“Foi a última grande obra do autor”, comentou Swinburne; “os defeitos são quase tão imperceptíveis quanto manchas no sol ou sombras num mar ensolarado.”1
A característica mais imediata de Grandes esperanças é ser uma história de redenção moral. O protagonista, um órfão criado num lar humilde, nas primeiras décadas do século xix, herda uma fortuna, e imediatamente rejeita os familiares e os amigos. Quando a fortuna perde o brilho, e depois desaparece por completo, ele é obrigado a assumir sua própria ingratidão, e aprende a amar o homem que o elevou e também o destruiu. A história é narrada pelo próprio protagonista, e ao elaborar essa narrativa na primeira pessoa Dickens enfrentou um desafio duplo. Era preciso fazer com que Pip parecesse sincero ao confessar seus defeitos, para que os leitores não imaginem que ele os admite apenas para conquistar-lhes a simpatia. E era preciso validar a redenção de Pip mostrando que ela gera não apenas belas palavras, mas também bons atos. Numa análise meticulosa do tom da narrativa, Christopher Ricks demonstra que ela funciona porque é tão franca quanto se pode desejar, sem jamais se comprazer com a própria franqueza.2 Sua notável agilidade é particularmente visível na passagem em que Pip descreve seus sentimentos quando fica sabendo da visita próxima de seu velho amigo e protetor, o ferreiro Joe Gargery. “Não com prazer, embora tantos vínculos me unissem a ele; não; com muita perturbação, uma certa mortificação e uma intensa sensação de incongruência. Se eu pudesse mantê-lo afastado pagando uma determinada quantia, certamente o teria feito.” (p. 309.) A segunda frase, em particular, é de fato implacável, sem fazer alarde de sua própria implacabilidade. Trata-se de um tom difícil de manter, e — como demonstra Ricks — nem sempre Dickens consegue fazê-lo. Há momentos em que Pip carrega um pouco demais na automortificação, e momentos em que ele parece pedir desesperadamente nossa aprovação. De modo geral, porém, ele é rigoroso consigo mesmo no grau exato para ser convincente.
A prova da redenção de Pip está nos seus bons atos, e não em suas belas palavras: seus rasgos secretos de generosidade, quando possibilita a Herbert tornar-se sócio da Clarricker’s e quando convence a sra. Havishman dos méritos do sofrido Matthew Pocket; quando, no final das contas, recusa-se a aceitar dinheiro da sra. Havisham ou de Magwitch; e, acima de tudo, quando demonstra seu amor por Magwitch. O último desses atos de bondade, e o mais difícil de autenticar para o autor, torna-se intensamente vívido graças a uma sutil modificação da técnica narrativa. Isso se dá no volume iii, capítulo 15, quando Pip tenta ajudar Magwitch a fugir num barco no Tâmisa. É a única passagem em todo o romance em que a narrativa em primeira pessoa não focaliza os pensamentos de Pip — por mais honestos que sejam — sobre si próprio, e sim volta-se atentamente para os outros, e para o desenrolar dos acontecimentos.3 Uma tensão permeia a narrativa nas descrições das docas e do rio, mas trata-se de uma ansiedade ou um estado de alerta geral, e não o autocentramento de Pip, justificado ou não, que até então dominou a narrativa. O amor que Pip sente por Magwitch depois de sua captura é, portanto, um conhecimento conquistado por meio da submissão do eu ao outro.
Sem dúvida, Pip tem pecados a expiar, em particular sua ingratidão para com Joe e Biddy, e a repulsa inicial que lhe inspira Magwitch. Mas sua consciência de culpa parece ser sempre excessiva em relação ao mal causado: menos um reconhecimento crescente dos defeitos morais do que uma afinidade misteriosa e profunda com o crime. Essa afinidade torna-se explícita quando, aguardando a chegada de Estella no escritório das diligências, Pip mata o tempo acompanhando Wemmick numa visita à prisão de Newgate.
Consumi todo esse tempo pensando como era estranho que eu estivesse sempre envolvido por essa nódoa de prisão e crime; que, na minha infância, nos nossos charcos solitários numa noite de inverno, eu a houvesse encontrado pela primeira vez; que ela tivesse reaparecido em duas ocasiões, começando como uma nódoa desbotada, mas não desaparecida; que, desta nova maneira, ela impregnasse minha fortuna e minha ascensão (p. 366).
Pip vê o crime não como um defeito moral, mas como uma predisposição psicológica, até mesmo genética: uma nódoa que tudo engloba. Julian Moynahan propõe que a melhor maneira de abordar esse pressuposto é analisar a relação de Pip não com Magwitch, mas com Orlick, o ajudante de Joe Gargery que se torna assassino.4
Orlick é a sombra de Pip. Vemo-lo pela primeira vez trabalhando ao lado de Pip na ferraria. Quando a sra. Joe é brutalmente atacada, quem a ataca é Orlick, mas pode-se dizer que foi Pip quem lhe deu a arma: um grilhão. Pip é chamado para distrair a sra. Havisham; Orlick, algum tempo depois, torna-se porteiro dela. Pip vê Biddy como uma irmã; as intenções de Orlick com relação a ela são menos louváveis. Pip associa-se a Magwitch, e Orlick ao inimigo mortal de Magwitch, Compeyson.
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