Uma sombra resvalava entre as ramas; e nas folhas crepitava um passo ligeiro, se não era o roer de algum inseto. A pouco e pouco o tênue rumor foi crescendo e a sombra avultou.
Era um guerreiro. De um salto a virgem estava em face dele, trêmula de susto e mais de cólera.
– Iracema! exclamou o guerreiro recuando.
– AnhangaII turbou sem dúvida o sono de Irapuã, que o trouxe perdido ao bosque da jurema, onde nenhum guerreiro penetra contra a vontade de Araquém.
– Não foi Anhanga, mas a lembrança de Iracema, que turbou o sono do primeiro guerreiro tabajara. Irapuã desceu do seu ninho de águia para seguir na várzea a garça do rio. Chegou, e Iracema fugiu de seus olhos. As vozes da taba contaram ao ouvido do chefe que um estrangeiro era vindo à cabana de Araquém.
A virgem estremeceu. O guerreiro cravou nela o olhar abrasado:
– O coração aqui no peito de Irapuã ficou tigre. Pulou de raiva. Veio farejando a presa. O estrangeiro está no bosque, e Iracema o acompanhava. Quero beber-lhe o sangue todo: quando o sangue do guerreiro branco correr nas veias do chefe tabajara, talvez o ame a filha de Araquém.
A pupila negra da virgem cintilou na treva, e de seu lábio borbulhou, como gotas do leite cáustico da eufórbia, um sorriso de desprezo:
– Nunca Iracema daria seu seio, que o espírito de Tupã habita só, ao guerreiro mais vil dos guerreiros tabajaras! Torpe é o morcego porque foge da luz e bebe o sangue da vítima adormecida!
– Filha de Araquém, não assanha o jaguar! O nome de Irapuã voa mais longe que o goaná do lago, quando sente a chuva além das serras. Que o guerreiro branco venha, e o seio de Iracema se abra para o vencedor.
– O guerreiro branco é hóspede de Araquém. A paz o trouxe aos campos de Ipu, a paz o guarda. Quem ofender o estrangeiro, ofende o Pajé.
Rugiu de sanha o chefe tabajara:
– A raiva de Irapuã só ouve agora o grito da vingança. O estrangeiro vai morrer.
– A filha de Araquém é mais forte que o chefe dos guerreiros, disse Iracema travando da inúbia. Ela tem aqui a voz de Tupã, que chama seu povo.
– Mas não chamará! respondeu o chefe escarnecendo.
– Não, porque Irapuã vai ser punido pela mão de Iracema. Seu primeiro passo é o passo da morte.
A virgem retraiu dum salto o avanço que tomara, e vibrou o arco. O chefe cerrou ainda o punho do formidável tacape; mas pela vez primeira sentiu que pesava ao braço robusto. O golpe que devia ferir Iracema, ainda não alçado, já lhe trespassava, a ele próprio, o coração.
Conheceu quanto o varão é forte, pela sua mesma fortaleza, mais cativo das grandes paixões.
– A sombra de Iracema não esconderá sempre o estrangeiro à vingança de Irapuã. Vil é o guerreiro, que se deixa proteger por uma mulher.
Dizendo estas palavras, o chefe desapareceu entre as árvores. A virgem sempre alerta, volveu para o cristão adormecido; e velou o resto da noite a seu lado. As emoções recentes, que agitaram sua alma, a abriram ainda mais à doce afeição, que iam filtrando nela os olhos do estrangeiro.
Desejava abrigá-lo contra todo o perigo, recolhê-lo em si como em um asilo impenetrável. Acompanhando o pensamento, seus braços cingiam a cabeça do guerreiro, e a apertavam ao seio.
Mas, quando passou a alegria de o ver salvo dos perigos da noite, entrou a mais viva inquietação, com a lembrança dos novos perigos que iam surgir.
– O amor de Iracema é como o vento dos areais; mata a flor das árvores: suspirou a virgem.
E afastou-se lentamente.
VIII
A alvorada abriu o dia e os olhos do guerreiro branco. A luz da manhã dissipou os sonhos da noite, e arrancou de sua alma a lembrança do que sonhara. Ficou apenas um vago sentir, como fica na mouta o perfume da flor que o vento da serra desfolha na madrugada.
Não sabia onde estava.
À saída do bosque sagrado encontrou Iracema: a virgem reclinava num tronco áspero do arvoredo; tinha os olhos no chão; o sangue fugira das faces; o coração lhe tremia nos lábios, como gota de orvalho nas folhas do bambu.
Não tinha sorrisos, nem cores, a virgem indiana; não tem borbulhas, nem rosas, a acácia que o sol crestou; não tem azul, nem estrelas, a noite que enlutam os ventos.
– As flores da mata já abriram aos raios do sol; as aves já cantaram: disse o guerreiro. Por que só Iracema curva a fronte e emudece?
A filha do Pajé estremeceu. Assim estremece a verde palma, quando a haste frágil foi abalada; rorejam do espato as lágrimas da chuva, e os leques ciciam brandamente.
– O guerreiro Caubi vai chegar à taba de seus irmãos. O estrangeiro poderá partir com o sol que vem nascendo.
– Iracema quer ver o estrangeiro fora dos campos dos tabajaras; então a alegria voltará a seu seio.
– A juruti, quando a árvore seca, foge do ninho em que nasceu. Nunca mais a alegria voltará ao seio de Iracema: ela vai ficar, como o tronco nu, sem ramas, nem sombras.
Martim amparou o corpo trêmulo da virgem; ela reclinou lânguida sobre o peito do guerreiro, como o tenro pâmpano da baunilha que enlaça o rijo galho do angico.
O mancebo murmurou:
– Teu hóspede fica, virgem dos olhos negros: ele fica para ver abrir em tuas faces a flor da alegria, e para sorver, como o colibri, o mel de teus lábios.
Iracema soltou-se dos braços do mancebo, e olhou-o com tristeza:
– Guerreiro branco, Iracema é filha do Pajé, e guarda o segredo da jurema. O guerreiro que possuísse a virgem de Tupã morreria.
– E Iracema?
– Pois que tu morrias!...
Esta palavra foi como um sopro de tormenta.
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