3

 

Mas vendo o Capitão que se detinha

Já mais do que devia, e o fresco vento

O convida que parta e tome asinha

Os pilotos da terra e mantimento,

Não se quer mais deter, que ainda tinha

Muito para cortar do salso argento;

Já do Pagão benigno se despede,

Que a todos amizade longa pede.

 

4

 

Pede-lhe mais que aquele porto seja

Sempre com suas frotas visitado,

Que nenhum outro bem maior deseja,

Que dar a tais barões seu reino e estado;

E que enquanto seu corpo o espírito reja,

Estará de contino aparelhado

A pôr a vida e reino totalmente

Por tão bom Rei, por tão sublime gente.

 

5

 

Outras palavras tais lhe respondia

O Capitão, o logo as velas dando,

Para as terras da Aurora se partia,

Que tanto tempo há já que vai buscando.

No piloto que leva não havia

Falsidade, mas antes vai mostrando

A navegação certa, e assim caminha

Já mais seguro do que dantes vinha.

 

6

 

As ondas navegavam do Oriente

Já nos mares da Índia, e enxergavam

Os tálamos do Sol, que nasce ardente;

Já quase seus desejos se acabavam.

Mas o mau de Tioneu, que na alma sente

As venturas, que então se aparelhavam

A gente Lusitana, delas dina,

Arde, morre, blasfema e desatina.

 

7

 

Via estar todo o Céu determinado

De fazer de Lisboa nova Roma;

Não no pode estorvar, que destinado

Está doutro poder que tudo doma.

Do Olimpo desce enfim desesperado;

Novo remédio em terra busca e toma:

Entra no úmido reino, e vai-se à corte

Daquele a quem o mar caiu em sorte.

 

8

 

No mais interno fundo das profundas

Cavernas altas, onde o mar se esconde,

Lá donde as ondas saem furibundas,

Quando às iras do vento o mar responde,

Netuno mora, e moram as jocundas

Nereidas, e outros Deuses do mar, onde

As águas campo deixam às cidades,

Que habitam estas úmidas deidades.

 

9

 

Descobre o fundo nunca descoberto

Das areias ali de prata fina;

Torres altas se vêem no campo aberto

Da transparente massa cristalina:

Quanto se chegam mais os olhos perto,

Tanto menos a vista determina

Se é cristal o que vê, se diamante,

Que assim se mostra claro e radiante.

 

10

 

As portas douro fino, e marchetadas

Do rico aljôfar que nas conchas nasce,

De escultura formosa estão lavradas,

Na qual o irado Baco a vista pasce;

E vê primeiro em cores variadas

Do velho Caos a tão confusa face;

Vêem-se os quatro elementos trasladados

Em diversos ofícios ocupados.

 

11

 

Ali sublime o Fogo estava em cima,

Que em nenhuma matéria se sustinha;

Daqui as coisas vivas sempre anima,

Depois que Prometeu furtado o tinha.

Logo após ele leve se sublima

O invisível Ar, que mais asinha

Tomou lugar, e nem por quente ou f rio,

Algum deixa no mundo estar vazio.

 

12

 

Estava a terra em montes revestida

De verdes ervas, e árvores floridas,

Dando pasto diverso e dando vida

As alimárias nela produzidas.

A clara forma ali estava esculpida

Das águas entre a terra desparzidas,

De pescados criando vários modos,

Com seu humor mantendo os corpos todos.

 

13

 

Noutra parte esculpida estava a guerra,

Que tiveram os Deuses com os Gigantes;

Está Tifeu debaixo da alta serra

De Etna, que as flamas lança crepitantes;

Esculpido se vê ferindo a terra

Netuno, quando as gentes ignorantes

Dele o cavalo houveram, e a primeira

De Minerva pacífica oliveira.

 

14

 

Pouca tardança faz Lieu irado

Na vista destas coisas, mas entrando

Nos paços de Netuno, que avisado

Da vinda sua, o estava já aguardando,

As portas o recebe, acompanhado

Das Ninfas, que se estão maravilhando

De ver que, cometendo tal caminho,

Entre no reino d'água o Rei do vinho.

 

15

 

"Ó Netuno, lhe disse, não te espantes

De Baco nos teus reinos receberes,

Porque também com os grandes e possantes

Mostra a Fortuna injusta seus poderes.

Manda chamar os Deuses do mar, antes

Que fale mais, se ouvir-me o mais quiseres;

Verão da desventura grandes modos:

Ouçam todos o mal, que toca a todos."

 

16

 

Julgando já Netuno que seria

Estranho caso aquele, logo manda

Tritão, que chame os Deuses da água fria,

Que o mar habitam duma e doutra banda.

Tritão, que de ser filho se gloria

Do Rei e de Salácia veneranda,

Era mancebo grande, negro e feio,

Trombeta de seu pai, e seu correio.

 

17

 

Os cabelos da barba, e os que descem

Da cabeça nos ombros, todos eram

Uns limos prenhes d'água, e bem parecem

Que nunca brando pentem conheceram;

Nas pontas pendurados não falecem

Os negros misilhões, que ali se geram,

Na cabeça por gorra tinha posta

Uma muito grande casca de lagosta.

 

18

 

O corpo nu, e os membros genitais,

Por não ter ao nadar impedimento,

Mas porém de pequenos animais

Do mar todos cobertos cento e cento:

Camarões e cangrejos, e outros mais

Que recebem de Febe crescimento,

Ostras, e camarões do musgo sujos,

As costas com a casca os caramujos.

 

19

 

Na mão a grande concha retorcida

Que trazia, com força, já tocava;

A voz grande canora foi ouvida

Por todo o mar, que longe retumbava.

Já toda a companhia apercebida

Dos Deuses para os paços caminhava

Do Deus, que fez os muros de Dardânia,

Destruídos depois da Grega insânia.

 

20

 

Vinha o padre Oceano acompanhado

Dos filhos e das filhas que gerara;

Vem Nereu, que com Dóris foi casado,

Que todo o mar de Ninfas povoara;

O profeta Proteu, deixando o gado

Marítimo pascer pela água amara,

Ali veio também, mas já sabia

O que o padre Lieu no mar queria.

 

21

 

Vinha por outra parte a linda esposa

De Netuno, de Celo e Vesta filha,

Grave e Ieda no gesto, e tão formosa

Que se amansava o mar de maravilha.

Vestida uma camisa preciosa

Trazia de delgada beatilha,

Que o corpo cristalino deixa ver-se,

Que tanto bem não é para esconder-se.

 

22

 

Anfitrite, formosa como as flores,

Neste caso não quis que falecesse;

O Delfim traz consigo, que aos amores

Do Rei lhe aconselhou que obedecesse.

Com os olhos, que de tudo são senhores,

Qualquer parecerá que o Sol vencesse:

Ambas vêm pela mão, igual partido,

Pois ambas são esposas dum marido.

 

23

 

Aquela que das fúrias de Atamante

Fugindo, veio a ter divino estado,

Consigo traz o filho, belo Infante,

No número dos Deuses relatado.