Foi uma verdadeira cena de comédia, de que a maioria dos circunstantes ria-se a não poder mais; os dois meninos, autores principais da obra, nadavam em um mar de rosas.

Ó mei cari fratelli! exclamava por um lado o capuchinho com voz aflautada e meiga, la voce della Providenza...

Semelhante às trombetas de Jericó, rouquejava por outro lado o mestre de cerimônias...

Piage al cor... acrescentava o capuchinho.

Anunciando a queda de Satanás, prosseguia o mestre de cerimônias.

E assim levaram por algum tempo os dois, acompanhados por um coro de risadas e confusão, até que o capuchinho se resolveu a abandonar o posto, murmurando despeitado:

Che bestia, per Dio!

Acabado o sermão, desceu do púlpito o mestre de cerimônias já um pouco aplacado por ter conseguido fazer-se ouvir, porém ainda bastante furioso para vir protestando arrancar uma por uma as quatro orelhas dos dois pequenos, de quem desconfiava que partira o que acabava de sofrer. Chegou à sacristia, que estava cheia de gente; vendo os dois meninos investiu para eles, e prendendo a cada um com uma das mãos pela gola da sobrepeliz...

– Então... então... dizia com os dentes cerrados... a que horas é o sermão?

– Eu disse às nove, sim, senhor; pode perguntar à moça, que ela bem ouviu...

– Que moça, menino, que moça? disse o padre exasperado por estar tanta gente e ouvir aquilo.

– Aquela moça cigana, lá onde V. Rev.ma estava; ela ouviu, eu disse às nove.

– Oh! disseram os circunstantes.

– É falso, respondeu com força o mestre de cerimônias largando os meninos para evitar novas explicações, e dando satisfação aos circunstantes com protestos de ser falso o que os meninos acabavam de dizer.

Entretanto serenou o alvoroço, acabou-se a festa, o povo retirou-se. O mestre de cerimônias sentado a um canto pensava consigo:

– E que tal? não ia perdendo o meu sermão deste ano por causa daquele endiabrado?! Depois que o maldito menino entrou para esta igreja anda tudo aqui em uma poeira! Ainda em cima dizer à vista de tanta gente que eu estava em casa da cigana! Nada... vou dar com ele daqui para fora...

E com efeito tratou de fazer com que os dois meninos, ou pelo menos o mais novo, fosse despedido. Sem muito custo o conseguiu, porque por certo não gozava ele de grandes simpatias.

Foi esta a pior peça que se lhe podia pregar: ele estava como em um paraíso, e expeliam-no dele; e depois a maldita vizinha como não havia ficar satisfeita vendo-o despedido, e a madrinha que se opusera formalmente à sua entrada para a Sé... tudo isto fazia-o desesperar...

Não se tinha ele enganado em suas previsões; apenas chegou em casa, e que se soube pela vizinhança do que se tinha passado, a vizinha, pilhando de jeito o compadre:

– Então, disse-lhe, eu não lhe tenho dito que aquilo tem maus bofes?...

– Senhora, pelo amor de Deus, meta-se com a sua vida...

– Estou vingada... pensava que a minha mantilha nova havia de ficar assim...

O compadre retirou-se para evitar nova desordem.

A comadre, apenas soube também do sucesso, veio ter com o compadre para dizer-lhe:

– Eu bem lhe digo; ele não serve para aquilo; é melhor pô-lo na Conceição; lá há mais sujeição; olhe, eu podia arranjar isso com o tenente-coronel...

O compadre porém não pareceu resolvido a aceitar o conselho.

XV. Estralada

Apesar de tudo quanto havia já sofrido por amores, o Leonardo de modo algum queria emendar-se; enquanto se lembrou da cadeia, dos granadeiros e do Vidigal esqueceu-se da cigana, ou antes só pensava nela para jurar esquecê-la; quando porém as caçoadas dos companheiros foram cessando, começou a renovar-se a paixão, e teve lugar uma grande luta entre a sua ternura e a sua dignidade, em que esta última quase triunfava, quando uma descoberta maldita veio transtornar tudo. Não sabemos por que meio o Leonardo descobriu um dia que o rival feliz que o pusera fora de combate era o reverendo mestre de cerimônias da Sé! Subiu-lhe com isto o sangue à cabeça:

– Pois um padre!?... dizia ele; é preciso que eu salve aquela criatura do inferno, onde ela se está metendo já em vida...

E começou de novo em tentativas, em promessas, em partidos para com a cigana, que a coisa alguma queria dobrar-se. Um dia que a pilhou de jeito à janela abordou-a, e começou ex-abrupto a falar-lhe deste modo:

– Você está já em vida no inferno!... pois logo um padre?!...

A cigana interrompeu-o:

– Havia muitos meirinhos para escolher, mas nenhum me agradou...

– Mas você está cometendo um pecado mortal... está deitando sua alma a perder...

– Homem, sabe que mais? você para pregador não serve, não tem jeito... eu como estou, estou muito bem; não me dei bem com os meirinhos; eu nasci para coisa melhor...

– Pois então tem alguma coisa que dizer de mim?... Hei de me ver vingado... e bem vingado.

– Ora! respondeu a cigana rindo-se.

E começou a cantarolar o estribilho de uma modinha.

O Leonardo compreendeu que falando-lhe no inferno e em castigos da outra vida nada arranjava, e decidiu dar-lhe o castigo mesmo nesta vida. Retirou-se murmurando:

– Faço uma estralada, dê no que der...

Poucos dias depois aconteceu que a cigana fazia anos; segundo o costume, apenas apareceu este pretexto, armou-se logo uma função: não nos daremos ao trabalho de descrevê-la; em um dos capítulos antecedentes já viu o leitor o que isso era: viola, modinhas, fado, algazarra, e estava a festa completa. O Leonardo soube logo do que havia, e jurou que esse seria o dia da vingança.

Ser valentão foi em algum tempo ofício no Rio de Janeiro; havia homens que viviam disso: davam pancada por dinheiro, e iam a qualquer parte armar de propósito uma desordem, contanto que se lhes pagasse, fosse qual fosse o resultado.

Entre os honestos cidadãos que nisto se ocupavam, havia, na época desta história, um certo Chico-Juca, afamadíssimo e temível. Seu verdadeiro nome era Francisco, e por isso chamaram-no a princípio – Chico –; porém tendo acontecido que conseguisse ele pelo seu braço lançar por terra do trono da valentia a um companheiro que era no seu gênero a maior reputação do tempo, e a quem chamavam – Juca – juntaram este apelido ao seu, como honra pela vitória, e chamaram-no daí em diante – Chico-Juca.

Este homem era o desespero do Vidigal; tinha-lhe já pregado umas poucas, porém ainda não tinha sido possível agarrá-lo. Os granadeiros conheciam-no às léguas, porém nunca conseguiram pôr-lhe as mãos.

Tendo levado todo o dia à espreita, o Leonardo viu entrar sorrateiramente o mestre de cerimônias, pela volta de ave-maria, quando ainda não tinha começado a função.

– Ah! nem esta noite quer perder?! Pois há de sair-lhe cara a funçanata...

Saiu dali e foi direito procurar o Chico-Juca, que era seu antigo conhecido; achou-o em uma taverna defronte do Bom Jesus. O Chico-Juca era um pardo, alto, corpulento, de olhos avermelhados, longa barba, cabelo cortado rente; trajava sempre jaqueta branca, calça muito larga nas pernas, chinelas pretas e um chapelinho branco muito à banda; ordinariamente era afável, gracejador, cheio de ditérios e chalaças; porém nas ocasiões de sarilho, como ele chamava, era quase feroz. Como outros têm o vício da embriaguez, outros o do jogo, outros o do deboche, ele tinha o vício da valentia; mesmo quando ninguém lhe pagava, bastava que lhe desse na cabeça, armava brigas, e só depois que dava pancadas a fartar é que ficava satisfeito; com isso muito lucrava: não havia taverneiro que lhe não fiasse e não o tratasse muito bem.

Estava na porta da taverna sentado sobre um saco quando apareceu-lhe o Leonardo.

– Olá, mestre Pataca! disse ele apenas o viu, pensei que ainda estava de xilindró tomando fortuna por causa da cigana...

– É mesmo por causa desse diabo que te venho procurar.

– Homem, cabeçada e murro velho sei eu dar, porém fortuna! nunca tive tal habilidade...

– Não se trata de fortuna, disse-lhe o Leonardo baixinho, trata-se de pancada velha...

– Ui! temos dança?... vai-te embora... tu não és capaz de armar um sarilho... sempre foste um podre!...

– Bem sei, eu não sou capaz... mas tu...