Dize, e todos te obedecerão.
– Pajé, eu te agradeço o agasalho que me deste. Logo que o sol nascer, deixarei tua cabana e teus campos aonde vim perdido; mas não devo deixá-los sem dizer-te quem é o guerreiro, que fizeste amigo.
– Foi a Tupã que o Pajé serviu: ele te trouxe, ele te levará. Araquém nada fez pelo seu hóspede; não pergunta donde vem e quando vai. Se queres dormir, desçam sobre ti os sonhos alegres; se queres falar, teu hóspede escuta.
O estrangeiro disse:
– Sou dos guerreiros brancos, que levantaram a taba nas margens do Jaguaribe,IV perto do mar, onde habitam os pitiguaras,V inimigos de tua nação. Meu nome é Martim,VI que na tua língua quer dizer filho de guerreiro; meu sangue, o do grande povo que primeiro viu as terras de tua pátria. Já meus destroçados companheiros voltaram por mar às margens do Paraíba, de onde vieram; e o chefe, desamparado dos seus, atravessa agora os vastos sertões do Apodi. Só eu de tantos fiquei, porque estava entre os pitiguaras de Acaracu,VII na cabana do bravo Poti, irmão de Jacaúna, que plantou comigo a árvore da amizade. Há três sóis partimos para a caça; e perdido dos meus, vim aos campos dos tabajaras.
– Foi algum mau espírito da florestaVIII que cegou o guerreiro branco no escuro da mata: respondeu o ancião.
A cauã piou, além, na extrema do vale. Caía a noite.
IV
O Pajé vibrou o maracá e saiu da cabana, porém o estrangeiro não ficou só.
Iracema voltara com as mulheres chamadas para servir o hóspede de Araquém, e os guerreiros vindos para obedecer-lhe.
– Guerreiro branco, disse a virgem, o prazer embale tua rede durante a noite; e o sol traga luz a teus olhos, alegria à tua alma.
E assim dizendo, Iracema tinha o lábio trêmulo, e úmida a pálpebra.
– Tu me deixas? perguntou Martim.
– As mais belas mulheresI da grande taba contigo ficam.
– Para elas a filha de Araquém não devia ter conduzido o hóspede à cabana do Pajé.
– Estrangeiro, Iracema não pode ser tua serva. É ela que guarda o segredo da juremaII e o mistério do sonho. Sua mão fabrica para o Pajé a bebida de Tupã.
O guerreiro cristão atravessou a cabana e sumiu-se na treva.
A grande taba erguia-se no fundo do vale, iluminada pelos fachos da alegria. Rugia o maracá; ao quebro lento do canto selvagem, batia a dança em torno à rude cadência. O Pajé inspirado conduzia o sagrado tripúdio e dizia ao povo crente os segredos de Tupã.
O maior chefe da nação tabajara, IrapuãIII descera do alto da Serra Ibiapaba, para levar as tribos do sertão contra o inimigo pitiguara. Os guerreiros do vale festejam a vinda do chefe, e o próximo combate.
O mancebo cristão viu longe o clarão da festa; passou além e olhou o céu azul sem nuvens. A estrela mortaIV que então brilhava sobre a cúpula da floresta, guiou seu passo firme para as frescas margens do rio das garças.
Quando ele transmontou o vale e ia penetrar na mata, surgiu o vulto de Iracema. A virgem seguira o estrangeiro como a brisa sutil que resvala sem murmurejar por entre a ramagem.
– Por que, disse ela, o estrangeiro abandona a cabana hospedeira sem levar o presente da volta? Quem fez mal ao guerreiro branco na terra dos tabajaras?
O cristão sentiu quanto era justa a queixa; e achou-se ingrato.
– Ninguém fez mal ao teu hóspede, filha de Araquém. Era o desejo de ver seus amigos que o afastava dos campos dos tabajaras. Não levava o presente da volta; mas leva em sua alma a lembrança de Iracema.
– Se a lembrança de Iracema estivesse n’alma do estrangeiro, ela não o deixaria partir. O vento não leva a areia da várzea, quando a areia bebe a água da chuva.
A virgem suspirou:
– Guerreiro branco, espera que Caubi volte da caça. O irmão de Iracema tem o ouvido sutil que pressente a boiciningaV entre os rumores da mata; e o olhar do oitibóVI que vê melhor nas trevas. Ele te guiará às margens do rio das garças.
– Quanto tempo se passará antes que o irmão de Iracema esteja de volta na cabana de Araquém?
– O sol, que vai nascer, tornará com o guerreiro Caubi aos campos do Ipu.
– Teu hóspede espera, filha de Araquém; mas se o sol tornando não trouxer o irmão de Iracema, ele levará o guerreiro branco à taba dos pitiguaras.
Martim voltou à cabana do Pajé.
A alva rede, que Iracema perfumara com a resina do beijoim, guardava-lhe um sono calmo e doce.
O cristão adormeceu ouvindo suspirar entre os murmúrios da floresta, o canto mavioso da virgem indiana.
V
O galo da campina ergue a poupa escarlate fora do ninho.
Seu límpido trinado anuncia a aproximação do dia.
Ainda a sombra cobre a terra. Já o povo selvagem colhe as redes na grande taba e caminha para o banho. O velho Pajé, que velou toda a noite falando às estrelas, conjurando os maus espíritos das trevas,I entra furtivamente na cabana.
Eis retroa o boréII pela amplidão do vale.
Travam das armas os rápidos guerreiros, e correm ao campo. Quando foram todos na vasta ocaraIII circular, Irapuã, o chefe, soltou o grito de guerra:
– Tupã deu à grande nação tabajara toda esta terra. Nós guardamos as serras, donde manam os córregos, com os frescos ipus onde cresce a maniva e o algodão; e abandonamos ao bárbaro potiguara,IV comedor de camarão, as areias nuas do mar, com os secos tabuleiros sem água e sem florestas. Agora os pescadores da praia, sempre vencidos, deixam vir pelo mar a raça branca dos guerreiros de fogo, inimigos de Tupã. Já os emboabas estiveram no Jaguaribe; logo estarão em nossos campos; e com eles os potiguaras. Faremos nós, senhores das aldeias, como a pomba, que se encolhe em seu ninho, quando a serpente enrosca pelos galhos?
O irado chefe brande o tacape e o arremessa no meio do campo. Derrubando a fronte, cobre o rúbido olhar:
– Irapuã falou: disse.
O mais moço dos guerreiros avança:
– O gavião paira nos ares. Quando a nambu levanta, ele cai das nuvens e rasga as entranhas da vítima.
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