Está no volume sobre sua embaixada na Espanha; não é dos melhores, não passa de um diário, mas ao menos é um diário maravilhosamente bem escrito, o que já faz uma diferença em relação a esses diários aborrecidos que nos sentimos obrigados a ler de manhã e à noite." - "Não sou de sua opinião, há dias em que a leitura dos jornais me parece bem agradável...", interrompeu minha tia Flora, para mostrar que havia lido a frase sobre o Corot de Swann no figaro. "Quando falam de coisas ou de pessoas que nos interessam!", encareceu minha tia Céline. "Não digo que não", respondeu Swann espantado. "O que censuro nos jomais é o fato de nos obrigar a prestar atenção, todos os dias, em coisas insignificantes, ao passo que lemos três ou quatro vezes na vida os livros em que há coisas essenciais. Uma vez que rasgamos febrilmente, todas as manhãs, a faixa que envolve o jornal, então as coisas deviam ser mudadas e pôr no jornal, digamos, as Pensées de Pascal! (acentuou o título com ênfase irônica para não clara impressão de pedantismo). E no volume de corte dourado, que só abrimos uma vez a cada dez anos", acrescentou, testemunhando pelas coisas mundanas esse desdém que certas pessoas da sociedade afetam, "é que leríamos que a rainha da Grécia foi a Cannes ou que a princesa de Léon deu um baile à fantasia. Assim, estaria restabelecida a proporção justa." Mas, lamentando ter-se permitido falar de coisas sérias, mesmo de passagem, disse ironicamente: "Grande conversa a nossa! Não sei por que tocamos nesses “cumes” e, voltando-se para meu avô:
"Portanto, Saint-Simon conta que Maulévrier é o tal de quem ele diz: ' Nunca vi nessa garrafa ordinária mais que mau humor, grosseria e asneiras."-"Ordinárias ou não, conheço garrafas em que há coisas bem diversas", disse Flora vivamente, fazendo questão de, ela também, agradecer a Swann, pois o vinho de Asti era presente para ambas as irmãs. Céline se pôs a rir. Swann, atrapalhado, prosseguiu: "Não sei se foi ignorância ou esperteza', escreve Saint-Simon, 'mas a verdade é que ele pretendeu dar a mão a meus filhos. Percebi logo e pude evitá-lo." Meu avô já se extasiava com o 'ignorância ou esperteza', mas a Srta. Céline, em quem o nome de Saint-Simon um literato impedira a anestesia completa das faculdades auditivas, já se mostrava indignada: "Como? Você admira isso? Muito bem! Mas o que poderá isso querer dizer; que um homem não vale tanto quanto outro? Que importância tenha que seja duque ou cocheiro, se possui inteligência e bom coração? Boa maneira tinha o seu Saint-Simon de educar os filhos, se não lhes dizia que dessem a mão a todos os homens honestos. Mas é simplesmente abominável.
E o senhor ousa citar uma coisa dessas?" E meu avô, consternado, sentindo, diante dessa obstrução, a impossibilidade de conseguir que Swann contasse as histórias que poderiam diverti-lo, dizia em voz baixa a mamãe: "Lembra-me então aquele verso que me ensinaste e que tanto me alivia em momentos assim. Ah, sim! 'Senhor, quantas virtudes me fazeis odiar.' Ah, como é bom!"
Eu não desviava o olhar de minha mãe, sabia que quando estivessem à mesa não me permitiriam que ficasse até o fim da refeição, e que, para não contrariar meu pai, mamãe não me deixaria beijá-la várias vezes diante de todos, como se estivesse no meu quarto. Assim, prometi a mim mesmo, na sala de jantar, quando começassem a comer e eu sentisse aproximar-se a hora, que tiraria antecipadamente daquele beijo, que seria curto e furtivo, tudo o que pudesse extrair sozinho; escolher com o olhar o ponto da face em que a beijaria, preparar meu pensamento para poder, devido a esse começo mental de beijo, consagrar todo minuto que mamãe me concedesse para sentir sua face contra meus lábios, como um pintor, que só pode obter pequenas sessões de pose, prepara sua palheta e faz de memória, de acordo com seus apontamentos, tudo aquilo para o que pode, a rigor, prescindir do modelo. Mas eis que, antes de tocarem a sineta para o jantar, meu avô teve a ferocidade inconsciente de dizer: "O menino parece cansado; deveria subir para se deitar. Aliás, a gente janta bem tarde esta noite." E meu pai que não observava com tanto escrúpulo quanto minha avó e minha mãe o espírito dos tratados, disse: "Sim. Vamos, vai te deitar!" Eu quis beijar mamãe; nesse momento ouviu-se a sineta do jantar. "Não, não, larga a tua mãe, vocês já se despediram bastante, essas manifestações são ridículas. Vamos, sobe!"
E tive de subir sem viático, tive de subir cada lanço da escada, como diz a expressão popular, "contra o coração", subindo contra o meu coração, que desejava voltar para junto de minha mãe porque ela não lhe dera, ao me beijar, licença de me seguir. Esses degraus detestados que eu subia sempre tão triste, exalavam um cheiro de verniz que de certa forma absorvera e fixara esse tipo particular de mágoa que eu voltava a sentir todas as noites e que a fazia talvez mais cruel agora, porque, sob esse aspecto olfativo, a minha inteligência não mais podia tomar parte nela.
Quando dormimos e uma dor de dente ainda só nos é perceptível como uma moça que nos esforçamos duzentas vezes seguidas por tirar da água ou como um verso de Moliere que repetimos sem parar, é um grande alívio acordarmos e que nossa inteligência possa desembaraçar a idéia da dor de dente de qualquer disfarce heróico ou cadenciado. O inverso desse alívio era o que eu sentia quando o desgosto de subir para o quarto me penetrava de modo infinitamente mais rápido, quase instantâneo, a um tempo insidioso e brusco, por meio da inalação muito mais tóxica que a penetração moral -do odor do verniz característico dessa escada.
Uma vez no quarto, era preciso fechar todas as saídas, trancar os postigos, cavar o meu próprio túmulo enquanto desfazia as cobertas, vestir o sudário da minha camisola de dormir. Mas antes de me sepultar no leito de ferro que haviam ajuntado ao quarto, pois eu sentia muito calor no verão sob as cortinas de creps do leito grande, tive um momento de revolta, e resolvi tentar um ardil de condenado. Escrevi a minha mãe, rogando que fosse até meu quarto para um caso grave que não podia dizer na carta.
Meu medo era que Françoise, a cozinheira de minha tia que estava encarregada de cuidar de mim quando eu estava em Combray, se recusasse a entregar minhas palavras. Suspeitava que, para ela, dar um recado a minha mãe quando havia gente de fora, lhe parecesse tão impossível como para o porteiro de um teatro enviar uma carta a um ator enquanto ele está em cena. Para julgar as coisas que se devem ou não fazer, ela possuía um código imperioso, abundante, sutil e intransigente, com distinções imperceptíveis ou ociosas (o que lhe dava o aspecto dessas leis antigas que, ao lado das prescrições ferozes como massacrar as crianças ao peito das mães, proibem, com uma delicadeza exagerada, que se cozinhe o cabrito no leite da própria mãe ou que se coma o tendão de um animal). Esse código, a julgar pela súbita obstinação com que ela se negava a cumprir certas tarefas que lhe dávamos, parecia ter previsto complexidades sociais e refinamentos mundanos de tal espécie que nada no ambiente e na sua vida de doméstica da aldeia teria podido lhe sugerir; e era-se obrigado a confessar que existia nela um passado francês muito antigo, nobre e mal compreendido, como em algumas dessas cidades manufatureiras onde velhos palácios testemunham que teria havido outrora uma vida de corte, e onde os operários de uma fábrica de produtos químicos trabalham em meio a delicadas esculturas que representam o milagre de São Teófilo ou os quatro jovens Aymon.
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