sonâmbulo...

Que voz é esta que a gemer concentro

No meu ouvido e que do meu ouvido

Como um bemol e como um sustenido

Rola impetuosa por meu peito adentro?!

– Por que é que este gemido me acompanha?!

Mas dos meus olhos no sombrio palco

Súbito surge como um catafalco

Uma cidade ao mapa-múndi estranha.

A dispersão dos sonhos vagos reúno.

Desta cidade pelas ruas erra

A procissão dos Mártires da Terra

Desde os Cristãos até Giordano Bruno!

Vejo diante de mim Santa Francisca

Que com o cilício as tentações suplanta,

E invejo o sofrimento desta Santa,

Em cujo olhar o Vício não faísca!

Se eu pudesse ser puro! Se eu pudesse,

Depois de embebedado deste vinho,

Sair da vida puro como o arminho

Que os cabelos dos velhos embranquece!

Por que cumpri o universal ditame?!

Pois se eu sabia onde morava o Vício,

Por que não evitei o precipício

Estrangulando minha carne infame?!

Até que dia o intoxicado aroma

Das paixões torpes sorverei contente?

E os dias correrão eternamente?!

E eu nunca sairei desta Sodoma?!

À proporção que a minha insônia aumenta

Hieróglifos e esfinges interrogo...

Mas, triunfalmente, nos céus altos, logo

Toda a alvorada esplêndida se ostenta.

Vagueio pela Noite decaída...

No espaço a luz de Aldebarã e de Argos

Vai projetando sobre os campos largos

O derradeiro fósforo da Vida.

O Sol, equilibrando-se na esfera,

Restitui-me a pureza da hematose

E então uma interior metamorfose

Nas minhas arcas cerebrais se opera.

O odor da margarida e da begônia

Subitamente me penetra o olfato...

Aqui, neste silêncio e neste mato,

Respira com vontade a alma campônia!

Grita a satisfação na alma dos bichos.

Incensa o ambiente o fumo dos cachimbos.

As árvores, as flores, os corimbos,

Recordam santos nos seus próprios nichos.

Com o olhar a verde periferia abarco.

Estou alegre. Agora, por exemplo,

Cercado destas árvores, contemplo

As maravilhas reais do meu Pau d’Arco!

Cedo virá, porém, o funerário,

Atro dragão da escura noite, hedionda,

Em que o Tédio, batendo na alma, estronda

Como um grande trovão extraordinário.

Outra vez serei pábulo do susto

E terei outra vez de, em mágoa imerso,

Sacrificar-me por amor do Verso

No meu eterno leito de Procusto!

BARCAROLA

Cantam nautas, choram flautas

Pelo mar e pelo mar

Uma sereia a cantar

Vela o Destino dos nautas.

Espelham-se os esplendores

Do céu, em reflexos, nas

Águas, fingindo cristais

Das mais deslumbrantes cores.

Em fulvos filões dourados

Cai a luz dos astros por

Sobre o marítimo horror

Como globos estrelados.

Lá onde as rochas se assentam

Fulguram como outros sóis

Os flamívomos faróis

Que os navegantes orientam.

Vai uma onda, vem outra onda

E nesse eterno vaivém

Coitadas! não acham quem,

Quem as esconda, as esconda...

Alegoria tristonha

Do que pelo Mundo vai!

Se um sonha e se ergue, outro cai;

Se um cai, outro se ergue e sonha.

Mas desgraçado do pobre

Que em meio da Vida cai!

Esse não volta, esse vai

Para o túmulo que o cobre.

Vagueia um poeta num barco.

O Céu, de cima, a luzir

Como um diamante de Ofir

Imita a curva de um arco.

A Lua – globo de louça –

Surgiu, em lúcido véu.

Cantam! Os astros do Céu

Ouçam e a Lua Cheia ouça!

Ouça do alto a Lua Cheia

Que a sereia vai falar...

Haja silêncio no mar

Para se ouvir a sereia.

Que é que ela diz?! Será uma

História de amor feliz?

Não! O que a sereia diz

Não é história nenhuma.

É como um requiem profundo

De tristíssimos bemóis...

Sua voz é igual à voz

Das dores todas do mundo.

“Fecha-te nesse medonho

“Reduto de Maldição,

“Viajeiro da Extrema-Unção,

“Sonhador do último sonho!

“Numa redoma ilusória

“Cercou-te a glória falaz,

“Mas nunca mais, nunca mais

“Há de cercar-te essa glória!

“Nunca mais! Sê, porém, forte.

“O poeta é como Jesus!

“Abraça-te à tua Cruz

“E morre, poeta da Morte!”

– E disse e porque isto disse

O luar no Céu se apagou...

Súbito o barco tombou

Sem que o poeta o pressentisse!

Vista de luto o Universo

E Deus se enlute no Céu!

Mais um poeta que morreu,

Mais um coveiro do Verso!

Cantam nautas, choram flautas

Pelo mar e pelo mar

Uma sereia a cantar

Vela o Destino dos nautas!

TRISTEZAS DE UM QUARTO

MINGUANTE

Quarto Minguante! E, embora a lua o aclare,

Este Engenho Pau d’Arco é muito triste...

Nos engenhos da várzea não existe

Talvez um outro que se lhe equipare!

Do observatório em que eu estou situado

A lua magra, quando a noite cresce,

Vista, através do vidro azul, parece

Um paralelepípedo quebrado!

O sono esmaga o encéfalo do povo.

Tenho 300 quilos no epigastro...

Dói-me a cabeça. Agora a cara do astro

Lembra a metade de uma casca de ovo.

Diabo! não ser mais tempo de milagre!

Para que esta opressão desapareça

Vou amarrar um pano na cabeça,

Molhar a minha fronte com vinagre.

Aumentam-se-me então os grandes medos.

O hemisfério lunar se ergue e se abaixa

Num desenvolvimento de borracha,

Variando à ação mecânica dos dedos!

Vai-me crescendo a aberração do sonho.

Morde-me os nervos o desejo doudo

De dissolver-me, de enterrar-me todo

Naquele semicírculo medonho!

Mas tudo isto é ilusão de minha parte!

Quem sabe se não é porque não saio

Desde que, 6a feira, 3 de maio,

Eu escrevi os meus Gemidos de Arte?!

A lâmpada a estirar línguas vermelhas

Lambe o ar. No bruto horror que me arrebata,

Como um degenerado psicopata

Eis-me a contar o número das telhas!

– Uma, duas, três, quatro... E aos tombos, tonta

Sinto a cabeça e a conta perco; e, em suma,

A conta recomeço, em ânsias: – Uma...

Mas novamente eis-me a perder a conta!

Sucede a uma tontura outra tontura.

– Estarei morto?! E a esta pergunta estranha

Responde a Vida – aquela grande aranha

Que anda tecendo a minha desventura! –

A luz do quarto diminuindo o brilho

Segue todas as fases de um eclipse...

Começo a ver coisas de Apocalipse

No triângulo escaleno do ladrilho!

Deito-me enfim. Ponho o chapéu num gancho.

Cinco lençóis balançam numa corda,

Mas aquilo mortalhas me recorda,

E o amontoamento dos lençóis desmancho.

Vêm-me à imaginação sonhos dementes.

Acho-me, por exemplo, numa festa...

Tomba uma torre sobre a minha testa,

Caem-me de uma só vez todos os dentes!

Então dois ossos roídos me assombraram...

– “Por ventura haverá quem queira roer-nos?!

Os vermes já não querem mais comer-nos

E os formigueiros já nos desprezaram”.

Figuras espectrais de bocas tronchas

Tornam-me o pesadelo duradouro...

Choro e quero beber a água do choro

Com as mãos dispostas à feição de conchas.

Tal uma planta aquática submersa,

Antegozando as últimas delícias

Mergulho as mãos – vis raízes adventícias –

No algodão quente de um tapete persa.

Por muito tempo rolo no tapete,

Súbito me ergo. A lua é morta. Um frio

Cai sobre o meu estômago vazio

Como se fosse um copo de sorvete!

A alta frialdade me insensibiliza;

O suor me ensopa. Meu tormento é infindo...

Minha família ainda está dormindo

E eu não posso pedir outra camisa!

Abro a janela. Elevam-se fumaças

Do engenho enorme. A luz fulge abundante

E em vez do sepulcral Quarto Minguante

Vi que era o sol batendo nas vidraças.

Pelos respiratórios tênues tubos

Dos poros vegetais, no ato da entrega

Do mato verde, a terra resfolega

Estrumada, feliz, cheia de adubos.

Côncavo, o céu, radiante e estriado, observa

A universal criação. Broncos e feios,

Vários répteis cortam os campos, cheios

Dos tenros tinhorões e da úmida erva.

Babujada por baixos beiços brutos,

No húmus feraz, hierática, se ostenta

A monarquia da árvore opulenta

Que dá aos homens o óbolo dos frutos.

De mim diverso, rígido e de rastos

Com a solidez do tegumento sujo

Sulca, em diâmetro, o solo um caramujo

Naturalmente pelos mata-pastos.

Entretanto, passei o dia inquieto,

A ouvir, nestes bucólicos retiros,

Toda a salva fatal de 21 tiros

Que festejou os funerais de Hamleto!

Ah! Minha ruína é pior do que a de Tebas!

Quisera ser, numa última cobiça,

A fatia esponjosa de carniça

Que os corvos comem sobre as jurubebas!

Porque, longe do pão com que me nutres

Nesta hora, oh! Vida em que a sofrer me exortas

Eu estaria como as bestas mortas

Pendurado no bico dos abutres!

MISTÉRIOS DE UM FÓSFORO

Pego de um fósforo. Olho-o. Olho-o ainda. Risco-o

Depois. E o que depois fica e depois

Resta é um ou, por outra, é mais de um, são dois

Túmulos dentro de um carvão promíscuo.

Dois são, porque um, certo, é do sonho assíduo

Que a individual psiquê humana tece e

O outro é o do sonho altruístico da espécie

Que é o substractum dos sonhos do indivíduo!

E exclamo, ébrio, a esvaziar báquicos odres:

– “Cinza, síntese má da podridão,

“Miniatura alegórica do chão,

“Onde os ventres maternos ficam podres;

“Na tua clandestina e erma alma vasta,

“Onde nenhuma lâmpada se acende,

“Meu raciocínio sôfrego surpreende

“Todas as formas da matéria gasta!”

Raciocinar! Aziaga contingência!

Ser quadrúpede! Andar de quatro pés

É mais do que ser Cristo e ser Moisés

Porque é ser animal sem ter consciência!

Bêbedo, os beiços na ânfora ínfima, harto,

Mergulho, e na ínfima ânfora, harto, sinto

O amargor específico do absinto

E o cheiro animalíssimo do parto!

E afogo mentalmente os olhos fundos

Na amorfia da cítula inicial,

De onde, por epigênese geral,

Todos os organismos são oriundos.

Presto, irrupto, através ovoide e hialino

Vidro, aparece, amorfo e lúrido, ante

Minha massa encefálica minguante

Todo o gênero humano intrauterino!

É o caos da avita víscera avarenta

– Mucosa nojentíssima de pus,

A nutrir diariamente os fetos nus

Pelas vilosidades da placenta! –

Certo, o arquitetural e íntegro aspecto

Do mundo o mesmo inda é, que, ora, o que nele

Morre, sou eu, sois vós, é todo aquele

Que vem de um ventre inchado, ínfimo e infecto!

É a flor dos genealógicos abismos

– Zooplasma pequeníssimo e plebeu,

De onde o desprotegido homem nasceu

Para a fatalidade dos tropismos. –

Depois, é o céu abscôndito do Nada,

É este ato extraordinário de morrer

Que há de, na última hebdômada, atender

Ao pedido da célula cansada!

Um dia restará, na terra instável,

De minha antropocêntrica matéria

Numa côncava xícara funérea

Uma colher de cinza miserável!

Abro na treva os olhos quase cegos.

Que mão sinistra e desgraçada encheu

Os olhos tristes que meu Pai me deu

De alfinetes, de agulhas e de pregos?!

Pesam sobre o meu corpo oitenta arráteis!

Dentro um dínamo déspota, sozinho,

Sob a morfologia de um moinho,

Move todos os meus nervos vibráteis.

Então, do meu espírito, em segredo,

Se escapa, dentre as tênebras, muito alto,

Na síntese acrobática de um salto,

O espectro angulosíssimo do Medo!

Em cismas filosóficas me perco

E vejo, como nunca outro homem viu,

Na anfigonia que me produziu

Nonilhões de moléculas de esterco.

Vida, mônada vil, cósmico zero,

Migalha de albumina semifluida,

Que fez a boca mística do druida

E a língua revoltada de Lutero;

Teus gineceus prolíficos envolvem

Cinza fetal!... Basta um fósforo só

Para mostrar a incógnita de pó,

Em que todos os seres se resolvem!

Ah! Maldito o conúbio incestuoso

Dessas afinidades eletivas,

De onde quimicamente tu derivas,

Na aclamação simbiótica do gozo!

O enterro de minha última neurona

Desfila... E eis-me outro fósforo a riscar.

E esse acidente químico vulgar

Extraordinariamente me impressiona!

Mas minha crise artrítica não tarda.

Adeus! Que eu vejo enfim, com a alma vencida,

Na abjeção embriológica da vida

O futuro de cinza que me aguarda!

Paraíba – 1910.

OUTRAS POESIAS

O LAMENTO DAS COISAS

Triste, a escutar, pancada por pancada,

A sucessividade dos segundos,

Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos,

O choro da Energia abandonada!

É a dor da Força desaproveitada,

– O cantochão dos dínamos profundos,

Que, podendo mover milhões de mundos,

Jazem ainda na estática do Nada!

É o soluço da forma ainda imprecisa...

Da transcendência que se não realiza...

Da luz que não chegou a ser lampejo...

E é, em suma, o subconsciente aí formidando

Da Natureza que parou, chorando,

No rudimentarismo do Desejo!

O MEU NIRVANA

No alheamento da obscura forma humana,

De que, pensando, me desencarcero,

Foi que eu, num grito de emoção, sincero,

Encontrei, afinal, o meu Nirvana.

Nessa manumissão schopenhaueriana,

Onde a Vida do humano aspecto fero

Se desarraiga, eu, feito força, impero

Na imanência da Ideia Soberana!

Destruída a sensação que oriunda fora

Do tato – ínfima antena aferidora

Destas tegumentárias mãos plebeias –

Gozo o prazer, que os anos não carcomem,

De haver trocado a minha forma de homem

Pela imortalidade das Ideias!

CAPUT IMMORTALE

Ad poetam

Na dinâmica aziaga das descidas,

Aglomeradamente e em turbilhão

Solucem dentro do Universo ancião,

Todas as urbes siderais vencidas!

Morra o éter. Cesse a luz. Parem as vidas.

Sobre a pancosmológica exaustão

Reste apenas o acervo árido e vão

Das muscularidades consumidas!

Ainda assim, a animar o cosmos ermo,

Morto o comércio físico nefando,

Oh! Nauta aflito do Subliminal,

Como a última expressão da Dor sem termo,

Tua cabeça há de ficar vibrando

Na negatividade universal!

APÓSTROFE À CARNE

Quando eu pego nas carnes de meu rosto,

Pressinto o fim da orgânica batalha:

– Olhos que o húmus necrófago estraçalha,

Diafragmas, decompondo-se, ao sol-posto...

E o Homem – negro e heteróclito composto,

Onde a alva flama psíquica trabalha,

Desagrega-se e deixa na mortalha

O tato, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto!

Carne, feixe de mônadas bastardas,

Conquanto em flâmeo fogo efêmero ardas,

A dardejar relampejantes brilhos,

Dói-me ver, muito embora a alma te acenda,

Em tua podridão a herança horrenda,

Que eu tenho de deixar para os meus filhos!

LOUVOR À UNIDADE

“Escafandros, arpões, sondas e agulhas

“Debalde aplicas aos heterogêneos

“Fenômenos, e, há inúmeros milênios,

“Num pluralismo hediondo o olhar mergulhas!

“Une, pois, a irmanar diamantes e hulhas,

“Com essa intuição monística dos gênios,

“À hirta forma falaz do aere perennius

“A transitoriedade das fagulhas!”

– Era a estrangulação, sem retumbância,

Da multimilenária dissonância

Que as harmonias siderais invade...

Era, numa alta aclamação, sem gritos,

O regresso dos átomos aflitos

Ao descanso perpétuo da Unidade!

O PÂNTANO

Podem vê-lo, sem dor, meus semelhantes!...

Mas, para mim que a Natureza escuto,

Este pântano é o túmulo absoluto,

De todas as grandezas começantes!

Larvas desconhecidas de gigantes

Sobre o seu leito de peçonha e luto

Dormem tranquilamente o sono bruto

Dos superorganismos ainda infantes!

Em sua estagnação arde uma raça,

Tragicamente, à espera de quem passa

Para abrir-lhe, às escâncaras, a porta...

E eu sinto a angústia dessa raça ardente

Condenada a esperar perpetuamente

No universo esmagado da água morta!

SUPRÊME CONVULSION

O equilíbrio do humano pensamento

Sofre também a súbita ruptura,

Que produz muita vez, na noite escura,

A convulsão meteórica do vento.

E a alma o obnóxio quietismo sonolento

Rasga; e, opondo-se à Inércia, é a essência pura,

É a síntese, é o transunto, é a abreviatura

De todo o ubiquitário Movimento!...

Sonho – libertação do homem cativo –,

Ruptura do equilíbrio subjetivo,

Ah! foi teu beijo convulsionador

Que produziu este contraste fundo

Entre a abundância do que eu sou, no Mundo,

E o nada do meu homem interior!

A UM GÉRMEN

Começaste a existir, geleia crua,

E hás de crescer, no teu silêncio, tanto

Que, é natural, ainda algum dia, o pranto

Das tuas concreções plásmicas flua!

A água, em conjugação com a terra nua,

Vence o granito, deprimindo-o... O espanto

Convulsiona os espíritos, e, entanto,

Teu desenvolvimento continua!

Antes, geleia humana, não progridas

E em retrogradações indefinidas,

Volvas à antiga inexistência calma!...

Antes o Nada, oh! gérmen, que ainda haveres

De atingir, como gérmen de outros seres,

Ao supremo infortúnio de ser alma!

NATUREZA ÍNTIMA

Ao filósofo Farias Brito

Cansada de observar-se na corrente

Que os acontecimentos refletia,

Reconcentrando-se em si mesma, um dia,

A Natureza olhou-se interiormente!

Baldada introspecção! Noumenalmente

O que Ela, em realidade, ainda sentia

Era a mesma imortal monotonia

De sua face externa indiferente!

E a Natureza disse com desgosto:

“Terei somente, porventura, rosto?!

“Serei apenas mera crusta espessa?!

“Pois é possível que Eu, causa do Mundo,

“Quanto mais em mim mesma me aprofundo,

“Menos interiormente me conheça?!”

A FLORESTA

Em vão com o mundo da floresta privas!...

– Todas as hermenêuticas sondagens,

Ante o hieróglifo e o enigma das folhagens,

São absolutamente negativas!

Araucárias, traçando arcos de ogivas,

Bracejamentos de álamos selvagens,

Como um convite para estranhas viagens,

Tornam todas as almas pensativas!

Há uma força vencida neste mundo!

Todo o organismo florestal profundo

É dor viva, trancada num disfarce...

Vivem só, nele, os elementos broncos,

– As ambições que se fizeram troncos,

Porque nunca puderam realizar-se!

A MERETRIZ

A rua dos destinos desgraçados

Faz medo. O Vício estruge. Ouvem-se os brados

Da danação carnal... Lúbrica, à lua,

Na sodomia das mais negras bodas

Desarticula-se, em coréas doudas,

Uma mulher completamente nua!

É a meretriz que, de cabelos ruivos,

Bramando, ébria e lasciva, hórridos uivos

Na mesma esteira pública, recebe,

Entre farraparias e esplendores,

O eretismo das classes superiores

E o orgasmo bastardíssimo da plebe!

É ela que, aliando, à luz do olhar protervo,

O indumento vilíssimo do servo

Ao brilho da augustal toga pretexta,

Sente, alta noite, em contorções sombrias,

Na vacuidade das entranhas frias

O esgotamento intrínseco da besta!

É ela que, hirta, a arquivar credos desfeitos,

Com as mãos chagadas, espremendo os peitos,

Reduzidos, por fim, a âmbulas moles,

Sofre em cada molécula a angústia alta

De haver secado, como o estepe, à falta

Da água criadora que alimenta as proles!

É ela que, arremessada sobre o rude

Despenhadeiro da decrepitude,

Na vizinhança aziaga dos ossuários

Representa, através os meus sentidos,

A escuridão dos gineceus falidos

E a desgraça de todos os ovários!

Irrita-se-lhe a carne à meia-noite.

Espicaça-a a ignomínia, excita-a o açoite

Do incêndio que lhe inflama a língua espúria.

E a mulher, funcionária dos instintos,

Com a roupa amarfanhada e os beiços tintos,

Gane instintivamente de luxúria!

Navio para o qual todos os portos

Estão fechados, urna de ovos mortos,

Chão de onde uma só planta não rebenta,

Ei-la, de bruços, bêbeda de gozo

Saciando o geotropismo pavoroso

De unir o corpo à terra famulenta!

Nesse espolinhamento repugnante

O esqueleto irritado da bacante

Estrala... Lembra o ruído harto azorrague

A vergastar ásperos dorsos grossos.

E é aterradora essa alegria de ossos

Pedindo ao sensualismo que os esmague!

É o pseudorregozijo dos eunucos

Por natureza, dos que são caducos

Desde que a Mãe-Comum lhes deu início...

É a dor profunda da incapacidade

Que, pela própria hereditariedade,

A lei da seleção disfarça em Vício!

É o júbilo aparente da alma quase

A eclipsar-se, no horror da ocídua fase

Esterilizadora de órgãos... É o hino

Da matéria incapaz, filha do inferno,

Pagando com volúpia o crime eterno

De não ter sido fiel ao seu destino!

É o Desespero que se faz bramido

De anelo animalíssimo incontido,

Mais que a vaga incoercível na água oceânea...

É a Carne que, já morta essencialmente,

Para a Finalidade Transcendente

Gera o prodígio anímico da Insânia!

Nas frias antecâmaras do Nada

O fantasma da fêmea castigada,

Passa agora ao clarão da lua acesa

E é seu corpo expiatório, alvo e desnudo

A síntese eucarística de tudo

Que não se realizou na Natureza!

Antigamente, aos tácitos apelos

Das suas carnes e dos seus cabelos,

Na óptica abreviatura de um reflexo,

Fulgia, em cada humana nebulosa,

Toda a sensualidade tempestuosa

Dos apetites bárbaros do Sexo!

O atavismo das raças sibaritas,

Criando concupiscências infinitas

Como eviterno lobo insatisfeito;

Na homofagia hedionda que o consome,

Vinha saciar a milenária fome

Dentro das abundâncias do seu leito!

Toda a libidinagem dos mormaços

Americanos fluía-lhe dos braços,

Irradiava-se-lhe, hírcica, das veias

E em torrencialidades quentes e úmidas,

Gorda a escorrer-lhe das artérias túmidas

Lembrava um transbordar de ânforas cheias.

A hora da morte acende-lhe o intelecto

E à úmida habitação do vício abjecto

Afluem milhões de sóis, rubros, radiando...

Resíduos memoriais tornam-se luzes

Fazem-se ideias e ela vê as cruzes

Do seu martirológio miserando!

Inícios atrofiados de ética, ânsia

De perfeição, sonhos de culminância,

Libertos da ancestral modorra calma,

Saem da infância embrionária e erguem-se, adultos,

Lançando a sombra horrível dos seus vultos

Sobre a noite fechada daquela alma!

É o sublevantamento coletivo

De um mundo inteiro que aparece vivo,

Numa cenografia de diorama,

Que, momentaneamente luz fecunda,

Brilha na prostituta moribunda

Como a fosforescência sobre a lama!

É a visita alarmante do que outrora

Na abundância prospérrima da aurora,

Pudera progredir, talvez, decerto,

Mas que, adstrito a inferior plasma inconsútil,

Ficou rolando, como aborto inútil,

Como o ...............do deserto!

Vede! A prostituição, ofídia aziaga

Cujo tóxico instila a infâmia, e a estraga

Na delinquência ......... impune,

Agarrou-se-lhe aos seios impudicos

Como o abraço mortífero do Ficus

Sugando a seiva da árvore a que se une!

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Enroscou-se-lhe aos abraços com tal gosto,

.........Mordeu-lhe a boca e o rosto...

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Ser meretriz depois do túmulo! A alma

Roubada à hirta quietude da urbe calma

Onde se extinguem todos os escolhos:

E, condenada, ao trágico ditame,

Oferecer-se à bicharia infame

Com a terra do sepulcro a encher-lhe os olhos!

Sentir a língua aluir-se-lhe na boca

E com a cabeça sem cabelos, oca...

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Na horrorosa avulsão da forma nívea

Dizer ainda palavras de lascívia...

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GUERRA

Guerra é esforço, é inquietude, é ânsia, é transporte...

É a dramatização sangrenta e dura

Da avidez com que o Espírito procura

Ser perfeito, ser máximo, ser forte!

É a Subconsciência que se transfigura

Em volição consagradora... É a coorte

Das raças todas, que se entrega à morte

Para a felicidade da Criatura!

É a obsessão de ver sangue, é o instinto horrendo

De subir, na ordem cósmica, descendo

À irracionalidade primitiva...

É a Natureza que, no seu arcano,

Precisa de encharcar-se em sangue humano

Para mostrar aos homens que está viva!

O SARCÓFAGO

Senhor da alta hermenêutica do Fado

Perlustro o atrium da Morte... É frio o ambiente

E a chuva corta inexoravelmente

O dorso de um sarcófago molhado!

Ah! Ninguém ouve o soluçante brado

De dor profunda, acérrima e latente,

Que o sarcófago, ereto e imóvel, sente

Em sua própria sombra sepultado!

Dói-lhe (quem sabe?) essa grandeza horrível,

Que em toda a sua máscara se expande,

À humana comoção impondo-a, inteira...

Dói-lhe, em suma, perante o Incognoscível,

Essa fatalidade de ser grande

Para guardar unicamente poeira!

HINO À DOR

Dor, saúde dos seres que se fanam,

Riqueza da alma, psíquico tesouro,

Alegria das glândulas do choro

De onde todas as lágrimas emanam...

És suprema! Os meus átomos se ufanam

De pertencer-te, oh! Dor, ancoradouro

Dos desgraçados, sol do cérebro, ouro

De que as próprias desgraças se engalanam!

Sou teu amante! Ardo em teu corpo abstrato.

Com os corpúsculos mágicos do tato

Prendo a orquestra de chamas que executas...

E, assim, sem convulsão que me alvoroce,

Minha maior ventura é estar de posse

De tuas claridades absolutas!

ULTIMA VISIO

Quando o homem, resgatado da cegueira

Vir Deus num simples grão de argila errante,

Terá nascido nesse mesmo instante

A mineralogia derradeira!

A impérvia escuridão obnubilante

Há de cessar! Em sua glória inteira

Deus resplandecerá dentro da poeira

Como um gazofilácio de diamante!

Nessa última visão já subterrânea,

Um movimento universal de insânia

Arrancará da insciência o homem precito...

A Verdade virá das pedras mortas

E o homem compreenderá todas as portas

Que ele ainda tem de abrir para o Infinito!

AOS MEUS FILHOS

Na intermitência da vital canseira,

Sois vós que sustentais (Força Alta exige-o...)

Com o vosso catalítico prestígio,

Meu fantasma de carne passageira!

O vulcão da bioquímica fogueira

Destruiu-me todo o orgânico fastígio...

Dai-me asas, pois, para o último remígio,

Dai-me alma, pois, para a hora derradeira!

Culminâncias humanas ainda obscuras,

Expressões do universo radioativo,

Íons emanados do meu próprio Ideal,

Benditos vós, que, em épocas futuras,

Haveis de ser no mundo subjetivo,

Minha continuidade emocional!

A DANÇA DA PSIQUÊ

A dança dos encéfalos acesos

Começa.