83

 

"E também, porque a santa Providência,

Que em Júpiter aqui se representa,

Por espíritos mil que têm prudência

Governa o Mundo todo que sustenta

(Ensina-lo a profética ciência,

Em muitos dos exemplos que apresenta);

Os que são bons, guiando, favorecem,

Os maus, em quanto podem, nos empecem;

 

84

 

"Quer logo aqui a pintura que varia

Agora deleitando, ora ensinando,

Dar-lhe nomes que a antiga Poesia

A seus Deuses já dera, fabulando;

Que os Anjos de celeste companhia

Deuses o sacro verso está chamando,

Nem nega que esse nome preminente

Também aos maus se dá, mas falsamente.

 

85

 

"Enfim que o Sumo Deus, que por segundas

Causas obra no Mundo, tudo manda.

E tornando a contar-te das profundas

Obras da Mão Divina veneranda,

Debaxo deste círculo onde as mundas

Almas divinas gozam, que não anda,

Outro corre, tão leve e tão ligeiro

Que não se enxerga: é o Móbile primeiro.

 

86

 

"Com este rapto e grande movimento

Vão todos os que dentro tem no seio;

Por obra deste, o Sol, andando a tento,

O dia e noite faz, com curso alheio.

Debaxo deste leve, anda outro lento,

Tão lento e sojugado a duro freio,

Que enquanto Febo, de luz nunca escasso,

Duzentos cursos faz, dá ele um passo.

 

87

 

"Olha estoutro debaxo, que esmaltado

De corpos lisos anda e radiantes,

Que também nele tem curso ordenado

E nos seus axes correm cintilantes.

Bem vês como se veste e faz ornado

Co largo Cinto d, ouro, que estelantes

Animais doze traz afigurados,

Apousentos de Febo limitados.

 

88

 

"Olha por outras partes a pintura

Que as Estrelas fulgentes vão fazendo:

Olha a Carreta, atenta a Cinosura,

Andrómeda e seu pai, e o Drago horrendo;

Vê de Cassiopeia a fermosura

E do Orionte o gesto turbulento;

Olha o Cisne morrendo que suspira,

A Lebre e os Cães, a Nau e a doce Lira.

 

89

 

"Debaxo deste grande Firmamento,

Vês o céu de Saturno, Deus antigo;

Júpiter logo faz o movimento,

E Marte abaxo, bélico inimigo;

O claro Olho do céu, no quarto assento,

E Vénus, que os amores traz consigo;

Mercúrio, de eloquência soberana;

Com três rostos, debaxo vai Diana.

 

90

 

"Em todos estes orbes, diferente

Curso verás, nuns grave e noutros leve;

Ora fogem do Centro longamente,

Ora da Terra estão caminho breve,

Bem como quis o Padre omnipotente,

Que o fogo fez e o ar, o vento e neve,

Os quais verás que jazem mais a dentro

E tem co Mar a Terra por seu centro.

 

91

 

"Neste centro, pousada dos humanos,

Que não somente, ousados, se contentam

De sofrerem da terra firme os danos,

Mas inda o mar instábil exprimentam,

Verás as várias partes, que os insanos

Mares dividem, onde se apousentam

Várias nações que mandam vários Reis,

Vários costumes seus e várias leis.

 

92

 

"Vês Europa Cristã, mais alta e clara

Que as outras em polícia e fortaleza.

Vês África, dos bens do mundo avara,

Inculta e toda cheia de bruteza;

Co Cabo que até'aqui se vos negara,

Que assentou pera o Austro a Natureza.

Olha essa terra toda, que se habita

Dessa gente sem Lei, quási infinita.

 

93

 

"Vê do Benomotapa o grande império,

De selvática gente, negra e nua,

Onde Gonçalo morte e vitupério

Padecerá, pola Fé santa sua.

Nace por este incógnito Hemispério

O metal por que mais a gente sua.

Vê que do lago donde se derrama

O Nilo, também vindo está Cuama.

 

94

 

"Olha as casas dos negros, como estão

Sem portas, confiados, em seus ninhos,

Na justiça real e defensão

E na fidelidade dos vizinhos;

Olha deles a bruta multidão,

Qual bando espesso e negro de estorninhos,

Combaterá em Sofala a fortaleza, Que

defenderá Nhaia com destreza.

 

95

 

"Olha lá as alagoas donde o Nilo

Nace, que não souberam os antigos;

Vê-lo rega, gerando o crocodilo,

Os povos Abassis, de Crista amigos;

Olha como sem muros (novo estilo)

Se defendem milhor dos inimigos;

Vê Méroe, que ilha foi de antiga fama,

Que ora dos naturais Nobá se chama.

 

96

 

"Nesta remota terra um filho teu

Nas armas contra os Turcos será claro;

Há-de ser Dom Cristóvão o nome seu;

Mas contra o fim fatal não há reparo.

Vê cá a costa do mar, onde te deu

Melinde hospício gasalhoso e caro;

O Rapto rio nota, que o romance

Da terra chama Obi; entra em Quilmance.

 

97

 

"O Cabo vê já Arómata chamado,

E agora Guardafú, dos moradores,

Onde começa a boca do afamado

Mar Roxo, que do fundo toma as cores;

Este como limite está lançado

Que divide Asia de Africa; e as milhores

Povoações que a parte Africa tem

Maçuá são, Arquico e Suaquém.

 

98

 

"Vês o extremo Suez, que antigamente

Dizem que foi dos Héroas a cidade

(Outros dizem que Arsínoe), e ao presente

Tem das frotas do Egipto a potestade.

Olha as águas nas quais abriu patente

Estrada o grão Mousés na antiga idade.

Ásia começa aqui, que se apresenta

Em terras grande, em reinos opulenta.

 

99

 

"Olha o monte Sinai, que se ennobrece

Co sepulcro de Santa Caterina;

Olha Toro e Gidá, que lhe falece

Água das fontes, doce e cristalina;

Olha as portas do Estreito, que fenece

No reino da seca Ádem, que confina

Com a serra d'Arzira, pedra viva,

Onde chuva dos céus se não deriva.

 

100

 

"Olha as Arábias três, que tanta terra

Tomam, todas da gente vaga e baça,

Donde vêm os cavalos pera a guerra,

Ligeiros e feroces, de alta raça;

Olha a costa que corrre, até que cera

Outro Estreito de Pérsia, e faz a traça

O Cabo que co nome se apelida

Da cidade Fartaque, ali sabida.

 

101

 

"Olha Dófar, insigne porque manda

O mais cheiroso incenso pera as aras;

Mas atenta: já cá destoutra banda

De Roçalgate, e praias sempre avaras,

Começa o reino Ormuz, que todo se anda

Pelas ribeiras que inda serão claras

Quando as galés do Turco e fera armada

Virem de Castelbranco nua a espada.

 

102

 

"Olha o Cabo Asaboro, que chamado

Agora é Moçandão, dos navegantes;

Por aqui entra o lago que é fechado

De Arábia e Pérsias terras abundantes.

Atenta a ilha Barém, que o fundo ornado

Tem das suas perlas ricas, e imitantes

A cor da Aurora; e vê na água salgada

Ter o Tígris e Eufrates üa entrada.

 

103

 

"Olha da grande Pérsia o império nobre,

Sempre posto no campo e nos cavalos,

Que se injuria de usar fundido cobre

E de não ter das armas sempre os calos.

Mas vê a ilha Gerum, como descobre

O que fazem do tempo os intervalos,

Que da cidade Armuza, que ali esteve,

Ela o nome despois e a glória teve.

 

104

 

"Aqui de Dom Filipe de Meneses

Se mostrará a virtude, em armas clara,

Quando, com muito poucos Portugueses,

Os muitos Párseos vencerá de Lara.

Virão provar os golpes e reveses

De Dom Pedro de Sousa, que provara

Já seu braço em Ampaza, que deixada

Terá por terra, à força só de espada.

 

105

 

"Mas deixemos o Estreito e o conhecido

Cabo de Jasque, dito já Carpela,

Com todo o seu terreno mal querido

Da Natura e dos dões usados dela;

Carmânia teve já por apelido.

Mas vês o fermoso Indo, que daquela

Altura nace, junto à qual, também

Doutra altura correndo o Gange vem?

 

106

 

"Olha a terra de Ulcinde, fertilíssima,

E de Jáquete a íntima enseada;

Do mar a enchente súbita, grandíssima,

E a vazante, que foge apressurada.

A terra de Cambaia vê, riquíssima,

Onde do mar o seio faz entrada;

Cidades outras mil, que vou passando,

A vós outros aqui se estão guardando.

 

107

 

"Vês corre a costa célebre Indiana

Pera o Sul, até o Cabo Comori,

Já chamado Cori, que Taprobana

(Que ora é Ceilão) defronte tem de si.

Por este mar a gente Lusitana,

Que com armas virá despois de ti,

Terá vitórias, terras e cidades,

Nas quais hão-de viver muitas idades.

 

108

 

"As províncias que entre um e o outro rio

Vês, com várias nações, são infinitas:

Um reino Mahometa, outro Gentio,

A quem tem o Demónio leis escritas.

Olha que de Narsinga o senhorio

Tem as relíquias santas e benditas

Do corpo de Tomé, barão sagrado,

Que a Jesu Cristo teve a mão no lado.

 

109

 

"Aqui a cidade foi que se chamava

Meliapor, fermosa, grande e rica;

Os Ídolos antigos adorava

Como inda agora faz a gente inica.

Longe do mar naquele tempo estava,

Quando a Fé, que no mundo se pubrica,

Tomé vinha prègando, e já passara

Províncias mil do mundo, que ensinara.

 

110

 

"Chegado aqui, pregando e junto dando

A doentes saúde, a mortos vida,

Acaso traz um dia o mar, vagando,

Um lenho de grandeza desmedida.

Deseja o Rei, que andava edificando,

Fazer dele madeira; e não duvida

Poder tirá-lo a terra, com possantes

Forças d' homens, de engenhos, de alifantes.

 

111

 

"Era tão grande o peso do madeiro

Que, só pera abalar-se, nada abasta;

Mas o núncio de Cristo verdadeiro

Menos trabalho em tal negócio gasta:

Ata o cordão que traz, por derradeiro,

No tronco, e fàcilmente o leva e arrasta

Pera onde faça um sumptuoso templo

Que ficasse aos futuros por exemplo.

 

112

 

"Sabia bem que se com fé formada

Mandar a um monte surdo que se mova,

Que obedecerá logo à voz sagrada,

Que assi lho ensinou Cristo, e ele o prova.

A gente ficou disto alvoraçada;

Os Brâmenes o têm por cousa nova;

Vendo os milagres, vendo a santidade,

Hão medo de perder autoridade.

 

113

 

"São estes sacerdotes dos Gentios

Em quem mais penetrado tinha enveja;

Buscam maneiras mil, buscam desvios,

Com que Tomé não se ouça, ou morto seja.

O principal, que ao peito traz os fios,

Um caso horrendo faz, que o mundo veja

Que inimiga não há, tão dura e fera,

Como a virtude falsa, da sincera.

 

114

 

"Um filho próprio mata, e logo acusa

De homicídio Tomé, que era inocente;

Dá falsas testemunhas, como se usa;

Condenaram-no a morte brevemente.

O Santo, que não vê milhor escusa

Que apelar pera o Padre omnipotente,

Quer, diante do Rei e dos senhores,

Que se faça um milagre dos maiores.

 

115

 

"O corpo morto manda ser trazido,

Que res[s]ucite e seja perguntado

Quem foi seu matador, e será crido

Por testemunho, o seu, mais aprovado.

Viram todos o moço vivo, erguido,

Em nome de Jesu crucificado:

Dá graças a Tomé, que lhe deu vida,

E descobre seu pai ser homicida.