O guerreiro murmura, que o ouça a virgem e só ela:
– Escutou, Iracema, cantar a gaivota?
– Iracema escutou o grito de uma ave que ela não conhece.
– É a atiati, a garça do mar, e tu és a virgem da serra, que nunca desceu às alvas praias onde arrebentam as vagas.
– As praias são dos pitiguaras, senhores das palmeiras.
Os guerreiros da grande nação que habitava as bordas do mar se chamavam a si mesmos pitiguaras, senhores dos vales; mas os tabajaras, seus inimigos, por escárnio os apelidavam potiguaras, comedores de camarão.
Temeu Iracema ofender o guerreiro branco; por isso falando dos pitiguaras, não lhes recusou o nome guerreiro que eles haviam tomado para si.
O estrangeiro reteve por um instante a palavra no seu lábio prudente, enquanto refletia:
– O canto da gaivota é o grito de guerra do valente Poti, amigo de teu hóspede!
A virgem estremeceu por seus irmãos. A fama do bravo Poti, irmão de Jacaúna, subiu das ribeiras do mar ao cimo da Ibiapaba; rara é a cabana onde já não rugiu contra ele o grito de vingança, porque cada golpe do válido tacape deitou um guerreiro tabajara em seu camucim.
Cuidou Iracema que Poti vinha à frente de seus guerreiros para livrar o amigo. Era ele sem dúvida que fizera retroar o búzio das praias, no momento do combate. Foi com um tom misturado de doçura e tristeza que replicou:
– O estrangeiro está salvo; os irmãos de Iracema vão morrer, porque ela não falará.
– Despede essa tristeza de tua alma. O estrangeiro partindo-se de teus campos, virgem tabajara, não deixará neles rasto de sangue, como o tigre esfaimado.
Iracema tomou a mão do guerreiro branco e beijou-a.
– Teu sorriso, filha do Pajé, apagou a lembrança do mal que eles me querem.
Martim ergueu-se e caminhou para a porta.
– Aonde vai o guerreiro branco?
– Ao encontro de Poti.
– O hóspede de Araquém não pode sair desta cabana, porque os guerreiros de Irapuã o matarão.
– Um guerreiro só pede proteção a Deus e a suas armas. Não carece que o defendam os velhos e as mulheres.
– Que vale um guerreiro só contra mil guerreiros? Valente e forte é o tamanduá, que mordem os gatos selvagens por serem muitos e o acabam. Tuas armas só chegam até onde mede a sombra de teu corpo; as armas deles voam alto e direito como o anajê.
– Todo o guerreiro tem seu dia.
– Não queres tu que morra Iracema, e queres que ela te deixe morrer!
Martim ficou perplexo:
– Iracema irá ao encontro do chefe pitiguara e trará a seu hóspede as falas do guerreiro amigo.
Saiu enfim o Pajé de sua contemplação. O maracá rugiu-lhe na destra; tiniram os guizos com o passo hirto e lento.
Chamou ele a filha de parte:
– Se os guerreiros de Irapuã vierem contra a cabana, levanta a pedra e esconde o estrangeiro no seio da terra.
– O hóspede não deve ficar só; espere que volte Iracema. Ainda não cantou a inhuma.
Tornou a sentar-se na rede o velho. A virgem partiu, cerrando a porta da cabana.
XIII
Avança a filha de Araquém nas trevas; pára e escuta.
O grito da gaivota terceira vez ressoa a seu ouvido; vai direito ao lugar donde partiu; chega à borda de um tanque; seu olhar investiga a escuridão, e nada vê do que busca.
A voz maviosa, débil como sussurro de colibri, murmura:
– Guerreiro Poti, teu irmão branco te chama pela boca de Iracema.
Só o eco respondeu-lhe.
– A filha de teus inimigos vem a ti, porque o estrangeiro te ama, e ela ama o estrangeiro.
Fendeu-se a lisa face do lago; e um vulto se mostra, que nada para a margem, e surge fora.
– Foi Martim, quem te mandou, pois tu sabes o nome de Poti, seu irmão na guerra.
– Fala, chefe pitiguara; o guerreiro branco espera.
– Torna a ele e diz que Poti é chegado para o salvar.
– Ele sabe; e mandou-me a ti.
– As falas de Poti sairão de sua boca para o ouvido de seu irmão.
– Espera então que Araquém parta e a cabana fique deserta; eu te guiarei à presença do estrangeiro.
– Nunca, filha dos tabajaras, um guerreiro pitiguara passou a soleira da cabana inimiga, se não foi como vencedor. Conduz aqui o guerreiro do mar.
– A vingança de Irapuã fareja em roda da cabana de Araquém. Trouxe o irmão do estrangeiro bastantes guerreiros pitiguaras para o defender e salvar?
Poti refletiu:
– Conta, virgem das serras, o que sucedeu em teus campos depois que a eles chegou o guerreiro do mar.
Referiu Iracema como a cólera de Irapuã se havia assanhado contra o estrangeiro, até que a voz de Tupã, chamada pelo Pajé, tinha acalmado seu furor:
– A raiva de Irapuã é como a andira: foge da luz e voa nas trevas.
A mão de Poti cerrou súbito os lábios da virgem; sua fala parecia um sopro:
– Suspende a voz e o respiro, virgem das florestas; o ouvido inimigo escuta na sombra.
As folhas crepitavam de manso, como se por elas passasse a fragueira nambu. Um rumor, partido da orla da mata, vinha discorrendo pelo vale.
O valente Poti, resvalando pela relva, como o ligeiro camarão, de que ele tomara o nome e a viveza, desapareceu no lago profundo. A água não soltou um murmúrio, e cerrou sobre ele sua onda límpida.
Voltou Iracema à cabana; em meio do caminho perceberam seus olhos as sombras de muitos guerreiros que rojavam pelo chão como a intanha.
Vendo-a entrar, Araquém partiu.
A virgem tabajara contou a Martim o que ouvira de Poti; o guerreiro cristão ergueu-se de um ímpeto para correr em defesa de seu irmão pitiguara. Cingiu-lhe Iracema o colo com os lindos braços:
– O chefe não carece de ti; ele é filho das águas; as águas o protegem. Mais tarde o estrangeiro escutará as falas do amigo.
– Iracema, é tempo que teu hóspede deixe a cabana do Pajé e os campos dos tabajaras. Ele não tem medo dos guerreiros de Irapuã, tem medo dos olhos da virgem de Tupã.
– Estes fugirão de ti.
– Fuja deles o estrangeiro, como o oitibó da estrela da manhã.
Martim promoveu o passo.
– Vai, guerreiro ingrato; vai matar teu irmão primeiro, depois a ti. Iracema te seguirá até aos campos alegres onde vão as sombras dos que morrem.
– Matar meu irmão, dizes tu, virgem cruel.
– Teu rasto guiará o inimigo aonde se oculta o guerreiro do vale.
O cristão estacou em meio da cabana; e ali permaneceu mudo e quedo. Iracema, receosa de fitá-lo, punha os olhos na sombra do guerreiro, que a chama projetava na vetusta parede da cabana.
O cão felpudo, deitado no borralho, deu sinal de aproximar-se gente amiga. A porta entretecida dos talos da carnaúba foi aberta por fora. Caubi entrou.
– O cauim perturbou o espírito dos guerreiros; eles vêm contra o estrangeiro.
A virgem ergueu-se de um ímpeto:
– Levanta a pedra que fecha a garganta de Tupã, para que ela esconda o estrangeiro.
O guerreiro tabajara, sopesando a laje enorme, emborcou-a no chão.
– Filho de Araquém, deita-te na porta da cabana, e mais nunca te levantes da terra, se um guerreiro passar por cima de teu corpo.
Caubi obedeceu; a virgem cerrou a porta.
Decorreu breve trato. Ressoa perto o estrupido dos guerreiros; travam--se as vozes iradas de Irapuã e Caubi.
– Eles vêm; mas Tupã salvará seu hóspede.
Nesse instante, como se o deus do trovão ouvisse as palavras de sua virgem, o antro mudo em princípio, retroou surdamente.
– Ouve! É a voz de Tupã.
Iracema cerra a mão do guerreiro e o leva à borda do antro. Somem-se ambos nas entranhas da terra.
XIV
Os guerreiros tabajaras, excitados com as copiosas libações do espumante cauim, se inflamam à voz de Irapuã que tantas vezes os guiou ao combate, quantas à vitória.
Aplaca o vinho a sede do corpo, mas acende outra sede maior na alma feroz. Rugem vingança contra o estrangeiro audaz que afrontando suas armas, ofende o deus de seus pais, e o chefe da guerra, o primeiro varão tabajara.
Lá tripudiam de furor, e arremetem pelas sombras; a luz vermelha do ubiratã,I que brilha ao longe, os guia à cabana de Araquém. De espaço em espaço erguem-se do chão os que primeiro vieram para vigiar o inimigo.
– O Pajé está na floresta! murmuram eles.
– E o estrangeiro? pergunta Irapuã.
– Na cabana com Iracema.
Lança o grande chefe terrível salto; já é chegado à porta da cabana, e com ele seus valentes guerreiros.
O vulto de Caubi enche o vão da porta; suas armas guardam diante dele o espaço de um bote do maracajá.II
– Vis guerreiros são aqueles que atacam em bando como os caititus.III O jaguar,IV senhor da floresta, e o anajê,V senhor das nuvens, combatem só o inimigo.
– Morda o pó a boca torpe que levanta a voz contra o mais valente guerreiro dos guerreiros tabajaras.
Proferidas estas palavras, ergue o braço de Irapuã o rígido tacape, mas estaca no ar; as entranhas da terra outra vez rugem, como rugiram, quando Araquém acordou a voz tremenda de Tupã.
Levantam os guerreiros medonho alarido, e cercando seu chefe, o arrebatam ao funesto lugar e à cólera de Tupã, contra eles concitado.
Caubi estende-se de novo na soleira da porta; seus olhos adormecem; mas o ouvido sutil vela no sono.
Emudeceu a voz de Tupã.
Iracema e o cristão, perdidos nas entranhas da terra, descem a gruta profunda. Súbito, uma voz que vinha reboando pela crasta, encheu seus ouvidos:
– O guerreiro do mar escuta a fala de seu irmão?
– É Poti, o amigo de teu hóspede: disse o cristão para a virgem.
Iracema estremeceu:
– Ele fala pela boca de Tupã.
Martim respondeu enfim ao pitiguara.
– As falas de Poti entram n’alma de seu irmão.
– Nenhum outro ouvido escuta?
– Os da virgem que duas vezes em um sol defendeu a vida de teu irmão!
– A mulher é fraca; o tabajara traidor, e o irmão de Jacaúna prudente.
Iracema suspirou e pousou a cabeça no peito do mancebo:
– Senhor de Iracema, cerra seus ouvidos para que ela não ouça.
Martim repeliu docemente a gentil fronte:
– Fale o chefe pitiguara; só o escutam ouvidos amigos e fiéis.
– Tu ordenas, Poti fala. Antes que o sol se levante na serra, o guerreiro do mar deve partir para as margens do ninho das garças; a estrela morta o guiará. Nenhum tabajara o seguirá, porque a inúbia dos pitiguaras rugirá da banda da serra.
– Quantos guerreiros pitiguaras acompanham seu chefe valente?
– Nenhum; Poti veio só. Quando os espíritos maus das florestas separaram o guerreiro do mar de seu irmão, Poti veio em seguimento do rasto. Seu coração não deixou que voltasse para chamar os guerreiros de sua taba; mas despediu o cão fiel ao grande Jacaúna.
– O chefe pitiguara está só; não deve rugir a inúbia que chamará contra si todos os guerreiros tabajaras.
– Assim é preciso para salvar o irmão branco; Poti zombará de Irapuã, como zombou quando combatiam cem contra ti.
A filha do Pajé que ouvira calada, debruçou-se ao ouvido do cristão:
– Iracema quer te salvar e a teu irmão; ela tem seu pensamento.
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