O coronel era homem de seu ofício; amava a guerra pela guerra; morreu talvez de nostalgia no regaço da paz. Era bravo e ríspido. O que lhe destoou a princípio na pessoa de Jorge, foi o alinho e um resto de seus ademanes de sala. Jorge, entretanto, sem perder desde logo o jeito da vida civil, foi criando com o tempo a crosta de campanha. O desejo de trabalhar, de arriscar-se, de temperar a alma ao fogo do perigo, trocou os sentimentos do coronel, que entreviu nele um bom companheiro de armas, e ao fim de pouco tempo procurou distingui-lo.

Posto que Jorge falasse do coronel nas cartas que escrevia à mãe, não o dava como amigo seu, nem tinha amigos no acampamento, ou se os tinha não os considerava tais. Ouvia confidências de muitos, animava as esperanças de uns, consolava as penas de outros, nunca abria porém a porta do coração à curiosidade transeunte. Devia ser entretanto interessante uma página somente da vida daquele militar, jovem, bonito, abastado, que não ia ao teatro nem aos saraus do acampamento, que ria poucas vezes e mal, que só falava da guerra, quando falava de alguma coisa.

Um dia, um major do Ceará foi achá-lo sentado em um resto de carreta inútil, lançado em sítio escuso, ora a olhar para o horizonte, ora a traçar com a ponta da espada uma estrela no chão.

— Capitão, disse o major, parece que você está vendo estrelas ao meio-dia?

Jorge sorriu do gracejo, mas não deixou de continuar, nos demais dias, a traçar estrelas no chão ou a procurá-las nas campinas do Céu. Os oficiais, arrastados pela simpatia, não lhe ficavam presos pela convivência; Jorge era, não só taciturno, mas desigual, ora dócil, ora ríspido, muitas vezes distraído e absorto. Era distraído, sobretudo, quando recebia cartas do Rio de Janeiro, entre as quais rara vez acontecia que não viesse alguma do Sr. Antunes. O pai de Estela regava com a água salobra de seu estilo a esperança que não perdera. As suas cartas eram epitalâmios disfarçados. Falava muito de si, e muito mais da filha, cuja alma, dizia ele, andava singularmente triste e acabrunhada. Jorge resistia ao desejo de falar também de Estela; mais de uma vez o nome da moça lhe caía dos bicos da pena; ele o riscava logo, assim como riscava qualquer frase que pudesse parecer alusiva aos seus sentimentos; as que escrevia ao pai da moça eram secas, sem especial interesse, polidas e frias.

Um dia, porém, antes de meado o ano de 1867, não pôde resistir à necessidade de segredar o amor a alguém ou proclamá-lo aos quatro ventos do céu. Ninguém havia ao pé dele que merecesse a confidência; Jorge alargou os olhos e lembrou-se de Luís Garcia, única pessoa estranha a quem confiara metade do segredo que havia levado para a guerra. Os corações discretos são raros; a maioria não é de gaviões brancos que, ainda feridos, voam calados, como diz a trova; a maioria é das pegas, que contam tudo ou quase tudo.

Já nesse tempo o coração de Jorge padecera grande transformação. O amor, sem minguar de intensidade, mudara de natureza, convertendo-se em uma espécie de adoração mística, sentimento profundo e forte, que parecia respirar atmosfera mais alta que a do resto da criação. Ele mesmo o disse na carta a Luís Garcia, sem lhe denunciar o nome da pessoa, nem nenhuma circunstância que pudesse pô-lo na pista da realidade; exigiu-lhe absoluto silêncio e contou-lhe o que sentia:

“Não importa saber quem é, disse ele; — o essencial é saber que amo a mais nobre criatura do mundo, e o triste é que não somente não sou amado, mas até estou certo de que sou aborrecido.

Minha mãe iludiu-se quando supôs que meu amor achara eco em outro coração. Talvez desistisse de me mandar ao Paraguai, se soubesse que esta paixão solitária era o meu próprio castigo. Era; já o não é. A paixão veio comigo apesar do que lhe ouvi na véspera de embarcar; e se não cresceu, é porque não podia crescer. Mas transformou-se. De criança tonta, que era, fez-se homem de juízo. Uma crise, algumas léguas de permeio, poucos meses de intervalo, foram bastantes a operar o milagre.

Não sei se a verei mais, porque uma bala pode por termo a meus dias, quando eu menos o esperar. Se a vir, ignoro os sentimentos com que ela me receberá. Mas de um ou de outro modo, este amor morrerá comigo, e o seu nome será a última palavra que há de sair de meus lábios.

Meu amor não sabe já o que seja impaciência ou ciúme ou exclusivismo: é uma fé religiosa, que pode viver inteira em muitos corações. Talvez o senhor não me compreenda. Os homens graves ficam surdos a estas sutilezas do coração. Os frívolos não as entendem. Eu mesmo não sei explicar o que sinto, mas sinto alguma coisa nova, uma saudade sem esperança, mas também sem desespero: é o que me basta.”

Jorge releu o escrito, e ora o achava claro demais, ora obscuro.