Grandes navios cruzavam uns as rotas dos outros e cediam ao impacto das ondas apenas na medida em que seu peso o permitia. Apertando os olhos, esses navios pareciam oscilar de tão pesados. Em seus mastros traziam bandeirolas estreitas e longas, que embora esticadas pela viagem, ainda se agitavam de um lado para o outro. Salvas ecoavam provavelmente de navios de guerra, e os canhões de um deles, que passava perto, brilhando com o reflexo de sua capa de aço, pareciam acariciados pela viagem segura e lisa, embora não horizontal. Ao menos ali da porta, só se podiam ver ao longe os pequenos naviozinhos e os barcos penetrando em grande quantidade nas aberturas formadas entre os grandes navios. Por trás de tudo isso, porém, estava Novayork a contemplar Karl com as cem mil janelas de seus arranha-céus. Sim, nessa sala sabia-se exatamente onde se estava.
Em torno a uma mesa redonda estavam sentados três senhores: um era um oficial naval, vestindo o uniforme azul do navio; os outros dois, funcionários da capitania dos portos, vestindo seus uniformes pretos americanos. Sobre a mesa estavam dispostos em pilhas altas diversos documentos, pelos quais o oficial, de início, com a pena na mão, passava os olhos para então encaminhá-los aos outros dois, que ora os liam, ora faziam anotações, ora colocavam nas suas pastas, quando não era o caso de que um deles, o qual fazia quase que incessantemente um pequeno ruído com os dentes, ditasse ao colega algo que devia constar de um protocolo.
Próximo à janela, de costas para a porta, estava sentado diante de uma escrivaninha um senhor mais baixo que manipulava uns livros enormes alinhados à sua frente, na altura de sua cabeça, sobre uma pesada prateleira. A seu lado estava uma caixa-forte aberta, à primeira vista, vazia.
A segunda janela estava desocupada e oferecia a melhor vista. Perto da terceira, no entanto, estavam dois senhores conversando a meia-voz. Um deles, que se apoiava ao lado da janela, vestia também o uniforme do navio e brincava com o punho da espada. O homem com quem conversava estava voltado para a janela e, de quando em quando, com um movimento deixava a descoberto parte da série de condecorações espetadas no peito do outro. Portava trajes civis e trazia uma fina bengalinha de bambu que, pelo fato de ele manter as mãos junto aos quadris, também se destacava do corpo como uma espada.
Karl não teve muito tempo para ver tudo, pois logo aproximou-se deles um criado e perguntou ao foguista com o olhar o que desejava, como se este não pertencesse àquele lugar. O foguista respondeu com a mesma voz baixa com que fora perguntado, dizendo que desejava falar com o senhor caixa-mor. De sua parte o criado negou esse pedido fazendo um gesto com a mão; mas ainda assim dirigiu-se pé ante pé, descrevendo um grande arco para evitar a mesa redonda, em direção ao senhor que estava com os livros grandes. Esse senhor ficou — isso se viu com clareza — literalmente petrificado com as palavras do criado, virou-se finalmente para aquele homem que desejava falar com ele, agitando em seguida os braços num gesto de severo repúdio contra o foguista e, por medida de segurança, também contra o criado. Diante disso o criado retornou até o foguista e disse-lhe num tom de quem lhe segredava algo:
— Dê já o fora daqui!
Depois dessa resposta o foguista baixou os olhos para Karl, como se este fosse seu próprio coração, a quem ele comunicava a queixa muda de suas desgraças. Sem refletir mais Karl arrancou e atravessou a sala, chegando a esbarrar levemente na cadeira do oficial; o criado saiu correndo, curvado e com os braços prontos a agarrar algo, como se estivesse caçando algum inseto nocivo. Mas Karl chegou primeiro à mesa do caixa-mor, onde se segurou para o caso de o criado tentar arrastá-lo dali.
Naturalmente, logo, logo todo o recinto se animou. O oficial do navio que estava sentado à mesa tinha-se posto em pé de um salto, os senhores da capitania dos portos assistiam a tudo calmamente, embora atentos, os dois senhores na janela colocaram-se lado a lado, e o criado, que acreditava não ter o que fazer onde senhores de tão alto nível demonstravam interesse, recuou. O foguista, junto à porta, aguardava tenso o instante em que sua ajuda seria necessária. O caixa-mor finalmente deu um grande giro com sua poltrona para a direita.
Karl remexeu no seu bolso secreto, que não hesitou em expor aos olhares daquela gente, e tirou dele seu passaporte, mas em vez de apresentá-lo, colocou-o aberto sobre a mesa. O caixa-mor pareceu considerar esse passaporte algo secundário, pois afastou-o com dois dedos num piparote, diante do que Karl voltou a guardá-lo, como se essa formalidade tivesse sido cumprida a contento.
— Tomo a liberdade de dizer — começou ele — que na minha opinião foi cometida uma injustiça contra o senhor foguista. Há aqui um certo Schubal que o importuna. Ele já serviu em muitos navios, os quais pode citar aqui, de maneira plenamente satisfatória, é trabalhador, bem-intencionado em seu trabalho; realmente não se entende por que ele trabalharia mal justo nesse navio, onde o serviço nem é excessivamente pesado como, p. ex., nos veleiros mercantes. Por isso só pode ser uma calúnia que o impede de progredir e o priva do reconhecimento que de outra forma com toda certeza não lhe faltaria. Eu falei apenas dos aspectos gerais dessa questão; as reclamações específicas, ele mesmo as apresentará aos senhores.
Com essa questão{12} Karl tinha-se dirigido a todos, porque de fato todos escutavam e porque parecia muito mais provável encontrar-se uma pessoa justa em meio a todos eles do que justo o caixa-mor ser essa tal pessoa. Além disso Karl tinha astuciosamente omitido o fato de conhecer o foguista há tão pouco tempo. De resto ele teria falado muito melhor, se não tivesse ficado desconcertado com o rosto vermelho do senhor com a bengalinha de bambu, que ele passava a enxergar pela primeira vez de sua posição atual.
— E tudo verdade, palavra por palavra — disse o foguista antes que alguém lhe perguntasse, aliás, antes mesmo que alguém tivesse olhado para ele.
Essa precipitação do foguista teria sido um grande erro, não fosse o fato de o senhor com as condecorações, que decerto era o capitão — como ficou claro para Karl naquele momento —, evidentemente ter-se decidido a escutar o foguista, pois estendeu a mão e chamou-o:
— Venha cá! — com uma voz de uma firmeza inabalável.
Agora tudo dependia do comportamento do foguista, pois Karl não tinha dúvidas quanto à justiça de sua causa.
Por sorte a ocasião mostrou que o foguista tinha rodado o mundo.
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