Ia ela de quando em quando à casa deste, nos dias em que era certo encontrar lá a menina, e ia de São Cristovão, onde morava. Não descansou enquanto não alugou um casebre em Santa Teresa, para ficar mais perto da filha de criação. Um irmão, antigo furriel, que fizera a campanha contra Rosas, era seu companheiro de trabalho.
Tal era a vida uniforme e plácida de Luís Garcia. Nenhuma ambição, cobiça ou peleja vinha toldar-lhe a serenidade da alma. A última dor séria que tivera foi a morte da esposa, ocorrida em 1859, meses antes de ir-se ele esconder em Santa Teresa. O tempo, esse químico invisível, que dissolve, compõe, extrai e transforma todas as substâncias morais, acabou por matar no coração do viúvo, não a lembrança da mulher, mas a dor de a haver perdido. Importa dizer que as lágrimas derramadas nessa ocasião honraram a esposa morta, por serem conquista sua. Luís Garcia não casara por amor nem interesse; casara porque era amado. Foi um movimento generoso. A mulher não era de sua mesma índole; seus espíritos vinham de pontos diferentes do horizonte. Mas a dedicação e o amor da esposa abriram nele a fonte da estima. Quando ela morreu, viu Luís Garcia que perdera um coração desinteressado e puro; consolou-o a esperança de que a filha havia herdado uma parcela dele.
Assim vivia esse homem cético, austero e bom, alheio às coisas estranhas, quando a carta de 5 de outubro de 1866 veio chamá-lo ao drama que este livro pretende narrar.
CAPÍTULO II
A hora aprazada era incômoda para Luís Garcia, cujos hábitos de trabalho mal sofriam interrupção. Não obstante, foi à Rua dos Inválidos.
Valéria Gomes era viúva de um desembargador honorário, falecido cerca de dois anos antes, a quem o pai de Luís Garcia devera alguns obséquios e a quem este prestara outros. Não havia entre ela e Luís Garcia relações assíduas ou estreitas; mas a viúva e seu finado marido sempre o tiveram em boa conta e o tratavam com muito carinho. Defunto o desembargador, Valéria recorrera duas ou três vezes aos serviços de Luís Garcia; contudo, era a primeira vez que o fazia com tamanha solenidade.
Valéria recebeu-o afetuosamente, estendendo-lhe a mão, ainda fresca, apesar dos anos, que subiam de quarenta e oito. Era alta e robusta. A cabeça, forte e levantada, parecia protestar pela altivez da atitude contra a moleza e tristura dos olhos. Estes eram negros, a sobrancelha basta, o cabelo abundante, listrado de alguns fios de prata. Posto não andasse alegre nos últimos tempos, estava naquele dia singularmente preocupada. Logo que entraram na sala, deixou-se cair numa poltrona; caiu e ficou silenciosa alguns instantes. Luís Garcia sentou-se tranqüilamente na cadeira que ela lhe designou.
— Sr. Luís Garcia, disse a viúva; esta guerra do Paraguai é longa e ninguém sabe quando acabará. Vieram notícias hoje?
— Não me consta.
— As de ontem não me animaram nada, continuou a viúva depois de um instante. Não creio na paz que o López veio propor. Tenho medo que isto acabe mal.
— Pode ser, mas não dependendo de nós...
— Por que não? Eu creio que é chegado o momento de fazerem todas as mães um grande esforço e darem exemplos de valor, que não serão perdidos. Pela minha parte trabalho com o meu Jorge para que vá alistar-se como voluntário; podemos arranjar-lhe um posto de alferes ou tenente; voltará major ou coronel. Ele, entretanto, resiste até hoje; não é falta de coragem nem de patriotismo; sei que tem sentimentos generosos. Contudo, resiste...
— Que razão dá ele?
— Diz que não quer separar-se de mim.
— A razão é boa.
— Sim, porque também a mim custaria a separação. Mas não se trata do que eu ou ele podemos sentir: trata-se de coisa mais grave, — da pátria, que está acima de nós.
Valéria proferiu estas palavras com certa animação, que a Luís Garcia pareceu mais simulada que sincera. Não acreditou no motivo público.
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