizavam-se os partos mais obscuros,

Dentre as genealogias animais!

Como quem esmigalha protozoários

Meti todos os dedos mercenários

Na consciência daquela multidão...

E, em vez de achar a luz que os Céus inflama,

Somente achei moléculas de lama

E a mosca alegre da putrefação!

SONETO

Ao meu primeiro filho

nascido morto com

7 meses incompletos.

2 fevereiro 1911.

Agregado infeliz de sangue e cal,

Fruto rubro de carne agonizante,

Filho da grande força fecundante

De minha brônzea trama neuronial,

Que poder embriológico fatal

Destruiu, com a sinergia de um gigante,

Em tua morfogênese de infante

A minha morfogênese ancestral?!

Porção de minha plásmica substância,

Em que lugar irás passar a infância,

Tragicamente anônimo, a feder?!

Ah! Possas tu dormir, feto esquecido,

Panteisticamente dissolvido

Na noumenalidade do NÃO SER!

VERSOS A UM CÃO

Que força pôde, adstrita a embriões informes,

Tua garganta estúpida arrancar

Do segredo da célula ovular

Para latir nas solidões enormes?!

Esta obnóxia inconsciência, em que tu dormes,

Suficientíssima é, para provar

A incógnita alma, avoenga e elementar,

Dos teus antepassados vermiformes.

Cão! – Alma de inferior rapsodo errante!

Resigna-a, ampara-a, arrima-a, afaga-a, acode-a

A escala dos latidos ancestrais...

E irá assim, pelos séculos, adiante,

Latindo a esquisitíssima prosódia

Da angústia hereditária dos seus pais!

O DEUS-VERME

Fator universal do transformismo,

Filho da teleológica matéria,

Na superabundância ou na miséria,

Verme – é o seu nome obscuro de batismo.

Jamais emprega o acérrimo exorcismo

Em sua diária ocupação funérea,

E vive em contubérnio com a bactéria,

Livre das roupas do antropomorfismo.

Almoça a podridão das drupas agras,

Janta hidrópicos, rói vísceras magras

E dos defuntos novos incha a mão...

Ah! Para ele é que a carne podre fica,

E no inventário da matéria rica

Cabe aos seus filhos a maior porção!

DEBAIXO DO TAMARINDO

No tempo de meu Pai, sob estes galhos,

Como uma vela fúnebre de cera,

Chorei bilhões de vezes com a canseira

De inexorabilíssimos trabalhos!

Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos,

Guarda, como uma caixa derradeira,

O passado da Flora Brasileira

E a paleontologia dos Carvalhos!

Quando pararem todos os relógios

De minha vida, e a voz dos necrológios

Gritar nos noticiários que eu morri,

Voltando à pátria da homogeneidade,

Abraçada com a própria Eternidade

A minha sombra há de ficar aqui!

AS CISMAS DO DESTINO

I

Recife. Ponte Buarque de Macedo.

Eu, indo em direção à casa do Agra,

Assombrado com a minha sombra magra,

Pensava no Destino, e tinha medo!

Na austera abóbada alta o fósforo alvo

Das estrelas luzia... O calçamento

Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento,

Copiava a polidez de um crânio calvo.

Lembro-me bem. A ponte era comprida,

E a minha sombra enorme enchia a ponte,

Como uma pele de rinoceronte

Estendida por toda a minha vida!

A noite fecundava o ovo dos vícios

Animais. Do carvão da treva imensa

Caía um ar danado de doença

Sobre a cara geral dos edifícios!

Tal uma horda feroz de cães famintos,

Atravessando uma estação deserta,

Uivava dentro do eu, com a boca aberta,

A matilha espantada dos instintos!

Era como se, na alma da cidade,

Profundamente lúbrica e revolta,

Mostrando as carnes, uma besta solta

Soltasse o berro da animalidade.

E aprofundando o raciocínio obscuro,

Eu vi, então, à luz de áureos reflexos,

O trabalho genésico dos sexos,

Fazendo à noite os homens do Futuro.

Livres de microscópios e escalpelos,

Dançavam, parodiando saraus cínicos,

Bilhões de centrossomas apolínicos

Na câmara promíscua do vitellus.

Mas, a irritar-me os globos oculares,

Apregoando e alardeando a cor nojenta,

Fetos magros, ainda na placenta,

Estendiam-me as mãos rudimentares!

Mostravam-me o apriorismo incognoscível

Dessa fatalidade igualitária,

Que fez minha família originária

Do antro daquela fábrica terrível!

A corrente atmosférica mais forte

Zunia. E, na ígnea crosta do Cruzeiro,

Julgava eu ver o fúnebre candeeiro

Que há de me alumiar na hora da morte.

Ninguém compreendia o meu soluço,

Nem mesmo Deus! Da roupa pelas brechas,

O vento bravo me atirava flechas

E aplicações hiemais de gelo russo.

A vingança dos mundos astronômicos

Enviava à terra extraordinária faca,

Posta em rija adesão de goma-laca

Sobre os meus elementos anatômicos.

Ah! Com certeza, Deus me castigava!

Por toda a parte, como um réu confesso,

Havia um juiz que lia o meu processo

E uma forca especial que me esperava!

Mas o vento cessara por instantes

Ou, pelo menos, o ignis sapiens do Orco

Abafava-me o peito arqueado e porco

Num núcleo de substâncias abrasantes.

É bem possível que eu um dia cegue.

No ardor desta letal tórrida zona,

A cor do sangue é a cor que me impressiona

E a que mais neste mundo me persegue!

Essa obsessão cromática me abate.

Não sei por que me vêm sempre à lembrança

O estômago esfaqueado de uma criança

E um pedaço de víscera escarlate.

Quisera qualquer coisa provisória

Que a minha cerebral caverna entrasse,

E até ao fim, cortasse e recortasse

A faculdade aziaga da memória.

Na ascensão barométrica da calma,

Eu bem sabia, ansiado e contrafeito,

Que uma população doente do peito

Tossia sem remédio na minh’alma!

E o cuspo que essa hereditária tosse

Golfava, à guisa de ácido resíduo,

Não era o cuspo só de um indivíduo

Minado pela tísica precoce.

Não! Não era o meu cuspo, com certeza

Era a expectoração pútrida e crassa

Dos brônquios pulmonares de uma raça

Que violou as leis da Natureza!

Era antes uma tosse ubíqua, estranha,

Igual ao ruído de um calhau redondo

Arremessado no apogeu do estrondo,

Pelos fundibulários da montanha!

E a saliva daqueles infelizes

Inchava, em minha boca, de tal arte,

Que eu, para não cuspir por toda a parte,

Ia engolindo, aos poucos, a hemoptísis!

Na alta alucinação de minhas cismas

O microcosmos líquido da gota

Tinha a abundância de uma artéria rota,

Arrebentada pelos aneurismas.

Chegou-me o estado máximo da mágoa!

Duas, três, quatro, cinco, seis e sete

Vezes que eu me furei com um canivete,

A hemoglobina vinha cheia de água!

Cuspo, cujas caudais meus beiços regam,

Sob a forma de mínimas camândulas,

Benditas sejam todas essas glândulas,

Que, quotidianamente, te segregam!

Escarrar de um abismo noutro abismo,

Mandando ao Céu o fumo de um cigarro,

Há mais filosofia neste escarro

Do que em toda a moral do cristianismo!

Porque, se no orbe oval que os meus pés tocam

Eu não deixasse o meu cuspo carrasco,

Jamais exprimiria o acérrimo asco

Que os canalhas do mundo me provocam!

II

Foi no horror dessa noite tão funérea

Que eu descobri, maior talvez que Vinci,

Com a força visualística do lince,

A falta de unidade na matéria!

Os esqueletos desarticulados,

Livres do acre fedor das carnes mortas,

Rodopiavam, com as brancas tíbias tortas,

Numa dança de números quebrados!

Todas as divindades malfazejas,

Siva e Arimã, os duendes, o In e os trasgos,

Imitando o barulho dos engasgos,

Davam pancadas no adro das igrejas.

Nessa hora de monólogos sublimes,

A companhia dos ladrões da noite,

Buscando uma taverna que os açoite,

Vai pela escuridão pensando crimes.

Perpetravam-se os atos mais funestos,

E o luar, da cor de um doente de icterícia,

Iluminava, a rir, sem pudicícia,

A camisa vermelha dos incestos.

Ninguém, de certo, estava ali, a espiar-me,

Mas um lampião, lembrava ante o meu rosto,

Um sugestionador olho, ali posto

De propósito, para hipnotizar-me!

Em tudo, então, meus olhos distinguiram

Da miniatura singular de uma aspa

À anatomia mínima da caspa,

Embriões de mundos que não progrediram!

Pois quem não vê aí, em qualquer rua,

Com a fina nitidez de um claro jorro,

Na paciência budista do cachorro

A alma embrionária que não continua?!

Ser cachorro! Ganir incompreendidos

Verbos! Querer dizer-nos que não finge,

E a palavra embrulhar-se no laringe,

Escapando-se apenas em latidos!

Despir a putrescível forma tosca,

Na atra dissolução que tudo inverte,

Deixar cair sobre a barriga inerte

O apetite necrófago da mosca!

A alma dos animais! Pego-a, distingo-a,

Acho-a nesse interior duelo secreto

Entre a ânsia de um vocábulo completo

E uma expressão que não chegou à língua!

Surpreendo-a em quatrilhões de corpos vivos,

Nos antiperistálticos abalos

Que produzem nos bois e nos cavalos

A contração dos gritos instintivos!

Tempo viria, em que, daquele horrendo

Caos de corpos orgânicos disformes

Rebentariam cérebros enormes,

Como bolhas febris de água, fervendo!

Nessa época que os sábios não ensinam,

A pedra dura, os montes argilosos

Criariam feixes de cordões nervosos

E o neuroplasma dos que raciocinam!

Almas pigmeias! Deus subjuga-as, cinge-as

À imperfeição! Mas vem o Tempo, e vence-O,

E o meu sonho crescia no silêncio,

Maior que as epopeias carolíngias!

Era a revolta trágica dos tipos

Ontogênicos mais elementares,

Desde os foraminíferos dos mares

À grei liliputiana dos pólipos.

Todos os personagens da tragédia,

Cansados de viver na paz de Buda,

Pareciam pedir com a boca muda

A ganglionária célula intermédia.

A planta que a canícula ígnea torra,

E as coisas inorgânicas mais nulas

Apregoavam encéfalos, medulas

Na alegria guerreira da desforra!

Os protistas e o obscuro acervo rijo

Dos espongiários e dos infusórios

Recebiam com os seus órgãos sensórios

O triunfo emocional do regozijo!

E, apesar de já ser assim tão tarde,

Aquela humanidade parasita,

Como um bicho inferior, berrava, aflita,

No meu temperamento de covarde!

Mas, refletindo, a sós, sobre o meu caso,

Vi que, igual a um amniota subterrâneo,

Jazia atravessada no meu crânio

A intercessão fatídica do atraso!

A hipótese genial do microzima

Me estrangulava o pensamento guapo,

E eu me encolhia todo como um sapo

Que tem um peso incômodo por cima!

Nas agonias do delirium tremens,

Os bêbedos alvares que me olhavam,

Com os copos cheios esterilizavam

A substância prolífica dos semens!

Enterravam as mãos dentro das goelas,

E sacudidos de um tremor indômito

Expeliam, na dor forte do vômito,

Um conjunto de gosmas amarelas.

Iam depois dormir nos lupanares

Onde, na glória da concupiscência,

Depositavam quase sem consciência

As derradeiras forças musculares.

Fabricavam destarte os blastodermas,

Em cujo repugnante receptáculo

Minha perscrutação via o espetáculo

De uma progênie idiota de palermas.

Prostituição ou outro qualquer nome,

Por tua causa, embora o homem te aceite,

É que as mulheres ruins ficam sem leite

E os meninos sem pai morrem de fome!

Por que há de haver aqui tantos enterros?

Lá no “Engenho” também, a morte é ingrata...

Há o malvado carbúnculo que mata

A sociedade infante dos bezerros!

Quantas moças que o túmulo reclama!

E após a podridão de tantas moças,

Os porcos espojando-se nas poças

Da virgindade reduzida à lama!

Morte, ponto final da última cena,

Forma difusa da matéria imbele,

Minha filosofia te repele,

Meu raciocínio enorme te condena!

Diante de ti, nas catedrais mais ricas,

Rolam sem eficácia os amuletos,

Oh! Senhora dos nossos esqueletos

E das caveiras diárias que fabricas!

E eu desejava ter, numa ânsia rara,

Ao pensar nas pessoas que perdera,

A inconsciência das máscaras de cera

Que a gente prega, com um cordão, na cara!

Era um sonho ladrão de submergir-me

Na vida universal, e, em tudo imerso,

Fazer da parte abstrata do Universo,

Minha morada equilibrada e firme!

Nisto, pior que o remorso do assassino,

Reboou, tal qual, num fundo de caverna,

Numa impressionadora voz interna,

O eco particular do meu Destino:

III

“Homem! por mais que a Ideia desintegres,

Nessas perquisições que não têm pausa,

Jamais, magro homem, saberás a causa

De todos os fenômenos alegres!

Em vão, com a bronca enxada árdega, sondas

A estéril terra, e a hialina lâmpada oca,

Trazes, por perscrutar (oh! ciência louca!)

O conteúdo das lágrimas hediondas.

Negro e sem fim é esse em que te mergulhas

Lugar do Cosmos, onde a dor infrene

É feita como é feito o querosene

Nos recôncavos úmidos das hulhas!

Porque, para que a Dor perscrutes, fora

Mister que, não como és, em síntese, antes

Fosses, a refletir teus semelhantes,

A própria humanidade sofredora!

A universal complexidade é que Ela

Compreende. E se, por vezes, se divide,

Mesmo ainda assim, seu todo não reside

No quociente isolado da parcela!

Ah! Como o ar imortal a Dor não finda!

Das papilas nervosas que há nos tatos

Veio e vai desde os tempos mais transatos

Para outros tempos que hão de vir ainda!

Como o machucamento das insônias

Te estraga, quando toda a estuada Ideia

Dás ao sôfrego estudo da ninfeia

E de outras plantas dicotiledôneas!

A diáfana água alvíssima e a hórrida áscua

Que da ígnea flama bruta, estriada, espirra;

A formação molecular da mirra,

O cordeiro simbólico da Páscoa;

As rebeladas cóleras que rugem

No homem civilizado, e a ele se prendem

Como às pulseiras que os mascates vendem

A aderência teimosa da ferrugem;

O orbe feraz que bastos tojos acres

Produz; a rebelião que, na batalha,

Deixa os homens deitados, sem mortalha,

Na sangueira concreta dos massacres;

Os sanguinolentíssimos chicotes

Da hemorragia; as nódoas mais espessas,

O achatamento ignóbil das cabeças,

Que ainda degrada os povos hotentotes;

O Amor e a Fome, a fera ultriz que o fojo

Entra, à espera que a mansa vítima o entre,

– Tudo que gera no materno ventre

A causa fisiológica do nojo;

As pálpebras inchadas na vigília,

As aves moças que perderam a asa,

O fogão apagado de uma casa,

Onde morreu o chefe da família;

O trem particular que um corpo arrasta

Sinistramente pela via férrea,

A cristalização da massa térrea,

O tecido da roupa que se gasta;

A água arbitrária que hiulcos caules grossos

Carrega e come; as negras formas feias

Dos aracnídeos e das centopeias,

O fogo-fátuo que ilumina os ossos;

As projeções flamívomas que ofuscam,

Como uma pincelada rembrandtesca,

A sensação que uma coalhada fresca

Transmite às mãos nervosas dos que a buscam;

O antagonismo de Tifon e Osíris,

O homem grande oprimindo o homem pequeno,

A lua falsa de um parasseleno,

A mentira meteórica do arco-íris;

Os terremotos que, abalando os solos,

Lembram paióis de pólvora explodindo,

A rotação dos fluidos produzindo

A depressão geológica dos pólos;

O instinto de procriar, a ânsia legítima

Da alma, afrontando ovante aziagos riscos,

O juramento dos guerreiros priscos

Metendo as mãos nas glândulas da vítima;

As diferenciações que o psicoplasma

Humano sofre na mania mística,

A pesada opressão característica

Dos 10 minutos de um acesso de asma;

E, (conquanto contra isto ódios regougues)

A utilidade fúnebre da corda

Que arrasta a rês, depois que a rês engorda,

À morte desgraçada dos açougues...

Tudo isto que o terráqueo abismo encerra

Forma a complicação desse barulho

Travado entre o dragão do humano orgulho

E as forças inorgânicas da terra!

Por descobrir tudo isso, embalde cansas!

Ignoto é o gérmen dessa força ativa

Que engendra, em cada célula passiva,

A heterogeneidade das mudanças!

Poeta, feto malsão, criado com os sucos

De um leite mau, carnívoro asqueroso,

Gerado no atavismo monstruoso

Da alma desordenada dos malucos;

Última das criaturas inferiores

Governada por átomos mesquinhos,

Teu pé mata a uberdade dos caminhos

E esteriliza os ventres geradores!

O áspero mal que a tudo, em torno, trazes,

Análogo é ao que, negro e a seu turno,

Traz o ávido filóstomo noturno

Ao sangue dos mamíferos vorazes!

Ah! Por mais que, com o espírito, trabalhes

A perfeição dos seres existentes,

Hás de mostrar a cárie dos teus dentes

Na anatomia horrenda dos detalhes!

O Espaço – esta abstração spencereana

Que abrange as relações de coexistência

É só! Não tem nenhuma dependência

Com as vértebras mortais da espécie humana!

As radiantes elipses que as estrelas

Traçam, e ao espectador falsas se antolham,

São verdades de luz que os homens olham

Sem poder, no entretanto, compreendê-las.

Em vão, com a mão corrupta, outro éter pedes

Que essa mão, de esqueléticas falanges,

Dentro dessa água que com a vista abranges,

Também prova o princípio de Arquimedes!

A fadiga feroz que te esbordoa

Há de deixar-te essa medonha marca,

Que, nos corpos inchados de anasarca,

Deixam os dedos de qualquer pessoa!

Nem terás no trabalho que tiveste

A misericordiosa toalha amiga,

Que afaga os homens doentes de bexiga

E enxuga, à noite, as pústulas da peste!

Quando chegar depois a hora tranquila,

Tu serás arrastado, na carreira,

Como um cepo inconsciente de madeira

Na evolução orgânica da argila!

Um dia comparado com um milênio

Seja, pois, o teu último Evangelho...

E a evolução do novo para o velho

E do homogêneo para o heterogêneo!

Adeus! Fica-te aí, com o abdômen largo

A apodrecer!... És poeira, e embalde vibras!

O corvo que comer as tuas fibras

Há de achar nelas um sabor amargo!”

IV

Calou-se a voz. A noite era funesta.

E os queixos, a exibir trismos danados,

Eu puxava os cabelos desgrenhados

Como o rei Lear, no meio da floresta!

Maldizia, com apóstrofes veementes,

No estentor de mil línguas insurretas,

O convencionalismo das Pandetas

E os textos maus dos códigos recentes!

Minha imaginação atormentada

Paria absurdos... Como diabos juntos,

Perseguiam-me os olhos dos defuntos

Com a carne da esclerótica esverdeada.

Secara a clorofila das lavouras.

Igual aos sustenidos de uma endecha

Vinha-me às cordas glóticas a queixa

Das coletividades sofredoras.

O mundo resignava-se invertido

Nas forças principais do seu trabalho...

A gravidade era um princípio falho,

A análise espectral tinha mentido!

O Estado, a Associação, os Municípios

Eram mortos. De todo aquele mundo

Restava um mecanismo moribundo

E uma teleologia sem princípios.

Eu queria correr, ir para o inferno,

Para que, da psiquê no oculto jogo,

Morressem sufocadas pelo fogo

Todas as impressões do mundo externo!

Mas a Terra negava-me o equilíbrio...

Na Natureza, uma mulher de luto

Cantava, espiando as árvores sem fruto,

A canção prostituta do ludíbrio!

BUDISMO MODERNO

Tome, Dr., esta tesoura, e... corte

Minha singularíssima pessoa.

Que importa a mim que a bicharia roa

Todo o meu coração, depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!

Também, das diatomáceas da lagoa

A criptógama cápsula se esbroa

Ao contato de bronca destra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida

Igualmente a uma célula caída

Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades

Fique batendo nas perpétuas grades

Do último verso que eu fizer no mundo!

SONHO DE UM MONISTA

Eu e o esqueleto esquálido de Ésquilo

Viajávamos, com uma ânsia sibarita,

Por toda a pró-dinâmica infinita,

Na inconsciência de um zoófito tranquilo.

A verdade espantosa do Protilo

Me aterrava, mas dentro da alma aflita

Via Deus – essa mônada esquisita –

Coordenando e animando tudo aquilo!

E eu bendizia, com o esqueleto ao lado,

Na guturalidade do meu brado,

Alheio ao velho cálculo dos dias,

Como um pagão no altar de Proserpina,

A energia intracósmica divina

Que é o pai e é a mãe das outras energias!

SOLITÁRIO

Como um fantasma que se refugia

Na solidão da natureza morta,

Por trás dos ermos túmulos, um dia,

Eu fui refugiar-me à tua porta!

Fazia frio, e o frio que fazia

Não era esse que a carne nos conforta...

Cortava assim como em carniçaria

O aço das facas incisivas corta!

Mas tu não vieste ver minha Desgraça!

E eu saí, como quem tudo repele,

– Velho caixão a carregar destroços –

Levando apenas na tumbal carcaça

O pergaminho singular da pele

E o chocalho fatídico dos ossos!

MATER ORIGINALIS

Forma vermicular desconhecida

Que estacionaste, mísera e mofina,

Como quase impalpável gelatina,

Nos estados prodrômicos da vida;

O hierofante que leu a minha sina

Ignorante é de que és, talvez, nascida

Dessa homogeneidade indefinida

Que o insigne Herbert Spencer nos ensina.

Nenhuma ignota união ou nenhum nexo

À contingência orgânica do sexo

A tua estacionária alma prendeu...

Ah! De ti foi que, autônoma e sem normas,

Oh! Mãe original das outras formas,

A minha forma lúgubre nasceu!

O LUPANAR

Ah! Por que monstruosíssimo motivo

Prenderam para sempre, nesta rede,

Dentro do ângulo diedro da parede,

A alma do homem polígamo e lascivo?!

Este lugar, moços do mundo, vede:

É o grande bebedouro coletivo,

Onde os bandalhos, como um gado vivo,

Todas as noites, vêm matar a sede!

É o afrodístico leito do hetairismo,

A antecâmara lúbrica do abismo,

Em que é mister que o gênero humano entre,

Quando a promiscuidade aterradora

Matar a última força geradora

E comer o último óvulo do ventre!

IDEALISMO

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!

O amor na Humanidade é uma mentira.

É. E é por isto que na minha lira

De amores fúteis poucas vezes falo.

O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!

Quando, se o amor que a Humanidade inspira

É o amor do sibarita e da hetaíra,

De Messalina e de Sardanapalo?!

Pois é mister que, para o amor sagrado,

O mundo fique imaterializado

– Alavanca desviada do seu fulcro –

E haja só amizade verdadeira

Duma caveira para outra caveira,

Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!

ÚLTIMO CREDO

Como ama o homem adúltero o adultério

E o ébrio a garrafa tóxica de rum,

Amo o coveiro – este ladrão comum

Que arrasta a gente para o cemitério!

É o transcendentalíssimo mistério!

É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,

É a morte, é esse danado número Um

Que matou Cristo e que matou Tibério!

Creio, como o filósofo mais crente,

Na generalidade decrescente

Com que a substância cósmica evolui...

Creio, perante a evolução imensa,

Que o homem universal de amanhã vença

O homem particular que eu ontem fui!

O CAIXÃO FANTÁSTICO

Célere ia o caixão, e, nele, inclusas,

Cinzas, caixas cranianas, cartilagens

Oriundas, como os sonhos dos selvagens,

De aberratórias abstrações abstrusas!

Nesse caixão iam talvez as Musas,

Talvez meu Pai! Hoffmânnicas visagens

Enchiam meu encéfalo de imagens

As mais contraditórias e confusas!

A energia monística do Mundo,

À meia-noite, penetrava fundo

No meu fenomenal cérebro cheio...

Era tarde! Fazia muito frio.

Na rua apenas o caixão sombrio

Ia continuando o seu passeio!

SOLILÓQUIO DE UM VISIONÁRIO

Para desvirginar o labirinto

Do velho e metafísico Mistério,

Comi meus olhos crus no cemitério,

Numa antropofagia de faminto!

A digestão desse manjar funéreo

Tornado sangue transformou-me o instinto

De humanas impressões visuais que eu sinto,

Nas divinas visões do íncola etéreo!

Vestido de hidrogênio incandescente,

Vaguei um século, improficuamente,

Pelas monotonias siderais...

Subi talvez às máximas alturas,

Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,

É necessário que inda eu suba mais!

A UM CARNEIRO MORTO

Misericordiosíssimo carneiro

Esquartejado, a maldição de Pio

Décimo caia em teu algoz sombrio

E em todo aquele que for seu herdeiro!

Maldito seja o mercador vadio

Que te vender as carnes por dinheiro,

Pois, tua lã aquece o mundo inteiro

E guarda as carnes dos que estão com frio!

Quando a faca rangeu no teu pescoço,

Ao monstro que espremeu teu sangue grosso

Teus olhos – fontes de perdão – perdoaram!

Oh! tu que no Perdão eu simbolizo,

Se fosses Deus, no Dia do Juízo,

Talvez perdoasses os que te mataram!

VOZES DA MORTE

Agora, sim! Vamos morrer, reunidos,

Tamarindo de minha desventura,

Tu, com o envelhecimento da nervura,

Eu, com o envelhecimento dos tecidos!

Ah! Esta noite é a noite dos Vencidos!

E a podridão, meu velho! E essa futura

Ultrafatalidade de ossatura,

A que nos acharemos reduzidos!

Não morrerão, porém, tuas sementes!

E assim, para o Futuro, em diferentes

Florestas, vales, selvas, glebas, trilhos,

Na multiplicidade dos teus ramos,

Pelo muito que em vida nos amamos,

Depois da morte, inda teremos filhos!

INSÂNIA DE UM SIMPLES

Em cismas patológicas insanas,

É-me grato adstringir-me, na hierarquia

Das formas vivas, à categoria

Das organizações liliputianas;

Ser semelhante aos zoófitos e às lianas,

Ter o destino de uma larva fria,

Deixar enfim na cloaca mais sombria

Este feixe de células humanas!

E enquanto arremedando Éolo iracundo,

Na orgia heliogabálica do mundo,

Ganem todos os vícios de uma vez,

Apraz-me, adstrito ao triângulo mesquinho

De um delta humilde, apodrecer sozinho

No silêncio de minha pequenez.

OS DOENTES

I

Como uma cascavel que se enroscava,

A cidade dos lázaros dormia...

Somente, na metrópole vazia,

Minha cabeça autônoma pensava!

Mordia-me a obsessão má de que havia,

Sob os meus pés, na terra onde eu pisava,

Um fígado doente que sangrava

E uma garganta de órfã que gemia!

Tentava compreender com as conceptivas

Funções do encéfalo as substâncias vivas

Que nem Spencer, nem Haeckel compreenderam...

E via em mim, coberto de desgraças,

O resultado de bilhões de raças

Que há muitos anos desapareceram!

II

Minha angústia feroz não tinha nome.

Ali, na urbe natal do Desconsolo,

Eu tinha de comer o último bolo

Que Deus fazia para a minha fome!

Convulso, o vento entoava um pseudossalmo,

Contrastando, entretanto, com o ar convulso

A noite funcionava como um pulso

Fisiologicamente muito calmo.

Caíam sobre os meus centros nervosos,

Como os pingos ardentes de cem velas,

O uivo desenganado das cadelas

E o gemido dos homens bexigosos.

Pensava! E em que eu pensava, não perguntes!

Mas, em cima de um túmulo, um cachorro

Pedia para mim água e socorro

À comiseração dos transeuntes!

Bruto, de errante rio, alto e hórrido, o urro

Reboava. Além jazia aos pés da serra,

Criando as superstições de minha terra,

A queixada específica de um burro!

Gordo adubo da agreste urtiga brava,

Benigna água, magnânima e magnífica,

Em cuja álgida unção, branda e beatífica,

A Paraíba indígena se lava!

A manga, a ameixa, a amêndoa, a abóbora, o álamo

E a câmara odorífera dos sumos

Absorvem diariamente o ubérrimo húmus

Que Deus espalha à beira do teu tálamo!

Nos de teu curso desobstruídos trilhos,

Apenas eu compreendo, em quaisquer horas,

O hidrogênio e o oxigênio que tu choras

Pelo falecimento dos teus filhos!

Ah! Somente eu compreendo, satisfeito,

A incógnita psiquê das massas mortas

Que dormem, como as ervas, sobre as hortas,

Na esteira igualitária do teu leito!

O vento continuava sem cansaço

E enchia com a fluidez do eólico hissope

Em seu fantasmagórico galope

A abundância geométrica do espaço.

Meu ser estacionava, olhando os campos

Circunjacentes. No Alto, os astros miúdos

Reduziam os Céus sérios e rudos

A uma epiderme cheia de sarampos!

III

Dormia embaixo, com a promíscua véstia

No embotamento crasso dos sentidos,

A comunhão dos homens reunidos

Pela camaradagem da moléstia.

Feriam-me o nervo óptico e a retina

Aponevroses e tendões de Aquiles,

Restos repugnantíssimos de bílis,

Vômitos impregnados de ptialina.

Da degenerescência étnica do Ária

Se escapava, entre estrépitos e estouros,

Reboando pelos séculos vindouros,

O ruído de uma tosse hereditária.

Oh! desespero das pessoas tísicas,

Adivinhando o frio que há nas lousas,

Maior felicidade é a destas cousas

Submetidas apenas às leis físicas!

Estas, por mais que os cardos grandes rocem

Seus corpos brutos, dores não recebem;

Estas dos bacalhaus o óleo não bebem,

Estas não cospem sangue, estas não tossem!

Descender dos macacos catarríneos,

Cair doente e passar a vida inteira

Com a boca junto de uma escarradeira,

Pintando o chão de coágulos sanguíneos!

Sentir, adstritos ao quimiotropismo

Erótico, os micróbios assanhados

Passearem, como inúmeros soldados,

Nas cancerosidades do organismo!

Falar somente uma linguagem rouca,

Um português cansado e incompreensível,

Vomitar o pulmão na noite horrível

Em que se deita sangue pela boca!

Expulsar, aos bocados, a existência

Numa bacia autômata de barro,

Alucinado, vendo em cada escarro

O retrato da própria consciência!

Querer dizer a angústia de que é pábulo,

E com a respiração já muito fraca

Sentir como que a ponta de uma faca,

Cortando as raízes do último vocábulo!

Não haver terapêutica que arranque

Tanta opressão como se, com efeito,

Lhe houvessem sacudido sobre o peito

A máquina pneumática de Bianchi!

E o ar fugindo e a Morte a arca da tumba

A erguer, como um cronômetro gigante,

Marcando a transição emocionante

Do lar materno para a catacumba!

Mas vos não lamenteis, magras mulheres,

Nos ardores danados da febre hética,

Consagrando vossa última fonética

A uma recitação de misereres.

Antes levardes ainda uma quimera

Para a garganta omnívora das lajes

Do que morrerdes, hoje, urrando ultrajes

Contra a dissolução que vos espera!

Porque a morte, resfriando-vos o rosto,

Consoante a minha concepção vesânica,

É a alfândega, onde toda a vida orgânica

Há de pagar um dia o último imposto!

IV

Começara a chover. Pelas algentes

Ruas, a água, em cachoeiras desobstruídas,

Encharcava os buracos das feridas,

Alagava a medula dos Doentes!

Do fundo do meu trágico destino,

Onde a Resignação os braços cruza,

Saía, com o vexame de uma fusa,

A mágoa gaguejada de um cretino.

Aquele ruído obscuro de gagueira

Que à noite, em sonhos mórbidos, me acorda,

Vinha da vibração bruta da corda

Mais recôndita da alma brasileira!

Aturdia-me a tétrica miragem

De que, naquele instante, no Amazonas,

Fedia, entregue a vísceras glutonas,

A carcaça esquecida de um selvagem.

A civilização entrou na taba

Em que ele estava. O gênio de Colombo

Manchou de opróbrios a alma do mazombo,

Cuspiu na cova do morubixaba!

E o índio, por fim, adstrito à étnica escória,

Recebeu, tendo o horror no rosto impresso,

Esse achincalhamento do progresso

Que o anulava na crítica da História!

Como quem analisa um apostema,

De repente, acordando na desgraça,

Viu toda a podridão de sua raça...

Na tumba de Iracema!...

Ah! Tudo, como um lúgubre ciclone,

Exercia sobre ele ação funesta

Desde o desbravamento da floresta

À ultrajante invenção do telefone.

E sentia-se pior que um vagabundo

Microcéfalo vil que a espécie encerra,

Desterrado na sua própria terra,

Diminuído na crônica do mundo!

A hereditariedade dessa pecha

Seguira seus filhos. Dora em diante

Seu povo tombaria agonizante

Na luta da espingarda contra a flecha!

Veio-lhe então como à fêmea vêm antojos,

Uma desesperada ânsia improfícua

De estrangular aquela gente iníqua

Que progredia sobre os seus despojos!

Mas, diante a xantocróide raça loura,

Jazem, caladas, todas as inúbias,

E agora, sem difíceis nuanças dúbias,

Com uma clarividência aterradora,

Em vez da prisca tribo e indiana tropa

A gente deste século, espantada,

Vê somente a caveira abandonada

De uma raça esmagada pela Europa!

V

Era a hora em que arrastados pelos ventos,

Os fantasmas hamléticos dispersos

Atiram na consciência dos perversos

A sombra dos remorsos famulentos.

As mães sem coração rogavam pragas

Aos filhos bons.