O Arrependimento

O Arrependimento, by Camilo Castelo Branco
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Title: O Arrependimento
Author: Camilo Castelo Branco
Release Date: November 6, 2007 [EBook #23346]
Language: Portuguese
Character set encoding: ISO-8859-1
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O ARREPENDIMENTO.
O ARREPENDIMENTO.
ROMANCE
Em tempos da minha mocidade costumava visitar a miudo uma boa velha, minha visinha, que me honrava com a sua estima e amisade. Humildemente confesso que não ha sociedade mais deleitosa e agradavel, do que a de uma mulher que soube envelhecer. A sua conversação instructiva e divertida, é um inesgotavel thesouro de lembranças, anecdotas, observações chistosas e reflexões circumspectas, é finalmente uma revista do passado.
D. Mafalda, deixem-me assim chamar-lhe, juntava á amenidade da conversa, a do caracter, que era brando e indulgente.
Quando tinha occasião de ir passar uma noite com ella, parecia-me que as horas voavam ligeiras e que corriam mais rapidas, do que quando as gastava a distribuir finezas e galanteios ás mais formosas rainhas dos mais brilhantes salões. Era sempre com vivo pesar que a via apontar para o relogio, indicando-me que a hora de me retirar tinha chegado, e voltava a minha casa com o espirito mais rico, e o coração satisfeito e melhor.
A historia que vou contar-vos, minhas caras leitoras, foi-me dita por D. Mafalda n'um d'estes serãos em que vos fallei.
Era n'uma bella noite de Junho; fui encontral-a sentada na sua cadeira á Voltaire, tendo a seus pés, deitado em um cochim, o seu cãosinho querido; os olhos tinha-os semi-abertos, um sorriso nos labios, e parecia respirar com prazer a aragem, que, embalsamada pelas flôres do jardim, se coava pela janella meia aberta. Quando cheguei junto d'ella vinha indignado por que um de meus parentes tinha sido victima d'um abuso de confiança; contei-lhe o succedido, e no calor da narração não poupei ao culpado as maiores imprecações, nem deixei de lhe dizer que desejava fazer-lhe todo o mal possivel.
--Devagar, meu querido amigo--me disse ella--não o julgava tão irrascivel, nem que tivesse tão pouca caridade para com o proximo. Sabe lá, se, com a vida, não tiraria ao culpado o merito de para o futuro se poder rehabilitar pelo arrependimento, e se o momento em que lhe infringisse o castigo não seria o destinado por Deus para esse arrependimento?
--Eis-ahi, minha cara visinha, uma doutrina, permitta-me a expressão, um pouco subversiva da ordem social.
--Deus me defenda--me replicou--de querer que o culpado não seja castigado, e que a sociedade fique indefeza dos crimes que um seu membro praticou contra ella; quiz dizer sómente que devia deixar ás leis o cuidado de castigar o delinquente, e que o meu querido amigo, não devia, como individuo, fechar assim desapiedadamente o coração a todo o sentimento de commiseração por um desgraçado e infeliz, no coração do qual talvez ainda bruxelei algum clarão de virtude, que uma occasião favoravel e propicia, que se apresente, ainda póde despertar, e fazer com que esse membro da sociedade, que julga inutil, se torne bom e aproveitavel.
Como eu respondesse a isto, fazendo um d'estes movimentos de cabeça, que são um protesto mudo e respeitoso, ella acrescentou:
--Está com paciencia para me aturar ouvindo uma historia, pois que ainda temos algumas horas?
Não recusei: uma historia era uma fortuna para combater a exaltação d'espirito em que estava.
D. Mafalda principiou assim:
--Emilio da Cunha era o mais velho de tres irmãos, dos quaes, o mais novo, vivia ha muitos annos no Rio de Janeiro, onde tinha alcançado fortuna. O segundo nunca deixou o Porto, sendo sempre infeliz nos seus commettimentos e especulações. Emilio da Cunha, á custa de muito trabalho e economias, pôde alcançar uma fortunasinha, que lhe permittia esperar com socego, o momento de descançar da vida laboriosa em que tinha vivido.
Uma quarta pessoa completava esta familia, que era uma irmã, que tendo seguido seu marido á India, para onde elle tinha sido despachado, e não vindo nenhum d'elles a figurar n'esta minha historia, não lh'os recordarei mais.
Aconteceu que o irmão de Emilio da Cunha, que residia no Porto, por uma d'estas catastrophes que occasionam os jogos de bolsa, falliu. Teve tal sentimento por este facto, que falleceu tres dias depois, atacado d'uma febre cerebral. A herança, que deixou, foram dividas e um filho.
Emilio da Cunha, que tinha um coração bondoso, e um caracter pundonoroso, para que a memoria de seu irmão não ficasse deshonrada, comprometteu-se a pagar as dividas e recolheu em sua casa o filho para lhe substituir o pai, que tinha perdido; procedimento louvavel, e digno de se admirar, sabendo-se que elle tinha uma filha, para quem, passados quatro ou cinco annos tinha a procurar um casamento vantajoso.
Roberto, se chamava o sobrinho de Emilio da Cunha, tinha já 15 annos d'idade, mas o pai, inteiramente entregue ás especulações, e aos cuidados, que ellas trazem comsigo, descuidou completamente a sua educação, por isso o seu retrato moral, n'esta occasião, nada tinha de vantajoso; o espirito tinha-o completamente inculto; as noções que possuia do justo e do injusto eram as mais erroneas e disparatadas; o respeito aos direitos d'outrem era para elle uma invenção estupida dos homens, condemnada pela natureza, e a verdadeira liberdade consistia em fazer o mal impunemente. Se algum bom instincto, ou algum vislumbre de virtude, existia no coração de Roberto, ainda estava em embryão, por que se não tinha demonstrado. Quantas e quantas vezes, em quanto que o pai, cego pelas especulações, concentrava todas as suas faculdades intellectuaes na realisação d'um impossivel, não deixou Roberto de ir ao collegio, fazendo o que em termo escolar, se chama gazear, e gastava as horas d'estudo em andar a vagabundear pelos campos e praças. D'ahi proveio o tomar relações com meia duzia de garotos, ou vadios, permitta-me a phrase, para quem nada era sagrado nem nas acções, nem nas palavras. D'ahi nasceu a falta de respeito pela propriedade alheia, roubando os pomares; e o endurecimento de coração, castigando barbaramente animaes inoffensivos.
Emilio da Cunha reconheceu logo os maus instinctos de que seu sobrinho era dotado, e a desmoralisação, que já se tinha infiltrado no seu coração, mas concebeu a esperança de o regenerar com desvelos, paciencia, e sobre tudo bons exemplos. Sua filha, a que chamarei Valentina, de 14 annos d'idade, contribuiu poderosamente para a realisação d'este seu empenho, tão justo e louvavel. Era uma menina para quem a natureza tinha sido prodiga em encantos de rosto, d'espirito e coração, a ponto de qualquer que a via a admirar, e de quem a ouvia amal-a immediatamente. Tinha uma tal influencia, ou magia sobre os que se acercavam d'ella, que aos bons tornava-os melhores, e aos maus fazia-lhe retirar envergonhados para o fundo do coração os maus instinctos. Esta magia não teve menos poder sobre Roberto, do que sobre os outros, de sorte que a regeneração que elle soffreu, nos seus costumes e acções, foi tão sensivel, que o bondoso Emilio da Cunha revia-se alegre e contente na sua obra, e congratulava-se dos resultados que tinha colhido.
Deu-se porém uma circumstancia feliz, mas que ao mesmo tempo foi desgraçada, que deteve Roberto repentinamente na boa estrada em que se tinha embrenhado, e na qual parecia caminhar resolutamente. Por uma carta chegada n'um dos paquetes inglezes do Brazil, soube Emilio da Cunha, que seu irmão mais novo tinha fallecido, deixando-o, por elle ser o seu mais proximo parente, herdeiro d'uma fortuna consideravel. Bens rusticos, e estabelecimentos industriaes é no que consistia a fortuna, dos quaes se poderia colher bons lucros, sendo bem geridos, conforme o tinha praticado o seu defunto proprietario; mas Emilio da Cunha, além de se não julgar com conhecimentos e forças para bem gerir a industria com que seu irmão tinha feito fortuna, não tinha desejo, nem queria expatriar-se. Foi até com immensa repugnancia que se resolveu a ir ao Brazil tomar posse e liquidar a herança; parecia que um secreto presentimento o avisava do que tinha de acontecer, levando-o a considerar como uma desgraça esta viagem, a que os sagrados direitos de sua predilecta filha Valentina, o obrigavam a emprehender.
Partiu finalmente, depois de ter tomado todas as precauções para a tranquillidade de seu espirito. Valentina entrou em um dos collegios de educação mais acreditados do Porto, e Roberto ficou n'uma casa particular, onde lhe deviam prestar todos os cuidados, que exigiam a sua idade, pois que já então tinha 17 annos, e a sua completa ignorancia, de que até uma criança de 8 annos poderia zombar.
Emilio da Cunha aportou a salvamento ás terras de Santa Cruz, e logo que saltou em terra, desenvolveu a maior actividade, e procurou por todos os meios possiveis abreviar rapidamente os seus negocios, mas infelizmente os resultados não correspondiam aos seus esforços e desejos, porque de todos os lados, e a todos os momentos estavam sempre a surgir empecilhos e embaraços não prevenidos nem esperados. Havia já um anno que Emilio da Cunha tinha chegado ao Brazil, e ainda os seus negocios não estavam mais adiantados, que no primeiro dia.
Cançado, desanimado e affectado de melancolia, ou spleen, como lhe chamaria um nosso fiel alliado britannico, mortificado por um desassosego de que não podia explicar a causa, deliberou entregar os seus negocios e a liquidação e arrecadação da heranca a um procurador, e embarcar-se no primeiro paquete, que seguisse viagem para Portugal.
Que se tinha porém passado no Porto, durante este tempo?
É o que lhe vou contar, meu visinho, se ainda tiver paciencia para me ouvir, me disse D. Mafalda, e o que vou fazer ás minhas leitoras, se ellas quizerem ter a mesma paciencia de me lêr.
Roberto, separado de sua prima, aborrecido e dominado pela priguiça, fugiu um bello dia da casa onde se achava hospedado, foi procurar, e infelizmente encontrou, os seus antigos companheiros da vadiagem, que tinham quasi todos seguido a estrada do vicio e do crime. Arrastaram portanto comsigo o desventurado Roberto para esse despenhadeiro, na baixa do qual se encontra a escoria da sociedade. Roberto tinha por companheiros habituaes homens criminosos, de cara sinistra, maneiras brutaes, linguagem grosseira e vestidos esfarrapados, n'uma palavra mendigos, ou ladrões.
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