O desembargador dera o enxoval; algumas vezes pagou o ensino; as visitas amiudaram-se; a criança, que era bonita e boa, entrou manso e manso no coração de Valéria que a recebeu em casa, no dia em que a pequena concluiu os estudos.

Estela — era o seu nome, — tinha então dezesseis anos. Pouco antes falecera o desembargador. O Sr. Antunes recebeu dois golpes em vez de um: o de o ver morrer, e o de não o ver testar. As aneurismas têm dessas perfídias inopináveis. A fim de emendar a mão à fortuna, o pai de Estela concentrou na viúva a atenção que até então repartira entre ela e o marido, fato que aliás decorria da própria obrigação moral em que se achava para com a família do desembargador. Estela devia a essa família educação e carinho; podia talvez ir a dever-lhe um dote, um marido e consideração. Quem sabe? Talvez o coração de Jorge vinculasse as duas famílias. Esta ambição afagava-a o Sr. Antunes no mais profundo de sua alma.

Jorge estava prestes a concluir os estudos em São Paulo; ia na metade do quarto ano. Vindo à Capital durante as férias, achou-se diante de uma situação inesperada; a mãe esboçara um projeto de casamento para ele. A noiva escolhida era ainda parenta remota de Jorge. Chamava-se Eulália. Tinha dezenove anos na certidão de batismo e trinta no cérebro. Era uma moça sem ilusões nem vaidades, talvez sem paixões, dotada de juízo reto e coração simples, e sobre tudo isso uma beleza sem mácula e uma elegância sem espavento. — Uma pérola! dizia Valéria quando insinuou ao filho a conveniência de casar com Eulália. A pérola, entretanto, não parecia ansiosa de ornar a fronte de ninguém. Quando Valéria fez as primeiras sondagens no coração da jovem parenta, achou ali uma água tranqüila, sem curso nem recurso de marés. Tratou de saber se alguma brisa lhe roçara a asa, e descobriu que não; então chamou em seu auxílio o siroco e o pampeiro. Não foi difícil a Eulália perceber os desejos da viúva, nem resistiu quando chegou a entendê-la. A razão disse-lhe que o casamento era aceitável; esperou. Valéria ficou satisfeita com o resultado, e deu-se pressa em sondar as disposições de Jorge, quando ele voltou no fim do ano.

Graças à sua arte de assediar as vontades alheias, Valéria alcançou do filho uma resposta condicional. Era já alguma coisa. O motivo da insistência da viúva era complexo; eram as qualidades da parenta, a afeição grande que lhe votava, o receio de morrer subitamente e a confiança que tinha em si mesma para conhecer e eleger caracteres. Durante o último ano da Faculdade, Jorge pensou algumas vezes no casamento como se pensa num projeto remoto; mas, à proporção que o tempo corria, o coração ia-se-lhe tornando retraído e medroso. Uma vez formado, deu de mão à idéia; não teve a franqueza de o declarar à mãe, e Valéria esperou confiadamente que o coração do filho dissesse noutra língua aquilo que ela já lhe havia dito na sua.

Para conhecer exatamente o motivo da repulsa de Jorge em relação a uma moça, cujas qualidades deviam tentar qualquer outro, convém não esquecer que essas qualidades eram justamente as mais avessas à índole do filho de Valéria. Não bastava ser elegante e bonita, discreta e mansa; era preciso alguma coisa mais, que exatamente correspondesse à imaginação dele; faltava-lhe um grão de romanesco.

A isto acrescia um sentimento novo, que se apossou dele, ao cabo de três semanas depois da chegada ao Rio de Janeiro. A vista quotidiana de Estela produziu em Jorge uma impressão forte. Posto vivessem na mesma casa, era difícil acharem-se nunca a sós, porque a filha do escrevente passava todo o tempo ao pé da viúva; circunstância que não teve a virtude de mudar o curso aos acontecimentos. Não podendo passar de palavras gerais e estranhas ao que lhe quisera confiar, Jorge falava-lhe com os olhos, — linguagem que a moça não entendia, ou fingia não entender.