Nas 128 notas explicativas, o autor expõe o sentido das palavras indígenas e oferece informações históricas e geográficas ao leitor.
O artifício da carta e das notas explicativas foi muito criticado na época de publicação do romance. No entanto, seu uso não visa engessar a leitura, mas, ao contrário, expor a pertinência do programa indianista alencariano na criação de uma literatura nacional, com atenção ao trabalho de linguagem. A carta e as notas são essenciais para a leitura do texto ficcional de Iracema por oferecerem legibilidade à narrativa, além de explicitarem o aproveitamento poético dos conhecimentos indígenas do autor, como este ressalta em sua carta: “Este livro é pois um ensaio ou antes mostra. Verá realizar nele minhas ideias a respeito da literatura nacional e achará aí poesia inteiramente brasileira, haurida na língua dos selvagens. A etimologia dos nomes das diversas localidades e certos modos de dizer tirados da composição das palavras são de cunho original.”
No projeto literário alencariano, descrever a saga de uma índia que se apaixona por um branco e abandona sua comunidade e religião em nome do amor, é muito mais do que uma história sentimental. Trata-se da construção de uma alegoria da colonização do Brasil, em que a indígena representaria a nova terra fecundada pelo povo português e também o povo americano, que desapareceria depois de dar origem a um povo mestiço.
É certo que em Iracema Alencar pinta uma imagem do que teria sido a colonização do Brasil com as especificidades e limites do ponto de vista de um brasileiro do século XIX. No entanto, sua imagem da colonização não é tão idealizada quanto pretendem seus críticos. O caráter predador do europeu é enfatizado no romance, por exemplo, quando o velho Maranguab, homem sábio e experiente, ao morrer contemplando os amigos guerreiros Martim e Poti, não por acaso os denomina “gavião branco” e “narceja”, que, como o próprio Alencar explica em nota: o homem sábio denomina o guerreiro branco de gavião branco e o neto indígena de narceja profetizando nesse paralelo a destruição de sua raça pela raça branca. Nesse sentido, na economia do romance, a morte de Iracema, o nascimento de Moacir, a conversão de Poti e a derrota dos tabajaras (adversários dos portugueses) indicam o fim da cultura nativa com a chegada do colonizador.
Por outro lado, para Alencar, a construção das origens da nacionalidade literária e da especificidade da literatura brasileira em relação à portuguesa ou europeia não está na continuidade da tradição indígena, até porque para o autor, e outros pensadores da época, a extinção dos índios brasileiros era um fato consumado. O que o seu projeto literário preconiza é a reinvenção da tradição indígena com base na cultura do colonizador, ou seja, na cultura europeia. Assim, Alencar nunca defendeu que a cultura nacional seja idêntica à cultura indígena.
Para ele, como para os demais indianistas engajados no projeto de criação do imaginário e da literatura brasileira, o nacional resultaria da imitação do selvagem, da apropriação da sua mitologia, vocabulário e modos de dizer pelo homem civilizado. O conhecimento da língua indígena seria, portanto, o melhor critério para a nacionalidade da literatura, já que ofereceria não só o verdadeiro estilo, como as imagens poéticas do selvagem e os modos de expressão.
Por isso, na busca de um efeito de expressão primitiva, tipicamente indígena, Alencar cria uma poética fundada na concretude sensória em que se baseia no próprio modo de pensar e dizer indígena. Para isso, aproveita ao máximo da etimologia e da toponímia como, por exemplo, na criação do nome da protagonista do romance. Com base no sentido das palavras indígenas e na sua tradução para o português, Alencar cria Iracema, que em guarani significa lábios de mel – de ira, mel, e tembe, lábios, que em sua composição se torna ceme. Quanto aos modos de dizer, um dos traços marcantes do estilo criado por Alencar é a exclusão do pronome pessoal no caso dos sujeitos indígenas: Martim, guerreiro português, refere-se a si mesmo como eu, enquanto os indígenas falam de si mesmos na terceira pessoa. Falando com Martim, Iracema diz: “Que fez Iracema, para que o guerreiro branco desvie seus olhos, como se ela fora o verme da terra?”. Alencar também lança mão do uso recorrente de epítetos: “guerreiro branco”, “filha de Araquém”, “virgem dos tabajaras”, “virgem de Tupã” etc. – “A filha de Araquém é mais forte que o chefe dos guerreiros”, para conseguir o mesmo efeito.
Outro traço peculiar da invenção linguística alencariana em Iracema é o uso de perífrases (exposição de um tema de modo indireto), metáforas e comparações com base nos elementos da natureza brasileira. Entre os vários exemplos encontrados no livro está: “Que vale um guerreiro só contra mil guerreiros? Valente e forte é o tamanduá, que mordem os gatos selvagens por serem muitos e o acabam”. A aparência e os atos de Iracema e outros personagens também são tratados como uma extensão da paisagem tropical: “A luz da manhã já a encontrava suspensa ao ombro do esposo e sorrindo, como a enrediça que entrelaça o tronco robusto, e todas as manhãs o coroa de nova grinalda”.
Iracema tem como modelo os romances históricos europeus que buscam constituir o espírito ou gênio de um povo por meio da reconstrução poética do período de formação nacional. No caso do Brasil, esse período primitivo é o da colonização. Iracema representaria o momento inaugural, de primeiro contato entre o povo americano e o europeu, excluindo-se assim o negro africano.
Aclamado pelo público, embora muito criticado no século XIX – à exceção de poucos, como Machado de Assis, que desde sempre soube reconhecer seu valor e originalidade, no século XX, José de Alencar passou considerado o principal escritor do romantismo brasileiro. Subversivo da linguagem, revolucionário perigoso, poeta do romance... Sua obra lançou as bases de uma literatura nacional num combate poético pela liberdade de expressão de uma literatura, língua, história e nacionalidade brasileiras.
Sobre Iracema, a profecia de Machado de Assis, publicada numa resenha sobre o romance em 1866 no Diário do Rio de Janeiro, tornar-se-ia realidade: “o futuro chamar-lhe-á de obra-prima”.
Introdução
À
Terra Natal
Um filho ausente
Prólogo (da 1a edição)
Meu amigo.
Este livro o vai naturalmente encontrar em seu pitoresco sítio da várzea, no doce lar, a que povoa a numerosa prole, alegria e esperança do casal.
Imagino que é a hora mais ardente da sesta.
O sol a pino dardeja raios de fogo sobre as areias natais; as aves emudecem; as plantas languem. A natureza sofre a influência da poderosa irradiação tropical, que produz o diamante e o gênio, as duas mais brilhantes expansões do poder criador.
Os meninos brincam na sombra do outão, com pequenos ossos de reses, que figuram a boiada. Era assim que eu brincava, há quantos anos, em outro sítio, não mui distante do seu. A dona da casa, terna e incansável, manda abrir o coco verde, ou prepara o saboroso creme do buriti para refrigerar o esposo, que pouco há recolheu de sua excursão pelo sítio, e agora repousa embalando-se na macia e cômoda rede.
Abra então este livrinho, que lhe chega da corte imprevisto. Percorra suas páginas para desenfastiar o espírito das coisas graves que o trazem ocupado.
Talvez me desvaneça amor do ninho, ou se iludam as reminiscências da infância avivadas recentemente. Se não, creio que, ao abrir o pequeno volume, sentirá uma onda do mesmo aroma silvestre e bravio que lhe vem da várzea. Derrama-o, a brisa que perpassou os espatos da carnaúba e a ramagem das aroeiras em flor.
Essa onda é a inspiração da pátria que volve a ela, agora e sempre, como volve de contínuo o olhar do infante para o materno semblante que lhe sorri.
O livro é cearense.
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