Também não! Irra, cabeçudos! Era um judeu e dos piores... Ora diz que, lá num sítio muito feio da Judéia, há uma árvore toda de espinhos, que é mesmo de arrepiar...
A sineta do recreio tocava; todos, a um tempo e de estalo, fechávamos a cartilha.
O tristonho pátio de recreio, areado com saibro, cheirava mal por causa da vizinhança das latrinas; e o regalo para os mais crescidos era tirar uma fumaça do cigarro, às escondidas, numa sala térrea onde aos domingos o mestre de dança, o velho Cavinetti, frisado e de sapatinhos decotados, nos ensinava mazurcas.
Cada mês a Vicência, de capote e lenço, me vinha buscar depois da missa para ir passar um domingo com a Titi. Isidoro Júnior, antes de eu sair, examinava-me sempre os ouvidos e as unhas; muitas vezes, mesmo na bacia dele, dava-me uma ensaboada furiosa, chamando-me baixo sebento. Depois trazia-me até à porta, fazia-me uma carícia, tratava-me de seu querido amiguinho, e mandava pela Vicência os seus respeitos à senhora D. Patrocínio das Neves.
Nós morávamos no Campo de Santana. Ao descer o Chiado, eu parava numa loja de estampas, diante do lânguido de uma mulher loura, com peitos nus, recostada numa pele de tigre, e sustentando na ponta dos dedos, mais finos que os do Crispim, um pesado fio de pérolas. A claridade daquela nudez fazia-me pensar na inglesa do senhor barão; e esse aroma, que tanto me perturbara no corredor da estalagem, respirava-o outra vez, finamente espalhado, na rua feita de sol, pelas sedas das senhoras que subiam para a missa do Loreto, espartilhadas e graves.
A Titi, em casa, estendia-me a mão a beijar; e toda a manhã eu ficava folheando volumes do Panorama Universal, na saleta dela, onde havia um sofá de riscadinho, um armário rico de pau preto, e litografias coloridas, com ternas passagens da vida puríssima do seu favorito santo, o patriarca São José. A Titi, de lenço roxo carregado para a testa, sentada à janela por dentro dos vidros, com os pés embrulhados numa manta, examinava solicitamente um grande caderno de contas.
Às três horas enrolava o caderno; e de dentro da sombra do lenço, começava a perguntar-me doutrina. Dizendo o Credo, desfiando os Mandamentos, com os olhos baixos, eu sentia o seu cheiro acre e adocicado a rapé e a formiga.
Aos domingos vinham jantar conosco os dous eclesiásticos. O de cabelinho encaracolado era o Padre Casimiro, procurador da Titi; dava-me abraços risonhos; convidava-me a declinar arbor, arboris; currus, curri; proclamava-me com afeto “talentaço”. E o outro eclesiástico elogiava o colégio dos Isidoros, formosíssimo estabelecimento de educação, como não havia nem na Bélgica. Esse chamava-se Padre Pinheiro. Cada vez me parecia mais moreno, mais triste.
Sempre que passava por diante de um espelho, deitava a língua de fora, e ali se esquecia a esticá-la, a estudá-la, desconfiado e aterrado.
Ao jantar o Padre Casimiro gostava de ver o meu apetite.
- Vai mais um bocadinho de vitelinha guisada? Rapazes querem-se alegres e bem comidos! ...
E Padre Pinheiro, palpando o estômago:
- Felizes idades! Felizes idades em que se repete a vitela!
Ele e a Titi falavam então de doenças. Padre Casimiro, coradinho, com o guardanapo atado ao pescoço, o prato cheio o copo cheio, sorria beatificamente.
Quando, na praça, entre as árvores, começavam a luzir os candeeiros de gás, a Vicência punha o seu xale velho de xadrez e ia levar-me ao colégio. A essa hora, nos domingos, chegava o sujeitinho de cara rapada e vastos colarinhos, que era o Senhor José Justino, secretário da confraria de São José, e tabelião da Titi, com cartório a São Paulo . No pátio, tirando já o seu paletó, fazia-me uma festa no queixo, e perguntava à Vicência pela saúde da senhora a D.
Patrocínio. Subia; nós fechávamos o pesado portão.
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