Vou lhe dar o curso dos acontecimentos tão bem quanto posso, e você sugerirá qualquer coisa que possa ter esquecido.
“Minhas investigações mostram de maneira insofismável que o retrato de família não mentia, e que aquele sujeito era realmente um Baskerville. Era filho daquele Rodger Baskerville, o irmão mais moço de Sir Charles, que fugiu com uma reputação sinistra para a América do Sul, onde constava que teria morrido solteiro. Na verdade, casara-se e tivera um filho, esse sujeito, cujo nome real é o mesmo do pai. Ele se casou com Beryl Garcia, uma das beldades da Costa Rica, e, tendo roubado uma soma considerável de dinheiro público, mudou seu nome para Vandeleur e fugiu para a Inglaterra, onde fundou um colégio no leste de Yorkshire. Seu motivo para tentar essa linha especial de negócio foi ter feito amizade com um preceptor tuberculoso na viagem para casa, e usado a capacidade desse homem para tornar o empreendimento um sucesso. Mas Fraser, o preceptor, morreu, e o colégio, que começara bem, decaiu da má reputação para a infâmia. Os Vandeleur julgaram conveniente mudar seu nome para Stapleton, e ele trouxe o resto de sua fortuna, seus planos para o futuro e seu gosto pela entomologia para o sul da Inglaterra. Soube no Museu Britânico que ele era uma autoridade reconhecida no assunto, e que o nome Vandeleur ficou permanentemente associado a certa mariposa que ele foi, em seu tempo de Yorkshire, o primeiro a descrever.

“Um retrospecto.”
[Sidney Paget, Strand Magazine, 1902]
“Agora chegamos à parte de sua vida que se provou de tanto interesse para nós. O sujeito havia evidentemente feito investigações, e descoberto que apenas duas vidas se interpunham entre ele e uma valiosa herança. Quando foi para Devonshire seus planos eram, acredito, extremamente vagos, mas, pelo modo como levou sua mulher consigo disfarçada como sua irmã, fica evidente que tinha más intenções desde o início. É claro que a ideia de usá-la como um chamariz já estava em sua mente, embora ele talvez não soubesse ao certo como os detalhes de sua trama deveriam se encaixar. Seu objetivo final era pôr as mãos na herança, e para tanto estava disposto a lançar mão de qualquer instrumento ou correr qualquer risco. Sua primeira medida foi se estabelecer o mais perto possível de sua casa ancestral, e a segunda cultivar amizade com Sir Charles Baskerville e os vizinhos.
“O próprio baronete lhe falou sobre o cão da família, e assim preparou o caminho para a própria morte. Stapleton, como continuarei a chamá-lo, sabia que o coração do velho era fraco, e que um choque o mataria. Soubera disso pelo dr. Mortimer. Ouvira falar também que Sir Charles era supersticioso, e que levava essa lenda funesta muito a sério. No mesmo instante sua mente engenhosa concebeu uma maneira pela qual o baronete poderia ser levado à morte, de tal modo que fosse praticamente impossível condenar o verdadeiro assassino.
“Tendo concebido a ideia, passou a pô-la em prática com considerável astúcia. Um intrigante comum teria se contentado em trabalhar com um cão feroz. O uso de meios artificiais para tornar o animal diabólico foi um golpe de gênio de sua parte. Comprou o cão em Londres, de Ross e Mangles, os comerciantes de Fulham Road. Era o maior e o mais bravo que possuíam. Trouxe-o pela linha North Devon, e caminhou uma grande distância pela charneca, de modo a levá-lo para casa sem despertar nenhum comentário. Em suas caçadas a insetos, já havia aprendido a penetrar no charco de Grimpen, e assim encontrado um esconderijo seguro para o animal. Ali o abrigou e esperou sua oportunidade.
“Mas ela demorou um pouco a chegar. Era impossível atrair o velho cavalheiro para fora de suas terras à noite. Várias vezes Stapleton se escondeu nas redondezas com seu cão, mas em vão. Foi durante essas buscas infrutíferas que ele, ou melhor, seu aliado, foi visto por camponeses, e que a lenda do cão demoníaco recebeu nova confirmação. Ele tivera a esperança de que sua mulher pudesse atrair Sir Charles para sua ruína, mas nesse ponto ela se mostrou inesperadamente independente. Recusou-se a tentar envolver o velho cavalheiro numa ligação sentimental que pudesse entregá-lo a seu inimigo.
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