Talvez esta última circunstância o ligou desde logo à família do seu senhor. Despida de Edições Costa Flosi

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interesse, porque a esperança da liberdade, se a podia haver, era precária e remota, a afeição de Vicente não era menos viva e sincera; faltando-lhe os gozos próprios do afeto, — a familiaridade e o contato, — condenado a viver da contemplação e da memória, a não beijar sequer a mão que o abençoava, limitado e distanciado pelos costumes, pelo respeito e pelos instintos, Vicente foi, não obstante, um fiel servidor de Helena, seu advogado convicto nos julgamentos da senzala.

As pessoas da intimidade da casa acolheram Helena com a mesma hesitação de D.

Úrsula. Helena sentiu-lhes a polidez fria e parcimoniosa. Longe de abater-se ou vituperar os sentimentos sociais, explicava-os e tratava de os torcer em seu favor, — tarefa em que se esmerou superando os obstáculos na família; o resto viria de si mesmo.

Uma pessoa, entre os familiares da casa, não os acompanhou no procedimento reservado e frio; foi o padre-mestre Melchior. Melchior era capelão em casa do conselheiro, que mandara construir alguns anos antes uma capelinha na chácara, onde muita gente da vizinhança ouvia missa aos domingos. Tinha sessenta anos o padre; era homem de estatura mediana, magro, calvo, brancos os poucos cabelos, e uns olhos não menos sagazes que mansos. De compostura quieta e grave, austero sem formalismo, sociável sem mundanidade, tolerante sem fraqueza, era o verdadeiro varão apostólico, homem de sua Igreja e de seu Deus, íntegro na fé, constante na esperança, ardente na caridade. Conhecera a família do conselheiro algum tempo depois do consórcio deste. Descobriu a causa da tristeza que minou os últimos anos da mãe de Estácio; respeitou a tristeza, mas atacou diretamente a origem. O conselheiro era homem geralmente razoável, salvo nas coisas do amor; ouviu o padre, prometeu o que este lhe exigia, mas foi promessa feita na areia; o primeiro vento do coração apagou a escritura.

Entretanto, o conselheiro ouvia-o sinceramente em todas as ocasiões graves, e o voto de Melchior pesava em seu espírito. Morando na vizinhança daquela família, tinha ali o padre todo o seu mundo. Se as obrigações eclesiásticas não o chamavam a outro lugar, não se arredava de Andaraí, sítio de repouso após trabalhosa mocidade.

Das outras pessoas que freqüentavam a casa e residiam no mesmo bairro de Andaraí, mencionaremos ainda o Dr. Matos, sua mulher, o coronel Macedo e dois filhos.

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O Dr. Matos era um velho advogado que, em compensação da ciência do direito, que não sabia, possuía noções muito aproveitáveis de meteorologia e botânica, da arte de comer, do voltarete, do gamão e da política. Era impossível a ninguém queixar-se do calor ou do frio, sem ouvir dele a causa e a natureza de um e outro, e logo a divisão das estações, a diferença dos climas, influência destes, as chuvas, os ventos, a neve, as vazantes dos rios e suas enchentes, as marés e a pororoca. Ele falava com igual abundância das qualidades terapêuticas de uma erva, do nome científico de uma flor, da estrutura de certo vegetal e suas peculiaridades. Alheio às paixões da política, se abria a boca em tal assunto era para criticar igualmente de liberais e conservadores, — os quais todos lhe pareciam abaixo do país. O jogo e a comida achavam-no menos céptico; e nada lhe avivava tanto a fisionomia como um bom gamão depois de um bom jantar. Estas prendas faziam do Dr. Matos um conviva interessante nas noites que o não eram. Posto soubesse efetivamente alguma coisa dos assuntos que lhe eram mais prezados, não ganhou o pecúlio que possuía, professando a botânica ou a meteorologia, mas aplicando as regras do direito, que ignorou até à morte.

A esposa do Dr. Matos fora uma das belezas do primeiro reinado. Era uma rosa fanada, mas conservava o aroma da juventude.