Karl, por sua vez, apoiou-se alegremente no braço que o senhor Pollunder tinha colocado ao seu redor: a certeza de que em breve seria um hóspede bem-vindo numa casa de campo bem iluminada, cercada por muros e vigiada por cães, fazia-lhe um bem que excedia todas as medidas, e quando, por causa de um sono que começava a se instalar, ele não compreendia sem erros, ou ao menos sem interrupções, tudo o que o senhor Pollunder dizia, sacudia de vez em quando o corpo e esfregava os olhos, para voltar a verificar se o senhor Pollunder percebia o seu sono, pois era isso que desejava evitar a todo custo.

III.

Uma casa de campo

nos arredores de Nova York

— Chegamos — disse o senhor Pollunder justo num dos momentos ausentes de Karl. O automóvel parou diante de uma casa de campo que, como as casas de campo das pessoas ricas dos arredores de Novayork, era mais ampla e mais alta do que seria necessário para uma casa de campo que deve servir a uma só família. Como apenas a parte inferior da casa estava iluminada, tampouco era possível avaliar até onde ela se elevava. Na frente farfalhavam castanheiros, por entre os quais — o portão já estava aberto — um caminho curto levava até a escadaria da casa. Dado o seu cansaço ao desembarcar, Karl acreditou que a viagem durara, na verdade, bastante tempo. Na escuridão da alameda de castanheiros, escutou uma voz de moça a seu lado dizer:

— Aí está finalmente o senhor Jakob.

— Meu nome é Rossmann — disse Karl, pegando a mão que lhe estendia uma moça de quem agora reconhecia a silhueta.

— Ele é só o sobrinho de Jakob — disse o senhor Pollunder, à guisa de explicação — e seu nome é Karl Rossmann.

— Isso em nada altera o nosso prazer em tê-lo aqui — disse a moça, que não dava muita importância a nomes.

Apesar disso, Karl ainda perguntou, enquanto se dirigia para a casa, caminhando entre o senhor Pollunder e a moça:

— É a senhorita Klara, não?

— Sim — disse ela, e agora uma luz vinda da casa, que lhe permitia distinguir melhor as coisas, caía sobre seu rosto, que ela inclinara na direção dele. — E que eu não queria me apresentar aqui no escuro.

“Será que estava nos esperando no portão?”, pensou Karl, que ao caminhar ia aos poucos acordando.

— Aliás, temos mais um convidado para esta noite — disse Klara.

— Não é possível! — exclamou o senhor Pollunder irritado.

— O senhor Green — disse Klara.

— Quando chegou? — perguntou Karl, como que tomado por algum pressentimento.

— Agora há pouco. Não ouviram o automóvel dele na frente do de vocês?

Karl elevou os olhos em direção a Pollunder para descobrir o que ele pensava do fato, mas ele tinha as mãos enfiadas nos bolsos da calça e apenas pisou com um pouco mais de força ao caminhar.

— De nada adianta morar só parcialmente fora de Nova York, com isso não se fica livre de aborrecimentos. Seremos obrigados a transferir nossa residência para ainda mais longe. Nem que eu tenha de viajar quase toda a noite até chegar em casa.

Pararam diante da escadaria.

— Mas o senhor Green há muito tempo não vinha aqui — disse Klara, que evidentemente concordava plenamente com o pai, mas apesar disso queria tranquilizá-lo.

— Mas por que será que ele vem justo esta noite — disse Pollunder, e suas palavras deslizaram furibundas sobre o carnudo lábio inferior, que como um naco de carne pesado e frouxo facilmente entrou em frenético movimento.

— É mesmo! — disse Klara.

— Talvez ele vá embora logo — observou Karl, ele mesmo admirado de como concordava com aquelas pessoas que até ontem lhe eram completamente estranhas.

— Ah, não! — disse Klara. — Ele deve ter algum grande negócio para o papai, que deve ser discutido por muito tempo, pois ele já me ameaçou, dizendo de brincadeira que, se eu quiser ser uma dona de casa bem-educada, terei de ficar escutando até o amanhecer!

— Era só o que faltava. Então, ele vai passar a noite! — exclamou Pollunder, como se com isso tivessem chegado finalmente ao que havia de pior.

— Realmente eu teria vontade — disse ele, e essa nova ideia o fez ficar mais amável —, eu teria realmente vontade de colocá-lo, senhor Rossmann, no automóvel e levá-lo de volta para a casa do seu tio. A noite de hoje já está de antemão comprometida, e sabe-se lá quando o senhor seu tio permitirá novamente a sua vinda. Mas se eu o levar hoje mesmo de volta, ele não poderá nos negar uma visita sua nos próximos dias.

E já estava pegando na mão de Karl para executar esse plano. Mas o rapaz não se moveu e Klara pediu para deixá-lo ficar, pois ao menos ela e Karl não poderiam ser minimamente perturbados pelo senhor Green; finalmente o próprio Pollunder percebeu que sua decisão não era das mais firmes. Ademais — e esse talvez tenha sido o elemento decisivo —, ouviu-se de repente a voz do senhor Green chamar do patamar superior da escadaria em direção ao jardim:

— Mas onde vocês estavam?

— Venham — disse Pollunder, dobrando em direção à escadaria. Atrás dele iam Karl e Klara, que agora, com a luz, passaram a se examinar mutuamente.

“Que lábios vermelhos ela tem!”, disse Karl consigo mesmo, pensando nos lábios do senhor Pollunder e na bela metamorfose que tinham sofrido na filha.

— Logo depois da ceia — ia dizendo ela — vamos, se estiver de acordo, aos meus aposentos, para que ao menos nós nos livremos desse senhor Green, já que papai tem necessariamente de ocupar-se dele. E então eu vou lhe pedir a gentileza de executar algo no piano para mim, pois papai já me contou que sabe tocar muito bem; eu, infelizmente, sou de todo incapaz de tocar uma peça de música e não ponho a mão no piano, por mais que na verdade eu adore música.

Karl estava completamente de acordo com a proposta de Klara, ainda que desejasse trazer o senhor Pollunder para junto de sua companhia. Diante da gigantesca figura de Green — com o porte de Pollunder, Karl já se havia acostumado —, que ia crescendo lentamente à sua frente à medida que subiam os degraus, perdeu realmente toda a esperança de poder arrancar de alguma maneira o senhor Pollunder das garras daquele homem.

O senhor Green recebeu-os apressado, como se tivessem muito a recuperar, tomou o senhor Pollunder pelo braço e empurrou Karl e Klara à sua frente para o interior da sala de jantar, que tinha uma aparência muito festiva, sobretudo em virtude das flores colocadas sobre a mesa, meio erguidas por entre grupos de folhagem verde, o que tornava duplamente lamentável a presença do incômodo senhor Green. Enquanto aguardava à mesa até que os outros se sentassem, mal pôde Karl apreciar o fato de que a grande porta de vidro que dava para o jardim permanecia aberta, pois um perfume forte penetrava como se estivessem num caramanchão do jardim, quando nesse momento preciso, o senhor Green, ofegante, foi fechar a porta, inclinando-se até os trincos inferiores, esticando-se até os superiores, e tudo com uma agilidade tão jovial que o criado nada mais encontrou para fazer, ainda que tivesse acorrido prontamente. As primeiras palavras do senhor Green à mesa foram expressões admiradas sobre o fato de Karl ter obtido a permissão do tio para realizar aquela visita. Levou à boca grandes colheradas de sopa, uma atrás da outra, e explicava, à direita, para Klara, à esquerda, para o senhor Pollunder, a causa de sua admiração e como o tio vigiava Karl e como era grande o amor do tio por ele, se é que era ainda possível chamar aquilo de amor de tio.

“Não basta ele se intrometer aqui sem necessidade, ele se intromete também entre mim e meu tio”, pensou Karl, sem conseguir engolir uma gota sequer daquela sopa de coloração dourada. Mas depois não quis que percebessem como se sentia mal, e começou a empurrar calado a sopa para dentro. A refeição transcorreu com a lentidão de um suplício. Somente o senhor Green e, no máximo, Klara estavam animados e vez por outra encontravam motivo para uma breve risada. Apenas quando o senhor Green começava a falar de negócios é que o senhor Pollunder entrava algumas poucas vezes na conversa. Contudo, logo passou também a não fazê-lo, e o senhor Green era obrigado, depois de algum tempo, a surpreendê-lo inopinadamente com o tema. Aliás, ele ressaltou — e foi nesse momento que Karl, que escutava com a atenção de quem pressente alguma ameaça, teve de ser advertido por Klara de que o assado estava diante dele e que ele se encontrava num jantar — que a princípio não tivera a intenção de fazer aquela visita inesperada, pois ainda que o negócio a ser discutido fosse particularmente urgente, teria sido possível ter tratado hoje na cidade ao menos da parte mais importante e deixar os aspectos secundários para o dia seguinte ou para mais tarde. Sendo assim, ele estivera de fato na firma do senhor Pollunder muito antes da hora de fechar o comércio, mas não o encontrara, de forma que tinha sido obrigado a telefonar para casa para avisar que passaria a noite fora, e então empreender aquela viagem.

— Então sou eu quem deve pedir desculpas — disse Karl em voz alta, antes que alguém tivesse tido tempo de responder —, pois sou eu o culpado pelo fato de o senhor Pollunder ter deixado a loja mais cedo hoje; lamento muitíssimo.

O senhor Pollunder cobriu a maior parte do rosto com o guardanapo, enquanto Klara dirigiu um sorriso a Karl, mas era não um sorriso solidário, era um sorriso que devia exercer alguma influência sobre ele.

— Não é preciso desculpar-se — disse o senhor Green, destrinchando uma pomba com cortes certeiros —, bem pelo contrário, estou contente de passar a noite em tão boa companhia, ao invés de jantar sozinho em casa, onde me atende minha velha governanta que tem dificuldade para caminhar o trecho que vai da porta até a mesa, de tão velha; e se eu quiser observá-la enquanto ela descreve esse percurso, posso relaxar por um bom tempo apoiado contra o encosto da minha cadeira. Só recentemente consegui que o criado levasse os pratos até a porta da sala de jantar; mas pelo que posso entender, o trecho que vai da porta até a mesa é prerrogativa dela.

— Meu Deus! — exclamou Klara — que lealdade!

— É sim, ainda existe fidelidade no mundo — disse o senhor Green, introduzindo uma porção de comida na boca, onde a sua língua — como observou Karl por acaso — recolheu o alimento com um rápido movimento.