Estela fora até à porta da alcova da sala, resolvida a fechar-se por dentro.

O Sr. Antunes não tinha observação; mas, ao ver o rosto dos dois, não era muito difícil adivinhar que alguma coisa se passara entre eles. Adivinhou-o; contudo, não atinara bem o que seria, se uma cena de dolorosa despedida, se outra coisa menos propícia a seus cálculos. Foi ao jovem capitão e pediu-lhe que se sentasse; mas Jorge declarou que ia sair e despediu-se. Sem encarar Estela, estendeu-lhe a mão, que ela apertou com o ar mais tranqüilo do mundo. O pai espreitava uma lágrima furtiva, um gesto disfarçado, qualquer coisa que falasse em favor de suas esperanças. Nada; Estela não baixou o rosto nem escondeu os olhos. Jorge, sim; não obstante o esforço que fazia, tremia-lhe a mão ao apertar a do escrevente.

O Sr. Antunes acompanhou-o até a porta. Ali, antes de a abrir, quis abraçar o moço oficial.

— Dê-me essa triste honra, disse ele; creia que estes braços são de amigo.

Jorge deixou-se ir, sem entusiasmo; mas quando sentiu o corpo do pai de Estela, pareceu-lhe que abraçava uma parte da moça, e apertou-o fortemente ao peito. Esta manifestação lisonjeou extremamente o outro; chegou a comovê-lo.

— Conte comigo, murmurou ele; fico para ajudá-lo.

Jorge ouviu-o, apertou-lhe maquinalmente as mãos, recebeu um abraço último e atirou-se à rua.

Intolerável é a dor que não deixa sequer o direito de argüir a fortuna. O mais duro dos sacrifícios é o que não tem as consolações da consciência. Essa dor padecia-a Jorge; esse sacrifício ia consumá-lo.

Não foi dali para casa; não ousaria encarar sua mãe. Durante a primeira hora que se seguiu à saída da casa de Estela, não pôde reger os pensamentos; eles cruzavam-lhe o cérebro sem ordem nem dedução. O coração batia-lhe rijo na arca do peito; de quando em quando o corpo era tomado de calefrios. Ia despeitado, humilhado, com um dente de remorso no coração. Quisera de um só gesto eliminar a cena daquela noite, quando menos apagá-la da lembrança. As palavras de Estela retiniam-lhe ao ouvido como um silvo de vento colérico; ele trazia no espírito a figura desdenhosa da moça, o gesto sem ternura, os olhos sem misericórdia. Ao mesmo tempo, lembrava-lhe a cena da Tijuca, e alguma coisa lhe dizia que essa noite era a desforra daquela manhã. Ora sentia-se odioso, ora ridículo.

— Tua mãe é quem tem razão, bradava uma voz interior; ias descer a uma aliança indigna de ti; e se não soubeste respeitar nem a tua pessoa nem o nome de teus pais, justo é que pagues o erro indo correr a sorte da guerra. A vida não é uma égloga virgiliana, é uma convenção natural, que se não aceita com restrições, nem se infringe sem penalidade. Há duas naturezas, e a natureza social é tão legítima e tão imperiosa como a outra. Não se contrariam, completam-se; são as duas metades do homem, e tu ias ceder à primeira, desrespeitando as leis necessárias da segunda.

— Quem tem razão és tu, dizia-lhe outra voz contrária, porque essa mulher vale mais que seu destino, e a lei do coração é anterior e superior às outras leis. Não ias descer; ias fazê-la subir; ias emendar o equívoco da fortuna; escuta a voz de Deus e deixa aos homens o que vem dos homens.

Jorge caminhava assim, levado de sensações contrárias, até que ouviu bater meia-noite e caminhou para casa, cansado e opresso. Valéria esperava-o sem haver dormido. Essa dedicação silenciosa, oculta, vulgar nas mães, natural naquela véspera de uma separação acerba e longa, foi como um bálsamo ao coração dolorido do rapaz. Foi também um remorso. Pungiu-lhe a consciência ao ver que esperdiçara algumas horas longe da criatura, a quem verdadeiramente ia deixar saudades, única pessoa que pediria a Deus por ele. Valéria adivinhara onde estaria o filho, e tremia de medo à proporção que as horas passavam, receosa de que, amando-o Estela, um e outro houvessem subtraído a sua ventura ao jugo das leis sociais, indo refugiar-se em algum ignorado recanto. Pensou isso, e fraqueou, e arrependeu-se, duvidando de si e da retidão de seus atos.