Aos domingos continuavam as partidas. O Padre Pinheiro, rnais triste, queixava-se agora do coração, e um pouco também da bexiga. E havia outro comensal, velho amigo do Comendador Godinho, fiel visita das Neves, o Margaride, o que fora delegado em Viana, depois juiz em Mangualde. Pico por morte de seu mano Abel, secretário da Câmara Patriarcal, o doutor aposentara-se, farto dos autos, e vivia em ócio, lendo os periódicos, num prédio seu na Praça da Figueira. Como conhecera o papá, e muitas vezes o acompanhara ao Mosteiro, tratou-me logo com autoridade e por você.
Era um homem corpulento e solene, já calvo, com um carão lívido, onde desatacavam as sobrancelhas cerradas, densas e negras como carvão. Raras vezes penetrava na sala da Titi sem atirar, logo da porta, uma notícia pavorosa. “então, não sabem? Um incêndio medonho, na Baixa!” Apenas uma fumaraça numa chaminé. Mas o bom Margaride, em novo, num sombrio acesso de imaginação, compusera duas tragédias; e dai lhe ficara este gosto mórbido de exagerar e de impressionar. “Ninguém como eu, dizia ele, saboreia o grandioso...” E, sempre que aterrava a Titi e os sacerdotes, sorvia gravemente uma pitada.
Eu gostava do Doutor Margaride. Camarada do papá em Viana, muitas vezes lhe ouvira cantar, ao violão, a xácara do Conde Ordonho. Tardes inteiras vagueara com de poeticamente, pela beira da água, no Mosteiro, quando a mamã fazia raminhos silvestres à sombra dos amieiros. E mandou-me as amêndoas mal eu nasci, à noitinha, em sexta-feira da Paixão. Além disso, mesmo na minha presença ele gabava francamente à Titi o meu intelecto, e a circunspecção dos meus modos.
- O nosso Teodorico, D. Patrocínio, é moco para deleitar uma tia... Vossa Excelência, minha rica senhora, tem aqui um Telêmaco!
Eu corava, modesto.
Ora, foi justamente passeando com ele no Rossio, num dia de agosto, que eu conheci um parente nosso, afastado, primo do Comendador G. Godinho. O Doutor Margaride apresentou-mo, dizendo apenas: - “o Xavier, teu primo, moço de grandes dotes”. Era um homem enxovalhado, de bigode louro, que fora galante e desbaratara furiosamente trinta contos, herdados de seu pai, dono de uma cordoaria em Alcântara. O Comendador G. Godinho, meses antes de morrer da sua pneumonia, tinha-o recolhido por caridade à Secretaria da Justiça, com vinte mil-réis por mês. E
o Xavier agora vivia com uma espanhola chamada Cármen, e três filhos dela, num casebre da Rua da Fé.
Eu fui lá num domingo. Quase não havia móveis; a bacia da cara, a única, estava entalada no fundo roto da palhinha de uma cadeira. O Xavier toda a manhã deitara escarros de sangue pela boca. E a Cármen, despenteada, em chinelas, arrastando uma bata de fustão manchada de vinho, embalava sorumbaticamente pelo quarto uma criança embrulhada num trapo e com a cabecinha coberta de feridas.
Imediatamente o Xavier, tratando-me por tu, faiou-me da tia Patrocínio...
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