Sua obra-prima, Marília de Dirceu, divide-se em duas partes. Escrita antes da prisão do poeta inconfidente, na primeira parte, Dirceu canta a ventura, a fidelidade ao amor e se mostra pleno de esperança, fazendo projetos amorosos e evocando o ideal de vida burguês. A segunda parte é posterior à sua prisão. Nela, o poeta retrata uma realidade dura, e se mostra amargurado pela ignorância e pela injustiça dos homens.

Os poemas de Gonzaga são simples e diretos embora cheios de referências mitológicas e clássicas: entre os principais objetivos dos árcades está a abolição dos padrões barrocos, daí comporem poesias com simplicidade e com o bom gosto renascentista. Seus autores retomam o passado, pois reconhecem na Antiguidade o berço dos princípios perfeitos. Como aderem ao Classicismo, sua poesia também é conhecida como poesia neoclássica.

É sobretudo na Arcádia que esses poetas buscam sua inspiração. Daí a preferência pelo pastoralismo, que preconiza a elevação do homem em contato com a natureza ao evitar o contágio e a degradação com as pressões sociais. Disso decorre o bucolismo, o cultivo de valores campestres, que exalta a pureza, a ingenuidade e a beleza. Na lírica gonzaguiana, esse sentimento idílico e contemplativo tem como pano de fundo o lócus amoenus da poesia pastoril, o bucolismo herdado de Teócrito, Virgílio, Tasso e outros autores antigos, que são frequentemente citados e parafraseados pelos poetas árcades.

Com exceção de Luís de Camões, nenhum outro poeta da língua portuguesa foi tão repetidamente publicado quanto Gonzaga: entre 1792 e 1930 surgiram nada menos do que 47 edições de Marília de Dirceu. Este também foi o primeiro livro de poesia brasileira a ser traduzido para o francês.

Se o mundo greco-romano é a inspiração básica do lirismo árcade, no entanto, o tom confessional e o sentimento nativista já prefiguram alguns temas e formas posteriormente desenvolvidas no Romantismo. As alusões mitológicas construídas por Gonzaga revelam uma pulsação erótica e um tom lírico que superam o formalismo árcade, fazendo com que sua obra seja considerada precursora do confessionalismo ególatra e melancólico dos românticos.

Além de Marília de Dirceu, como vimos, Gonzaga escreveu o Tratado de direito natural. Também é indicado pelos críticos literários como autor das Cartas chilenas, um poema satírico provavelmente escrito entre 1787 e 1788. As Cartas, que o autor escreve sob o pseudônimo de Critilo e as endereça a Doroteu (presumivelmente, o poeta Cláudio Manuel da Costa), discorrem sobre um tal Fanfarrão Minésio, governador do Chile (provavelmente, o governador Luís da Cunha Meneses), ironizando a mediocridade administrativa de Portugal ao narrar os acontecimentos políticos da época. Nessas treze cartas, Gonzaga compõe uma crônica contundente de Minas Gerais (Chile) e de sua capital, Vila Rica (Santiago).

Além de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), os principais representantes da poesia lírica brasileira são Cláudio Manuel da Costa (1729-1789) e Manuel Inácio Silva Alvarenga (1749-1814).

Parte I

Lira I

Eu, Marília,[1] não sou algum vaqueiro,

Que viva de guardar alheio gado;

De tosco trato, de expressões grosseiro,

Dos frios gelos e dos sóis queimado.

Tenho próprio casal[2] e nele assisto;

Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;

Das brancas ovelhinhas tiro o leite

E mais as finas lãs de que me visto.

Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela![3] 

Eu vi o meu semblante numa fonte,

Dos anos inda não está cortado;[4] 

Os Pastores, que habitam este monte,[5] 

Respeitam o poder de meu cajado.

Com tal destreza toco a sanfoninha,[6] 

Que inveja até me tem o próprio Alceste:[7]

Ao som dela concerto a voz celeste;

Nem canto letra que não seja minha.

Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela!

Mas tendo tantos dotes da ventura,

Só apreço lhes dou, gentil Pastora,

Depois que teu afeto me segura,

Que queres do que tenho ser Senhora.

É bom, minha Marília, é bom ser dono

De um rebanho, que cubra monte e prado;

Porém, gentil Pastora, o teu agrado

Vale mais que um rebanho e mais que um trono.

Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela!

Os teus olhos espalham luz divina,

A quem a luz do Sol em vão se atreve;[8] 

Papoula ou rosa delicada e fina

Te cobre as faces, que são cor da neve.

Os teus cabelos são uns fios d’ouro;

Teu lindo corpo bálsamos vapora.

Ah! não, não fez o Céu, gentil Pastora,

Para glória de Amor igual Tesouro.

Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela!

Leve-me a sementeira muito embora

O rio sobre os campos levantado;

Acabe, acabe a peste matadora,

Sem deixar uma rês,[9] o nédio[10] gado.

Já destes bens, Marília, não preciso;

Nem me cega a paixão, que o mundo arrasta;

Para viver feliz, Marília, basta

Que os olhos movas e me dês um riso.

Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela!

Irás a divertir-te na floresta,

Sustentada, Marília, no meu braço;

Aqui descansarei a quente sesta,

Dormindo um leve sono em teu regaço;

Enquanto a luta jogam os Pastores,

E emparelhados correm nas campinas,

Toucarei teus cabelos de boninas,[11] 

Nos troncos gravarei os teus louvores.

Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela!

Depois que nos ferir a mão da Morte,

Ou seja neste monte ou noutra serra,

Nossos corpos terão, terão a sorte

De consumir os dois a mesma terra.

Na campa, rodeada de ciprestes,

Lerão estas palavras os Pastores:

“Quem quiser ser feliz nos seus amores,

Siga os exemplos que nos deram estes.”

Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela!

Lira II

Pintam, Marília, os Poetas

A um menino vendado,

Com uma aljava de setas,

Arco empunhado na mão;

Ligeiras asas nos ombros,

O tenro corpo despido,

E de Amor ou de Cupido

São os nomes que lhe dão.

 

Porém eu, Marília, nego,

Que assim seja Amor, pois ele

Nem é moço nem é cego,

Nem setas nem asas tem.

Ora pois, eu vou formar-lhe

Um retrato mais perfeito,

Que ele já feriu meu peito;

Por isso o conheço bem.

 

Os seus compridos cabelos,

Que sobre as costas ondeiam,

São que os de Apolo[12] mais belos,

Mas de loura cor não são.

Têm a cor da negra noite;[13] 

E com o branco do rosto

Fazem, Marília, um composto

Da mais formosa união.

 

Tem redonda e lisa testa,

Arqueadas sobrancelhas,

A voz meiga, a vista honesta

E seus olhos são uns sóis.

Aqui vence Amor ao Céu,

Que no dia luminoso

O Céu tem um Sol formoso,

E o travesso Amor tem dois.

 

Na sua face mimosa,

Marília, estão misturadas

Purpúreas folhas de rosa,

Brancas folhas de jasmim.

Dos rubins[14] mais preciosos

Os seus beiços[15] são formados;

Os seus dentes delicados

São pedaços de marfim.

 

Mal vi seu rosto perfeito,

Dei logo um suspiro e ele

Conheceu haver-me feito

Estrago no coração.

Punha em mim os olhos, quando

Entendia eu não olhava;

Vendo que o via, baixava

A modesta vista ao chão.

 

Chamei-lhe um dia formoso;

Ele, ouvindo os seus louvores,

Com um gesto desdenhoso

Se sorriu e não falou.

Pintei-lhe outra vez o estado

Em que estava esta alma posta;

Não me deu também resposta,

Constrangeu-se e suspirou.

 

Conheço os sinais; e logo,

Animado de esperança,

Busco dar um desafogo

Ao cansado coração.

Pego em seus dedos nevados,

E querendo dar-lhe um beijo,

Cobriu-se todo de pejo,[16] 

E fugiu-me com a mão.

 

Tu, Marília, agora vendo

De Amor o lindo retrato,

Contigo estarás dizendo

Que é este o retrato teu.

Sim, Marília, a cópia é tua,

Que Cupido é Deus suposto:

Se há Cupido, é só teu rosto,

Que ele foi quem me venceu. [17] 

Lira III

De amar, minha Marília, a formosura

Não se podem livrar humanos peitos:

Adoram os heróis e os mesmos brutos

Aos grilhões de Cupido estão sujeitos.

Quem, Marília, despreza uma beleza

A luz da razão precisa,

E se tem discurso,[18] pisa

A Lei, que lhe ditou a Natureza.

 

Cupido entrou no Céu. O grande Jove[19] 

Uma vez se mudou em chuva de ouro;

Outras vezes tomou as várias formas

De General de Tebas, velha e touro.

O próprio Deus da Guerra[20] desumano

Não viveu de amor ileso:

Quis a Vênus[21] e foi preso

Na rede, que lhe armou o Deus Vulcano.[22] 

 

Mas sendo amor igual para os viventes,

Tem mais desculpa, ou menos esta chama:

Amar formosos rostos acredita,

Amar os feios de algum modo infama.[23] 

Quem lê que Jove amou, não lê nem topa,

Que ele amou vulgar donzela:

Lê que amou a Dânae[24] bela,

Encontra que roubou a linda Europa.[25] 

 

Se amar uma beleza se desculpa

Em quem ao próprio Céu e terra move,

Qual é a minha glória, pois igualo

Ou excedo no amor ao mesmo Jove?

Amou o Pai dos Deuses Soberano

Um semblante peregrino;

Eu adoro o teu divino,

O teu divino rosto, e sou humano.

Lira IV

Marília, teus olhos[26] 

São réus e culpados

Que sofra e que beije

Os ferros pesados

De injusto Senhor.

Marília, escuta

Um triste Pastor.

 

Mal vi o teu rosto,

O sangue gelou-se,

A língua prendeu-se,

Tremi e mudou-se

Das faces a cor.

Marília, escuta

Um triste Pastor.

 

A vista furtiva,

O riso imperfeito,

Fizeram a chaga,

Que abriste no peito

Mais funda e maior.

Marília, escuta

Um triste Pastor.

 

Dispus-me a servir-te;

Levava o teu gado

À fonte mais clara,

À vargem e prado

De relva melhor.

Marília, escuta

Um triste Pastor.

 

Se vinha da herdade,

Trazia nos ninhos

As aves nascidas,

Abrindo os biquinhos

De fome ou temor.

Marília, escuta

Um triste Pastor.

 

Se alguém te louvava,

De gosto me enchia;

Mas sempre o ciúme

No rosto acendia

Um vivo calor.

Marília, escuta

Um triste Pastor.

Se estavas alegre,

Dirceu[27] se alegrava;

Se estavas sentida,

Dirceu suspirava

À força da dor.

Marília, escuta

Um triste Pastor.

 

Falando com Laura,

Marília dizia;

Sorria-se aquela

E eu conhecia

O erro de amor.

Marília, escuta

Um triste Pastor.

 

Movida, Marília,

De tanta ternura,

Nos braços me deste

Da tua fé pura

Um doce penhor.

Marília, escuta

Um triste Pastor.

 

Tu mesma disseste

Que tudo podia

Mudar de figura,

Mas nunca seria

Teu peito traidor.

Marília, escuta

Um triste Pastor.

 

Tu já te mudaste;

E a Olaia[28] 

frondosa,

Aonde escreveste

A jura horrorosa,

Tem todo o vigor.

Marília, escuta

Um triste Pastor.

 

Mas eu te desculpo,

Que o fado tirano

Te obriga a deixar-me,[29] 

Pois busca o meu dano

Da sorte que for.

Marília, escuta

Um triste Pastor.

Lira V

Acaso são estes

Os sítios formosos,

Aonde passava

Os anos gostosos?

São estes os prados,

Aonde brincava,

Enquanto pastava

O manso rebanho

Que Alceu[30] me deixou?

São estes os sítios?

São estes; mas eu

O mesmo não sou.

Marília, tu chamas?

Espera que eu vou.

 

Daquele penhasco

Um rio caía;

Ao som do sussurro

Que[31] vezes dormia!

Agora não cobrem

Espumas nevadas

As pedras quebradas:

Parece que o rio

O curso voltou.[32] 

São estes os sítios?

São estes; mas eu

O mesmo não sou.

Marília, tu chamas?

Espera que eu vou.

 

Meus versos, alegre,

Aqui repetia;

O Eco as palavras

Três vezes dizia.

Se chamo por ele,

Já não me responde;

Parece se esconde,

Cansado de dar-me

Os ais que lhe dou.[33] 

São estes os sítios?

São estes; mas eu

O mesmo não sou.

Marília, tu chamas?

Espera que eu vou.

 

Aqui um regato

Corria, sereno,

Por margens cobertas

De flores e feno;

À esquerda se erguia

Um bosque fechado;

E o tempo apressado,

Que nada respeita,

Já tudo mudou.

São estes os sítios?

São estes; mas eu

O mesmo não sou.

Marília, tu chamas?

Espera que eu vou.

 

Mas como discorro?

Acaso podia

Já tudo mudar-se

No espaço de um dia?

Existem as fontes

E os freixos[34] copados;

Dão flores os prados

E corre a cascata

Que nunca secou.

São estes os sítios?

São estes; mas eu

O mesmo não sou.

Marília, tu chamas?

Espera que eu vou.

 

Minha alma, que tinha

Liberta a vontade,

Agora já sente

Amor e saudade.

Os sítios formosos,

Que já me agradaram,

Ah! não se mudaram!

Mudaram-se os olhos

De triste que estou.

São estes os sítios?

São estes; mas eu

O mesmo não sou.

Marília, tu chamas?

Espera que eu vou.

Lira VI

Oh! quanto pode em nós a vária Estrela!

Que diversos que são os gênios nossos!

Qual solta a branca vela,

E afronta sobre o pinho os mares grossos;

Qual cinge com a malha o peito duro,

E, marchando na frente das coortes,[35] 

Faz a torre voar, cair o muro.

 

O sórdido avarento em vão trabalha

Que possa o filho entrar no seu Tesouro:

Aqui, fechado, estende

Sobre a tábua, que verga, as barras de ouro.

Sacode o jogador do copo os dados;

E numa noite só, que ao sono rouba,

Perde o resto dos bens do pai herdados.

 

O que da voraz gula o vício adora,

Da lauta mesa os seus prazeres fia;

E o terno Alceste chora

Ao som dos versos, a que o gênio o guia.

O sábio Galileu[36] toma o compasso,

E sem voar ao Céu, calcula, e mede

Das Estrelas e Sol o imenso espaço.

 

Enquanto pois, Marília, a vária gente

Se deixa conduzir do próprio gosto,

Passo as horas contente,

Notando as graças do teu lindo rosto.

Sem cansar-me a saber se o Sol se move,

Ou se a terra volteia, assim conheço

Aonde chega a mão do grande Jove.

 

Noto, gentil Marília, os teus cabelos.

E noto as faces de jasmins e rosas;

Noto os teus olhos belos,

Os brancos dentes e as feições mimosas.

Quem faz uma obra tão perfeita e linda,

Minha bela Marília, também pode

Fazer os Céus e mais, se há mais ainda.

Lira VII

Vou retratar a Marília,

A Marília meus amores;

Porém como? Se eu não vejo

Quem me empreste as finas cores!

Dar-mas a terra não pode;

Não, que a sua cor mimosa

Vence o lírio, vence a rosa,

O jasmim e as outras flores.

Ah! socorre, Amor, socorre

Ao mais grato empenho meu!

Voa sobre os Astros, voa,

Traze-me as tintas do Céu.

 

Mas não se esmoreça logo;

Busquemos um pouco mais;

Nos mares talvez se encontrem

Cores que sejam iguais.

Porém, não, que em paralelo

Da minha Ninfa adorada

Pérolas não valem nada,

Não valem nada os corais.

Ah! socorre, Amor, socorre

Ao mais grato empenho meu!

Voa sobre os Astros, voa,

Traze-me as tintas do Céu.

 

Só no Céu achar-se podem

Tais belezas, como aquelas

Que Marília tem nos olhos

E que tem nas faces belas.

Mas às faces graciosas,

Aos negros olhos, que matam,

Não imitam, não retratam

Nem Auroras, nem Estrelas.

Ah! socorre, Amor, socorre

Ao mais grato empenho meu!

Voa sobre os Astros, voa,

Traze-me as tintas do Céu.

 

Entremos, Amor, entremos,

Entremos na mesma Esfera,

Venha Palas,[37] venha Juno,[38] 

Venha a Deusa de Citera.[39] 

Porém não, que se Marília

No certame antigo entrasse,

Bem que a Páris[40] não peitasse,

A todas as três vencera.

Vai-te, Amor, em vão socorres

Ao mais grato empenho meu:

Para formar-lhe o retrato

Não bastam tintas do Céu.

Lira VIII

Marília, de que te queixas?

De que te roube Dirceu

O sincero coração?

Não te deu também o seu?

E tu, Marília, primeiro

Não lhe lançaste o grilhão?

Todos amam; só Marília

Desta Lei da Natureza

Queria ter isenção?

 

Em torno das castas pombas,

Não rulam[41] ternos pombinhos?

E rulam, Marília, em vão?

Não se afagam cos[42] biquinhos?

E a provas de mais ternura

Não os arrasta a paixão?

Todos amam; só Marília

Desta Lei da Natureza

Queria ter isenção?[43] 

 

Já viste, minha Marília,

Avezinhas que não façam

Os seus ninhos no verão?

Aquelas, com quem se enlaçam,

Não vão cantar-lhes defronte

Do mole pouso em que estão?

Todos amam; só Marília

Desta Lei da Natureza

Queria ter isenção?

 

Se os peixes, Marília, geram

Nos bravos mares e rios,

Tudo efeitos de Amor são.

Amam os brutos impios,[44] 

A serpente venenosa,

A Onça, o Tigre, o Leão.

Todos amam; só Marília

Desta Lei da Natureza

Queria ter isenção?

 

As grandes Deusas do Céu

Sentem a seta tirana

Da amorosa inclinação.

Diana,[45] com ser Diana,

Não se abrasa, não suspira

Pelo amor de Endimião?[46] 

Todos amam; só Marília

Desta Lei da Natureza

Queria ter isenção?

 

Desiste, Marília bela,

De uma queixa sustentada

Só na altiva opinião.

Esta chama é inspirada

Pelo Céu; pois nela assenta

A nossa conservação.

Todos amam; só Marília

Desta Lei da Natureza

Não deve ter isenção?

Lira IX

Eu sou, gentil Marília, eu sou cativo;

Porém não me venceu a mão armada

De ferro e de furor;

Uma alma sobre todas elevada

Não cede a outra força que não seja

A tenra mão de Amor.

 

Arrastem pois os outros muito embora

Cadeias nas bigornas trabalhadas

Com pesados martelos;

Eu tenho as minhas mãos ao carro atadas

Com duros ferros não, com fios d’ouro,

Que são os teus cabelos.

 

Oculto nos teus meigos vivos olhos,

Cupido a tudo faz tirana guerra:

Sacode a seta ardente;

E sendo despedida cá da terra,

As nuvens rompe, chega ao alto Empíreo,[47]

E chega ainda quente.

 

As abelhas, nas asas suspendidas,

Tiram, Marília, os sucos saborosos

Das orvalhadas flores:

Pendentes dos teus beiços graciosos,

Ambrósias chupam, chupam mil feitiços

Nunca fartos Amores.

 

O vento, quando parte em largas fitas

As folhas, que meneia com brandura;

A fonte cristalina,

Que sobre as pedras cai de imensa altura,

Não forma um som tão doce, como forma

A tua voz divina.

 

Em torno dos teus peitos, que palpitam,

Exalam mil suspiros desvelados

Enxames de desejos;

Se encontram os teus olhos descuidados,

Por mais que se atropelem, voam, chegam,

E dão furtivos beijos.

 

O Cisne, quando corta o manso largo,

Erguendo as brancas asas e o pescoço;

A Nau, que ao longe passa,

Quando o vento lhe enfuna[48] o pano grosso,

O teu garbo não tem, minha Marília,

Não tem a tua graça.

 

Estimem pois os mais a liberdade;

Eu prezo o cativeiro, sim, nem chamo

À mão de Amor impia:

Honro a virtude e os teus dotes amo:

Também o grande Aquiles veste a saia, [49] 

Também Alcides[50] fia.

Lira X

Se existe um peito,

Que isento viva

Da chama ativa,

Que acende Amor;

Ah! não habite

Neste montado,[51] 

Fuja apressado

Do vil traidor.

Corra, que o ímpio

Aqui se esconde,

Não sei aonde,

Mas sei que o vi.

Traz novas setas,

Arco robusto;

Tremi de susto,

Em vão fugi.

 

Eu vou mostrar-vos,

Tristes mortais,

Quantos sinais

O ímpio tem.

Oh! como é justo

Que todo o humano

Um tal tirano

Conheça bem!

 

No corpo ainda

Menino existe;

Mas quem resiste

Ao braço seu?

Ao negro Inferno

Levou a guerra;

Venceu a terra,

Venceu o Céu.

 

Jamais se cobrem

Seus membros belos;

E os seus cabelos

Que lindos são!

Vendados olhos,

Que tudo alcançam,

E jamais lançam

A seta em vão.

 

As suas faces

São cor da neve;

E a boca breve

Só risos tem.

Mas, ah! respira

Negros venenos,

Que nem ao menos

Os olhos veem.

Aljava grande

Dependurada,

Sempre atacada[52] 

De bons farpões.

Fere com estas

Agudas lanças

Pombinhas mansas,[53] 

Bravos leões.

 

Se a seta falta,

Tem outra pronta,

Que a dura ponta

Jamais torceu.

Ninguém resiste

Aos golpes dela:

Marília bela

Foi quem lha deu.

 

Ah! não sustente

Dura peleja[54] 

O que deseja

Ser vencedor.

Fuja e não olhe,

Que só fugindo

De um rosto lindo

Se vence Amor.[55] 

 

Lira XI

Não toques, minha Musa,[56] não, não toques

Na sonorosa Lira,

Que às almas, como a minha, namoradas,

Doces Canções inspira;

Assopra no clarim, que, apenas soa,

Enche de assombro a terra;

Naquele, a cujo som cantou Homero,[57] 

Cantou Virgílio[58] a Guerra.

Busquemos, ó Musa,

Empresa maior;

Deixemos as ternas

Fadigas de Amor.

 

Eu já não vejo as graças, de que forma

Cupido o seu tesouro,

Vivos olhos e faces cor da neve,

Com crespos fios de ouro:

Meus olhos só vêem gramas e loureiros;

Veem carvalhos e palmas;

Veem os ramos honrosos, que distinguem

As vencedoras almas.

 

Busquemos, ó Musa,

Empresa maior;

Deixemos as ternas

Fadigas de Amor.

 

Cantemos o Herói,[59] que já no berço

As Serpes[60] despedaça;

Que fere os Cacos,[61] que destronca as Hidras,[62] 

Mais os leões,[63] que abraça.

Cantemos, se isto é pouco, a dura guerra

Dos Titãs[64] e Tifeus,[65]

Que arrancam as montanhas e, atrevidos,

Levam armas aos Céus.

 

Busquemos, ó Musa,

Empresa maior;

Deixemos as ternas

Fadigas de Amor.

 

Anima pois, ó Musa, o instrumento,

Que a voz também levanto;

Porém tu deste muito acima o ponto,[66] 

Dirceu não pode tanto.

Abaixa, minha Musa, o tom, que ergueste;

Eu já, eu já te sigo.

Mas, ah! vou a dizer Herói, e Guerra,

E só Marília digo.

 

Deixemos, ó Musa,

Empresa maior;

Só posso seguir-te

Cantando de Amor.

 

Feres as cordas d’ouro? Ah! sim, agora

Meu canto já se afina:

E a humana voz parece que ao som delas

Se faz também divina.

O mesmo[67] que cercou de muro a Tebas

Não canta assim tão terno;

Nem pode competir comigo aquele,

Que desce ao negro Inferno.[68] 

 

Deixemos, ó Musa,

Empresa maior;

Só posso seguir-te

Cantando de Amor.

 

Mal repito Marília, as doces aves

Mostram sinais de espanto;

Erguem os colos, voltam as cabeças,

Param o ledo canto;

Move-se o tronco, o vento se suspende,

Pasma o gado e não come.

Quanto podem meus versos! Quanto pode

Só de Marília o nome!

 

Deixemos, ó Musa,

Empresa maior;

Só posso seguir-te

Cantando de Amor.

Lira XII

Topei um dia

Ao Deus vendado,

Que descuidado

Não tinha as setas

Na impia mão.

Mal o conheço,

Me sobe logo

Ao rosto o fogo,

Que a raiva acende

No coração.

 

“Morre, tirano;

Morre, inimigo!”

Mal isso digo,

Raivoso o aperto

Nos braços meus.

Tanto que o moço

Sente apertar-se,

Para salvar-se

Também me aperta

Nos braços seus.

 

O leve corpo

Ao ar levanto;

Ah! e com quanto

Impulso o trago

Do ar ao chão!

Pode suster-se

A vez primeira;

Mas à terceira

Nos pés, que alarga,

Se firma em vão.

 

Mal o derrubo,

Ferro aguçado

No já cansado

Peito, que arqueja,

Mil golpes deu.

Suou seu corpo;

Tremeu, gemendo;

E a cor perdendo,

Bateu as asas;

Enfim, morreu.

Qual bravo Alcides,[69] 

Que a hirsuta pele

Vestiu daquele

Grenhoso bruto,[70] 

A quem matou,

Para que prove

A empresa honrada,

Coa[71] mão manchada

Recolho as setas

Que me deixou.

 

Ouviu Marília

Que Amor gritava,

E como estava

Vizinha ao sítio

Valer-lhe vem;

Mas quando chega

Espavorida,

Nem já de vida

O fero monstro

Indício tem.

 

Então Marília,

Que o vê de perto

De pó coberto

E todo envolto

No sangue seu,

As mãos aperta

No peito brando,

E aflita dando

Um ai, os olhos

Levanta ao Céu.

 

Chega-se a ele

Compadecida;

Lava a ferida

Co pranto amargo,

Que derramou.

Então o monstro

Dando um suspiro,

Fazendo um giro

Coa baça vista,

Ressuscitou.

Respira a Deusa;

E vem o gosto

Fazer no rosto

O mesmo efeito,

Que fez a dor.

Que louca ideia

Foi a que tive!

Enquanto vive

Marília bela,

Não morre Amor.

Lira XIII

Oh! quantos riscos,

Marília bela,

Não atropela

Quem, cego, arrasta

Grilhões de Amor!

Um peito forte,

De acordo falto,

Zomba do assalto

Do vil traidor.

 

O amante de Hero[72] 

Da luz guiado,

Co peito ousado

Na escura noite

Rompia o mar.

Se o Helesponto

Se encapelava,

Ah! não deixava

De lhe ir falar.

 

Do Cantor Trácio[73] 

A heroicidade

Esta verdade,

Minha Marília,

Prova também.

Cheio de esforço

Vai ao Cocito[74] 

Buscar aflito,

Seu doce bem.[75] 

 

Que ação tão grande

Nunca intentada!

Ao pé da entrada,

Já tudo assusta

O coração:

Pendentes rochas,

Campos adustos,[76] 

Que nem arbustos

Nem ervas dão.

 

Na funda fralda

De calvo monte,

Corre Aqueronte,[77] 

Rio de ardente

Mortal licor.

Tem o barqueiro[78] 

Testa enrugada,

Vista inflamada,

Que mete horror.

 

Que seguranças!

Que fechaduras!

As portas duras

Não são de lenhos,

De ferro são.

Por três gargantas,[79] 

Quando alguém bate,

Raivoso late

O negro cão.[80] 

 

Dentro da cova

Soam lamentos;

E que tormentos

Não mostra aos olhos

A escassa luz!

Minos[81] a pena

Manda se intime

Igual ao crime

Que ali conduz.

 

Grande penedo

Este carrega;

E apenas chega

Do monte ao cume,

O faz rolar.

A pedra sempre

Ao vale desce,

Sem que ele cesse

De a ir buscar. [82] 

 

Nas limpas águas

Habita aquele;

Por cima dele

Verdejam ramos,

Que pomos dão.

Debalde a boca

Molhar pretende;

Debalde estende

Faminta mão.[83] 

 

Tem outro o peito

Despedaçado:

Monstro esfaimado

Jamais descansa

De lho roer.

A roxa carne,

Que o abutre come,

Não se consome,

Torna a crescer.[84] 

 

Mas, bem que tudo

Pavor inspira,

Tocando a lira

Desce ao Averno[85] 

O bom Cantor.

Não se entorpece

A língua e braço;

Não treme o passo,

Não perde a cor.

 

Ah! também quanto

Dirceu obrara,

Se precisara

Marília bela

De esforço seu!

Rompera os mares

Co peito terno,

Fora ao Inferno,

Subira ao Céu.

 

Aos dois amantes

De Trácia e Abido

Não deu Cupido

Do que aos mais todos

Maior valor.

Por seus vassalos

Forças reparte,

Como lhes parte

Os graus de Amor.

Lira XIV

Minha bela Marília, tudo passa;

A sorte deste mundo é mal segura;

Se vem depois dos males a ventura,

Vem depois dos prazeres a desgraça.

Estão os mesmos Deuses

Sujeitos ao poder do ímpio Fado:

Apolo já fugiu do Céu brilhante,

Já foi Pastor de gado.

 

A devorante mão da negra Morte

Acaba de roubar o bem que temos;

Até na triste campa[86] não podemos

Zombar do braço da inconstante sorte:

Qual fica no Sepulcro,

Que seus avós ergueram, descansado;

Qual no campo, e lhe arranca os frios ossos

Ferro do torto arado.

 

Ah! enquanto os Destinos impiedosos

Não voltam contra nós a face irada,

Façamos, sim, façamos, doce amada,

Os nossos breves dias mais ditosos.

Um coração que, frouxo,

A grata posse de seu bem difere,

A si, Marília, a si próprio rouba,

E a si próprio fere.

 

Ornemos nossas testas com as flores

E façamos de feno um brando leito;

Prendamo-nos, Marília, em laço estreito,

Gozemos do prazer de sãos Amores.

Sobre as nossas cabeças,

Sem que o possam deter, o tempo corre;

E para nós o tempo que se passa

Também, Marília, morre.

 

Com os anos, Marília, o gosto falta,

E se entorpece o corpo já cansado:

Triste o velho cordeiro está deitado,

E o leve filho, sempre alegre, salta.

A mesma formosura

É dote que só goza a mocidade:

Rugam-se as faces, o cabelo alveja,

Mal chega a longa idade.

 

Que havemos de esperar, Marília bela?

Que vão passando os florescentes dias?

As glórias que vêm tarde, já vêm frias,

E pode, enfim, mudar-se a nossa estrela.

Ah! não, minha Marília,

Aproveite-se o tempo, antes que faça

O estrago de roubar ao corpo as forças

E ao semblante a graça![87] 

Lira XV

A minha bela Marília

Tem de seu um bom tesouro;

Não é, doce Alceu, formado

Do buscado

Metal louro.

É feito de uns alvos dentes,

É feito de uns olhos belos,

De umas faces graciosas,

De crespos, finos cabelos,

E de outras graças maiores

Que a natureza lhe deu:

Bens que valem sobre a terra

E que têm valor no Céu.

 

Eu posso romper os montes,

Dar às correntes desvios,

Pôr cercados espaçosos

Nos caudosos,

Turvos rios.

Posso emendar a ventura

Ganhando astuto a riqueza;

Mas, ah! caro Alceu, quem pode

Ganhar uma só beleza

Das belezas que Marília

No seu tesouro meteu?

Bens que valem sobre a terra

E que têm valor no Céu.

 

Da sorte que vive o rico,

Entre o fausto, alegremente,

Vive o guardador de gado,

Apoucado,

Mas contente.

Beije pois torpe avarento

As arcas, de barras cheias;

Eu não beijo os vis tesouros;

Beijo as douradas cadeias,

Beijo as setas, beijo as armas

Com que o cego Amor venceu:

Bens que valem sobre a terra

E que têm valor no Céu.

 

Ama Apolo, o fero Marte,

Ama, Alceu, o mesmo Jove:[88]

Não é, não, a vã riqueza,

Sim beleza,

Quem os move.

Posto ao lado de Marília,

Mais que mortal me contemplo;

Deixo os bens que aos homens cegam,

Sigo dos Deuses o exemplo:

Amo virtudes e dotes;

Amo, enfim, prezado Alceu,

Bens que valem sobre a terra

E que têm valor no Céu.

Lira XVI

Eu, Glauceste,[89] não duvido

Ser a tua Eulina[90] amada

Pastora formosa,

Pastora engraçada.[91] 

Vejo a sua cor de rosa,

Vejo o seu olhar divino,

Vejo os seus purpúreos beiços,

Vejo o peito cristalino;

Nem há coisa que assemelhe

Ao crespo cabelo louro.

Ah! que a tua Eulina vale,

Vale um imenso tesouro!

 

Ela vence muito, e muito

À laranjeira copada,

Estando de flores

E frutos ornada.

É, Glauceste, os teus Amores;

E nem por outra Pastora,

Que menos dotes tivera

Ou que menos bela fora,

O meu Glauceste cansara

As divinas cordas de ouro.

Ah! que a tua Eulina vale,

Vale um imenso tesouro!

Sim, Eulina é uma Deusa;

Mas anima a formosura

De uma alma de fera

Ou inda mais dura.

Ah! quando Alceu pondera

Que o seu Glauceste suspira,

Perde, perde o sofrimento,

E qual enfermo delira!

Tenha embora brancas faces,

Meigos olhos, fios de ouro,

A tua Eulina não vale,

Não vale imenso tesouro.

 

O fuzil, que imita a cobra,

Também aos olhos é belo;

Mas quando alumeia,[92]

Tu tremes de vê-lo.

Que importa se mostre cheia

De mil belezas a ingrata?

Não se julga formosura

A formosura que mata.

Evita, Glauceste, evita

O teu estrago e desdouro.

A tua Eulina não vale,

Não vale imenso tesouro.

 

A minha Marília quanto

À natureza não deve!

Tem divino rosto

E tem mãos de neve.

Se mostro na face o gosto,

Ri-se Marília, contente;

Se canto, canta comigo;

E apenas triste me sente,

Limpa os olhos com as tranças

Do fino cabelo louro.

A minha Marília vale,

Vale um imenso tesouro.

Lira XVII

Minha Marília,

Tu enfadada?

Que mão ousada

Perturbar pode

A paz sagrada

Do peito teu?

Porém que muito

Que irado esteja

O teu semblante!

Também troveja

O claro Céu.

 

Eu sei, Marília,

Que outra Pastora

A toda hora,

Em toda a parte,

Cega namora

Ao teu Pastor.

Há sempre fumo

Aonde há fogo:

Assim, Marília,

Há zelos, logo

Que existe amor.

 

Olha, Marília,

Na fonte pura

A tua alvura,

A tua boca

E a compostura

Das mais feições.

Quem tem teu rosto

Ah! não receia

Que terno amante

Solte a cadeia,

Quebre os grilhões.

 

Não anda Laura

Nestas campinas

Sem as boninas

No seu cabelo,

Sem peles finas

No seu jubão.

Porém que importa?

O rico asseio

Não dá, Marília,

Ao rosto feio

A perfeição.

Quando apareces

Na madrugada,

Mal embrulhada

Na larga roupa,

E desgrenhada,

Sem fita ou flor,

Ah! que então brilha

A natureza!

Então se mostra

Tua beleza

Inda maior.

 

O céu formoso,

Quando alumia

O sol de dia,

Ou estrelado

Na noite fria,

Parece bem.

Também tem graça

Quando amanhece;

Até, Marília,

Quando anoitece

Também a tem.

 

Que tens, Marília,

Que ela suspire,

Que ela delire,

Que corra os vales,

Que os montes gire,

Louca de amor?

Ela é que sente

Esta desdita;

E na repulsa

Mais se acredita

O teu Pastor.

 

Quando há, Marília,

Alguma festa

Lá na floresta,

(Fala a verdade!)

dança com esta

o bom Dirceu?

E se ela o busca,

Vendo buscar-se,

Não se levanta,

Não vai sentar-se

Ao lado teu?

 

Quando um por outro

Na rua passa,

Se ela diz graça

Ou muda o gesto,

Esta negaça

Faz-lhe impressão?

Se está fronteira,

E brandamente

Lhe fita os olhos,

Não põe, prudente,

Os seus no chão?

 

Deixa o ciúme,

Que te desvela:

Marília bela;

Nunca receies

Dano daquela

Que igual não for.

Que mais desejas?

Tens lindo aspecto;

Dirceu se alenta

De puro afeto,

De pundonor.

Lira XVIII

Não vês aquele velho respeitável

Que à muleta encostado

Apenas mal se move e mal se arrasta?

Oh! quanto estrago não lhe fez o tempo!

O tempo arrebatado,

Que o mesmo bronze gasta. [93] 

 

Enrugaram-se as faces, e perderam

Seus olhos a viveza;

Voltou-se o seu cabelo em branca neve;

Já lhe treme a cabeça, a mão, o queixo;

Nem tem uma beleza

Das belezas, que teve.

Assim também serei, minha Marília,

Daqui a poucos anos,

Que o ímpio tempo para todos corre:

Os dentes cairão e os meus cabelos.

Ah! sentirei os danos

Que evita só quem morre.

 

Mas sempre passarei uma velhice

Muito menos penosa.

Não trarei a muleta carregada:

Descansarei o já vergado corpo

Na tua mão piedosa,

Na tua mão nevada.

 

Nas frias tardes, em que negra nuvem

Os chuveiros[94] não lance,

Irei contigo ao prado florescente:

Aqui me buscarás um sítio ameno,

Onde os membros descanse,

E o brando Sol me aquente.

 

Apenas me sentar, então, movendo

Os olhos por aquela

Vistosa parte, que ficar fronteira,

Apontando direi: “Ali falamos,

Ali, ó minha bela,

Te vi a vez primeira”.

 

Verterão os meus olhos duas fontes,

Nascidas de alegria;

Farão teus olhos ternos outro tanto;

Então darei, Marília, frios beijos

Na mão formosa e pia,

Que me limpar o pranto.

 

Assim irá, Marília, docemente

Meu corpo suportando

Do tempo desumano a dura guerra.

Contente morrerei, por ser Marília

Quem, sentida, chorando,

Meus baços olhos cerra.

Lira XIX

Enquanto pasta, alegre, o manso gado,

Minha bela Marília, nos sentemos

À sombra deste cedro levantado.

Um pouco meditemos

Na regular beleza,

Que em tudo quanto vive nos descobre

A sábia Natureza.[95] 

 

Atende, como aquela vaca preta

O novilhinho seu dos mais separa

E o lambe, enquanto chupa a lisa teta.

Atende mais, ó cara,

Como a ruiva cadela

Suporta que lhe morda o filho o corpo

E salte em cima dela.

 

Repara como, cheia de ternura,

Entre as asas ao filho essa ave aquenta,

Como aquela esgravata a terra dura,

E os seus assim sustenta;

Como se encoleriza

E salta sem receio a todo o vulto

Que junto deles pisa.

 

Que gosto não terá a esposa amante,

Quando der ao filhinho o peito brando

E refletir então no seu semblante!

Quando, Marília, quando

Disser consigo: “É esta

De teu querido pai a mesma barba,

A mesma boca e testa”.

 

Que gosto não terá a mãe, que toca,

Quando o tem nos seus braços, co dedinho

Nas faces graciosas e na boca

Do inocente filhinho!

Quando, Marília bela,

O tenro infante já com risos mudos

Começa a conhecê-la!

 

Que prazer não terão os pais, ao verem

Com as mães um dos filhos abraçados;

Jogar outros a luta, outros correrem

Nos cordeiros montados!

Que estado de ventura!

Que até naquilo, que de peso serve,

Inspira Amor doçura!

Lira XX

Em uma frondosa

Roseira se abria

Um negro botão.

Marília adorada

O pé lhe torcia

Com a branca mão.

 

Nas folhas viçosas

A abelha enraivada

O corpo escondeu.

Tocou-lhe Marília:

Na mão descuidada

A fera mordeu.

 

Apenas lhe morde,

Marília, gritando,

Co dedo fugiu.

Amor, que no bosque

Estava brincando,

Aos ais acudiu.

 

Mal viu a rotura[96] 

E o sangue espargido,

Que a Deusa[97] mostrou,

Risonho, beijando

O dedo ofendido,

Assim lhe falou:

 

“Se tu por não tão pouco

O pranto desatas,

Ah! dá-me atenção:

E como daquele

Que feres e matas,

Não tens compaixão?”[98] 

Lira XXI

Não sei, Marília, que tenho,

Depois que vi o teu rosto,

Pois quanto não é Marília

Já não posso ver com gosto.

Noutra idade me alegrava,

Até quando conversava

Com o mais rude vaqueiro:

Hoje, ó bela, me aborrece

Inda o trato lisonjeiro

Do mais discreto pastor.

Que efeitos são os que sinto?

Serão efeitos de Amor?

 

Saio da minha cabana

Sem reparar no que faço;

Busco o sítio aonde moras,

Suspendo defronte o passo.

Fito os olhos na janela

Aonde, Marília bela,

Tu chegas ao fim do dia;

Se alguém passa e te saúda,

Bem que seja cortesia,

Se acende na face a cor.

Que efeitos são os que sinto?

Serão os efeitos de Amor?

 

Se estou, Marília, contigo,

Não tenho um leve cuidado;

Nem me lembra se são horas

De levar à fonte o gado.

Se vivo de ti distante,

Ao minuto, ao breve instante,

Finge um dia o meu desgosto;

Jamais, Pastora, te vejo

Que em teu semblante composto

Não veja graça maior.

Que efeitos são os que sinto?

Serão efeitos de Amor?

 

Ando já com o juízo,

Marília, tão perturbado,

Que no mesmo aberto sulco

Meto de novo o arado.

Aqui no centeio pego,

Noutra parte em vão o sego;

Se algué

Se geme o bufo[99] agoureiro,

Só Marília me desvela,

Enche-se o peito de mágoa,

E não sei a causa dela.

Mal durmo, Marília, sonho

Que fero leão medonho

Te devora nos meus braços:

Gela-se o sangue nas veias

E solto do sono os laços

À força da imensa dor.

Ah! que os efeitos que sinto

Só são efeitos de amor!

Lira XXII

Muito embora, Marília, muito embora

Outra beleza, que não seja a tua,

Com a vermelha roda, a seis puxada,

Faça tremer a rua.

 

As paredes da sala, aonde habita,

Adorne a seda e o tremó[100] dourado;

Pendam largas cortinas, penda o lustre

Do teto apainelado.

 

Tu não habitarás Palácios grandes,

Nem andarás nos coches voadores;

Porém terás um Vate,[101] que te preze,

Que cante os teus louvores.

 

O tempo não respeita a formosura;

E da pálida morte a mão tirana

Arrasa os edifícios dos Augustos

E arrasa a vil[102] choupana.

Que belezas, Marília, floresceram,

De quem nem sequer temos a memória!

Só podem conservar um nome eterno

Os versos ou a história.

 

Se não houvesse Tasso[103] nem Petrarca,[104]

Por mais que qualquer delas fosse linda,

Já não sabia o mundo se existiram

Nem Laura,[105] nem Clorinda.[106] 

 

É melhor, minha bela, ser lembrada

Por quantos hão de vir sábios humanos,

Que ter urcos,[107] ter coches e tesouros

Que morrem com os anos.

Lira XXIII

Num sítio ameno

Cheio de rosas,

De brancos lírios,

Murtas viçosas;

 

Dos seus amores

Na companhia,

Dirceu passava

Alegre o dia.

 

Em tom de graça,

Ao terno amante

Manda Marília

Que toque e cante.

 

Pega na lira,

Sem que a tempere,[108] 

A voz levanta

E as cordas fere.

Cos doces pontos[109] 

A mão atina,

E a voz iguala

À voz divina.

 

Ela, que teve

De rir-se a ideia,

Nem move os olhos,

De assombro cheia.

 

Então Cupido,

Aparecendo,

À bela fala,

Assim dizendo:

 

“Do teu amado

A lira fias,

Só porque dele

Zombando rias?

 

Quando num peito

Assento faço,

Do peito subo

À língua e braço.

 

Nem creias que outro

Estilo tome,

Sendo eu o mestre,

A ação teu nome.”

Lira XXIV

Encheu, minha Marília, o grande Jove

De imensos animais de toda a espécie

As terras, mais os ares,

O grande espaço dos salobros,[110] rios,

Dos negros, fundos mares.

Para sua defesa,

A todos deu as armas, que convinha

A sábia Natureza.

 

Deu as asas aos pássaros ligeiros,

Deu ao peixe escamoso as barbatanas;

Deu veneno à serpente,

Ao membrudo Elefante a enorme tromba

E ao Javali o dente.

Coube ao leão a garra;

Com leve pé saltando o cervo foge;

E o bravo touro marra.

 

Ao homem deu as armas do discurso,

Que valem muito mais que as outras armas;

Deu-lhe dedos ligeiros,

Que podem converter em seu serviço

Os ferros e os madeiros,

Que tecem fortes laços

E forjam raios, com que aos brutos cortam

Os voos, mais os passos.

 

Às tímidas donzelas pertenceram

Outras armas, que têm dobrada força:

Deu-lhes a Natureza

Além do entendimento, além dos braços,

As armas da beleza.

Só ela ao Céu se atreve;

Só ela mudar pode o gelo em fogo,

Mudar o fogo em neve.

 

Eu vejo, eu vejo ser a formosura

Quem arrancou da mão de Coriolano[111] 

A cortadora espada.

Vejo que foi de Helena o lindo rosto,

Quem pôs em campo, armada,

Toda a força da Grécia.

E quem tirou o Cetro aos Reis de Roma?

Só foi, só foi Lucrécia.

 

Se podem lindos rostos, mal suspiram,

O braço desarmar do mesmo Aquiles;

Se estes rostos irados

Podem soprar o fogo da discórdia

Em povos aliados,

És árbitra da terra:

Tu podes dar, Marília, a todo o mundo

A paz e a dura guerra.

Lira XXV

O cego Cupido um dia,

Com os seus Gênios falava

Do modo que lhe restava

De cativar a Dirceu.

Depois de larga disputa,

Um dos Gênios mais sagazes

Este conselho lhe deu:

 

“As setas mais aguçadas,

Como se em rocha batessem,

Dão nos seus peitos e descem

Todas quebradas ao chão.

Só as graças de Marília

Podem vencer um tão duro,

Tão isento[112] coração.

 

A fortuna desta empresa

Consiste em armar-se o laço,

Sem que sinta ser o braço

Que lho prepara de Amor:

Que ele vive como as aves,

Que já deixaram as penas

No visco do Caçador.”

 

Na força desse conselho,

O raivoso Deus sossega

E à tropa a honra entrega

De o fazer executar.

Todos pretendem ganhá-la;

Batem as asas, ligeiros,

E vão as armas buscar.

 

Os primeiros se ocultaram

Da Deusa nos olhos belos;

Qual se enlaçou nos cabelos,

Qual às faces se prendeu.

Um amorinho cansado

Caiu dos lábios ao seio

E nos peitos se escondeu.

 

Outro Gênio, mais astuto,

Este novo ardil alcança:

Muda-se numa criança

De divino parecer;

Esconde as asas e a venda;[113] 

Esconde as setas e quanto

Pode dá-lo a conhecer.

 

Ela que vê um menino

Todo de graças coberto,

Tão risonho e tão esperto

Ali sozinho brincar.

A ele endireita os passos;

Finge Amor ter medo e a Deusa

Mais se empenha em lhe pegar.

 

Ela corria chamando;

Ele fugia e chorava:

Assim foram onde estava

O descuidado Pastor.

Este mal viu a beleza,

E o gentil menino entende

A malícia do traidor.

 

Põe as mãos sobre os ouvidos;

Cerra os olhos e, constante,

Não quer ver o seu semblante,

Não o quer ouvir falar.

Qual Ulisses noutra idade

Para iludir as Sereias

Mandou tambores tocar.[114]

 

Cupido, que a empresa via,

Julga o intento frustrado

E de raiva transportado

O corpo no chão lançou.

Traçou a língua nos dentes;

Meteu as unhas no rosto

E os cabelos arrancou.

 

O Gênio, que se escondia

Entre os peitos da Pastora,

Ergueu a cabeça fora

E o sucesso conheceu.

Deixa o sossego em que estava

E vai ligeiro meter-se

No peito do bom Dirceu.

 

Apenas co brando peito

Lhe tocou a neve fria,

Com o calor que trazia

Lhe abrasou o coração.

Dá o Pastor um suspiro,

Abre os seus olhos e solta

Do apertado ouvido a mão.

 

Logo que viram os Gênios

Ao triste Pastor disposto

Para ver o lindo rosto,

Para as palavras ouvir,

Cada um as armas toma,

Cada um com elas busca

Seu terno peito ferir.

 

Com os cabelos da Deusa

Lhe forma um Cupido laços,

Que lhe seguram os braços,

Como se fossem grilhões.

O Pastor já não resiste;

Antes beija, satisfeito,

As suas doces prisões.

Lira XXVI

O destro Cupido um dia

Extraiu mimosas cores

De frescos lírios e rosas,

De jasmins e de outras flores.

 

Com as mais delgadas penas

Usa de uma e de outra tinta

E nos ângulos do cobre

A quatro belezas pinta.

 

Por fazer pensar a todos,

No seu liso centro escreve

Um letreiro que pergunta:

“Este espaço a quem se deve?”

 

Vênus, que viu a pintura

E leu a letra engenhosa,

Pôs por baixo: “Eu dele cedo;

Dê-se a Marília formosa”.[115] 

Lira XXVII

Alexandre,[116] Marília, qual o rio,

Que engrossando no Inverno tudo arrasa,

Na frente das coortes

Cerca, vence, abrasa

As Cidades mais fortes.

Foi na glória das armas o primeiro;

Morreu na flor dos anos e já tinha

Vencido o mundo inteiro.

 

Mas esse bom Soldado, cujo nome

Não há poder algum que não abata,

Foi, Marília, somente

Um ditoso pirata,

Um salteador valente.

Se não tem uma fama baixa e escura,

Foi por se pôr ao lado da injustiça

A insolente ventura.

 

O grande César,[117] cujo nome voa,

À sua mesma Pátria a fé quebranta;

Na mão a espada toma,

Oprime-lhe a garganta,

Dá Senhores a Roma.

Consegue ser herói por um delito;

Se acaso não vencesse, então seria

Um vil traidor proscrito.

 

O ser herói, Marília, não consiste

Em queimar os Impérios: move a guerra,

Espalha o sangue humano

E despovoa a terra

Também o mau tirano.

Consiste o ser herói em viver justo:

E tanto pode ser herói o pobre,

Como o maior Augusto.[118] 

 

Eu é que sou herói, Marília bela,

Seguindo da virtude a honrosa estrada:

Ganhei, ganhei um trono,

Ah! não manchei a espada,

Não roubei ao dono!

Ergui-o no teu peito e nos teus braços;

E valem muito mais que o mundo inteiro

Uns tão ditosos laços.

 

Aos bárbaros, injustos vencedores

Atormentam remorsos e cuidados;

Nem descansam seguros

Nos Palácios, cercados

De tropa e de altos muros.

E a quantos nos não mostra a sábia história,

A quem mudou o fado em negro opróbrio

A mal ganhada glória!

 

Eu vivo, minha bela, sim, eu vivo

Nos braços do descanso e mais do gosto:

Quando estou acordado,

Contemplo no teu rosto,

De graças adornado;

Se durmo, logo sonho e ali te vejo.

Ah! nem desperto, nem dormindo, sobe

A mais o meu desejo!

Lira XXVIII

Cupido, tirando

Dos ombros a aljava,

Num campo de flores,

Contente, brincava.

 

E o corpo tenrinho

Depois, enfadado,

Incauto reclina

Na relva do prado.

 

Marília formosa,

Que ao Deus conhecia,

Oculta, espreitava

Quanto ele fazia.

 

Mal julga que dorme,

Se chega, contente,

As armas lhe furta,

E o Deus a não sente.

 

Os Faunos,[119] mal viram

As armas roubadas,

Saíram das grutas

Soltando risadas.

 

Acorda Cupido

E a causa sabendo,

A quantos o insultam

Responde, dizendo:

 

“Temíeis as setas

Nas minhas mãos cruas![120] 

Vereis o que podem

Agora nas suas.”[121] 

Lira XXIX

O tirano Amor risonho[122] 

Me aparece e me convida

Para que seu jugo aceite;

E quer que eu passe em deleite

O resto da triste vida.

 

“O sonoro Anacreonte[123] 

(Astuto o moço dizia)

Já perto da morte estava,

Inda de amores cantava;

Por isso alegre vivia.

 

Aos negros, duros pesares

Não resiste um peito fraco,

Se o amor o não fortalece;

O mesmo Jove carece

De Cupido e mais de Baco.”[124] 

 

Eu lhe respondo: “Perjuro,

Nada creio do que dizes!

Porque já te fui sujeito;

Inda conservo no peito

Estas frescas cicatrizes.

 

Se o mundo conhece males,

Tu os maiores fizeste;

Sim, tu a Troia queimaste,

Tu a Cartago abrasaste,

E tu a Antônio perdeste”.[125] 

 

Amor, vendo que da oferta

Algum apreço não faço,

Me diz, afoito, que trate

De ir com ele a combate,

Peito a peito, braço a braço.

 

Vou buscar as minhas armas;

Cinjo primeiro que tudo

O brilhante arnês; e à pressa

Ponho um elmo na cabeça,

Tomo a lança e o grosso escudo.

 

Mal no Campo me apresento,

Marília (oh, Céus!) me aparece:

Logo que os olhos me fita,

O meu coração palpita,

A minha mão desfalece.

 

Então me diz o tirano:

“Confessa, louco, o teu erro:

Contra as armas da beleza

Não vale a externa defesa

Dessa armadura de ferro”.

Lira XXX

Junto a uma clara fonte

A mãe de Amor se sentou;

Encostou na mão o rosto,

No leve sono pegou.

 

Cupido, que a viu de longe,

Contente ao lugar correu;

Cuidando que era Marília,

Na face um beijo lhe deu.

 

Acorda Vênus irada:

Amor a conhece; e então,

Da ousadia que teve

Assim lhe pede o perdão:

 

“Foi fácil, ó mãe formosa,

Foi fácil o engano meu;

Que o semblante de Marília

É todo o semblante teu.”[126] 

Lira XXXI

Minha Marília,

Se tens beleza,

Da Natureza

É um favor.

Mas se aos vindouros

Teu nome passa,

É só por graça

Do Deus de amor,

Que, terno, inflama

A mente, o peito

Do teu Pastor.

 

Em vão se viram

Perlas[127] mimosas,

Jasmins e rosas

No rosto teu.

Em vão terias

Essas estrelas

E as tranças belas,

Que o Céu te deu,

Se em doce verso

Não as cantasse

O bom Dirceu.

 

O voraz tempo

Ligeiro corre;

Com ele morre

A perfeição.

Essa, que o Egito,

Sábia, modera,

De Marco impera

No coração;

Mas já Otávio

Não sente a força

Do seu grilhão.[128]

 

Ah! vem, ó bela,

E o teu querido,

Ao Deus Cupido

Louvores dar!

Pois faz que todos

Com igual sorte

Do tempo e morte

Possam zombar:

Tu por formosa,

E ele, Marília,

Por te cantar.

 

Mas ai! Marília,

Que de um amante,

Por mais que cante,

Glória não vem!

Amor se pinta

Menino e cego;

No doce emprego

Do caro bem

Não vê defeitos

E aumenta quantas

Belezas tem.

 

Nenhum dos Vates,

Em teu conceito,

Nutriu no peito

Néscia paixão?

Todas aquelas

Que vês cantadas

Foram dotadas

De perfeição?

Foram queridas;

Porém formosas

Talvez que não.

 

Porém que importa

Não valha nada

Seres cantada

Do teu Dirceu?

Tu tens, Marília,

Cantor celeste;

O meu Glauceste

A voz ergueu:

Irá teu nome

Aos fins da Terra,

E ao mesmo Céu.

 

Quando nas asas

Do leve vento

Ao Firmamento

Teu nome for,

Mostrando Jove

Graça extremosa,

Mudando a Esposa

De inveja a cor;

De todos há de,

Voltando o rosto,

Sorrir-se Amor.

 

Ah! não se manche

Teu brando peito

Do vil defeito

Da ingratidão!

Os versos beija,

Gentil Pastora,

A pena adora,

Respeita a mão,

A mão discreta

Que te segura

A duração.

Lira XXXII

Numa noite, sossegado,

Velhos papéis revolvia

E, por ver de que tratavam,

Um por um a todos lia.

 

Eram cópias emendadas,

De quantos versos melhores

Eu compus na tenra idade

A meus diversos amores.

 

Aqui leio justas queixas

Contra a ventura formadas,

Leio excessos mal aceitos,

Doces promessas quebradas.

 

Vendo sem-razões tamanhas,

Eu exclamo, transportado:

“Que finezas tão mal-feitas!

Que tempo tão mal passado!”

 

Junto pois num grande monte

Os soltos papéis e, logo,

Por que relíquias não fiquem,

Os intento pôr no fogo.

 

Então vejo que o Deus cego,

Com semblante carregado,

Assim me fala e crimina[129] 

O meu intento acertado:[130] 

 

“Queres queimar esses versos?

Dize, Pastor atrevido,

Essas Liras não te foram

Inspiradas por Cupido?

 

Achas que de tais amores

Não deve existir memória?

Sepultando esses triunfos,

Não roubas a minha glória?”

 

Disse Amor; e mal se cala,

Nos seus ombros a mão pondo,

Com um semblante sereno

Assim à queixa respondo:

 

“Depois, Amor, de me dares

A minha Marília bela,

Devo guardar umas Liras

Que não são em honra dela?

 

E que importa, Amor, que importa

Que a estes papéis destrua?

Se é tua esta mão que os rasga,

Se a chama, que os queima é tua?”

 

Apenas Amor me escuta,

Manda que os lance nas brasas;

E ergue a chama co vento

Que formou, batendo as asas.

Lira XXXIII

Pega na lira sonora,

Pega, meu caro Glauceste;

E ferindo as cordas de ouro,

Mostra aos rústicos Pastores

A formosura celeste

De Marília, meus amores.

Ah! pinta, pinta

A minha bela!

E em nada a cópia

Se afaste dela.

 

Que concurso, meu Glauceste,

Que concurso tão ditoso!

Tu és digno de cantares

O seu semblante divino;

E o teu canto sonoroso

Também do seu rosto é dino.[131] 

Ah! pinta, pinta

A minha bela!

E em nada a cópia

Se afaste dela.

 

Para pintares ao vivo

As suas faces mimosas,

A discreta Natureza

Que providência não teve!

Criou no jardim as rosas,

Fez o lírio e fez a neve.

Ah! pinta, pinta

A minha bela!

E em nada a cópia

Se afaste dela.

 

A pintar negras tranças

Peço que mais te desveles,

Pinta chusmas de amorinhos

Pelos seus fios trepando,

Uns tecendo cordas deles,

Outros com eles brincando.

Ah! pinta, pinta

A minha bela!

E em nada a cópia

Se afaste dela.

 

Para pintares, Glauceste,

Os teus beiços graciosos,

Entre as flores tens o cravo,

Entre as pedras a granada,

E para os olhos formosos

A Estrela da madrugada.

Ah! pinta, pinta

A minha bela!

E em nada a cópia

Se afaste dela.

 

Mal retratares do rosto

Quanto julgares preciso,

Não dês a cópia por feita;

Passa a outros dotes, passa:

Pinta da vista e do riso

A modéstia mais a graça.

Ah! pinta, pinta

A minha bela!

E em nada a cópia

Se afaste dela.

 

Pinta o garbo de seu rosto

Com expressões delicadas;

Os seus pés, quando passeiam,

Pisando ternos amores;

E as mesmas plantas calcadas

Brotando viçosas flores.

Ah! pinta, pinta

A minha bela!

E em nada a cópia

Se afaste dela.

 

Pinta mais, prezado amigo,

Um terno amante beijando

Suas douradas cadeias;

E, em doce pranto desfeito,

Ao monte e vale ensinando

O nome que tem no peito.

Ah! pinta, pinta

A minha bela!

E em nada a cópia

Se afaste dela.

 

Nem suspendas o teu canto,

Inda que, Pastor, se veja

Que a minha boca suspira,

Que se banha em pranto o rosto;

Que os outros choram de inveja,

E chora Dirceu de gosto.

Ah! pinta, pinta

A minha bela!

E em nada a cópia

Se afaste dela.

 

[1]. Derivação de Maria, Marília é o nome poético escolhido por Tomás Antônio Gonzaga para se referir à amada, Maria Doroteia Joaquina de Seixas.

[2]. Propriedade rústica no campo.

[3]. Boa sorte, destino.

[4]. Alusão ao mito de Narciso, jovem que, tendo desprezado o amor de uma ninfa, recebe o suplício de se apaixonar por si mesmo ao ver sua imagem refletida numa fonte.

[5]. Para demonstrar seu prestígio em relação aos outros pastores, diferenciando-se aos olhos da amada, Dirceu se refere à Arcádia, região grega do nascimento dos deuses, onde os homens viviam como eles, sem ter que trabalhar, uma vez que a terra tudo produzia.

[6]. Instrumento tradicional de cegos e pastores.

[7]. Um dos pseudônimos árcades de Cláudio Manuel da Costa, considerado o grande mestre da poesia árcade, e amigo de Gonzaga. Nesta estrofe, para convencer Marília de seus atributos, Dirceu diz que até o mestre o invejaria.

[8]. Elogio à Marília, pintada pelo poeta como mais bela que as deusas do Olimpo.

[9]. Animal abatido para a alimentação humana.

[10]. Gordo.

[11]. Tipo de flor.

[12].